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A violência na mídia e seus reflexos na sociedade

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09/04/2004 às 00:00
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4. O QUE DIZEM OS ESPECIALISTAS.

Nas origens da psicanálise, Sigmund Freud atribuiu as neuroses dos adultos a traumas infantis, estabelecendo uma conformidade entre a extensão dos danos decorrentes do trauma e a vulnerabilidade do indivíduo. Segundo a Professora Maria Lucrécia Scherer Zavaschi [12], no Brasil ainda são raros os estudos de associação de trauma na infância com psicopatologias na via adulta. Segundo a pesquisadora, os técnicos de saúde mental têm absoluta consciência da complexidade da tarefa de buscar a etiologia dos comportamentos violentos do ser humano.

"Há características individuais, além de sociais e ambientais, que concorrem para moldar a personalidade ou definir comportamentos, sobretudo a qualidade dos relacionamentos humanos. Não se pode dizer que os processos violentos e as situações agressivas sejam produto de causa única. Seria uma simplificação insustentável". "Há um mecanismo psíquico – conhecido pelos psicanalistas como mecanismo de identificação -, que pode ser de grande utilidade para o entendimento da importância da qualidade dos relacionamentos dos adultos com as crianças, bem como de todo o ambiente que serve de cenário para os relacionamentos entre os pais e a criança que se encontra em fase de desenvolvimento. O processo de identificação corresponde às experiências infantis. Os êxitos e as falhas no desenvolvimento da criança estão na origem do caráter adulto. Assim, dependendo de quais estímulos a criança recebeu, combinados com suas condições genéticas, o resultado será um adulto qualitativamente mais saudável ou não" (13).

"Surge aí a relevância da televisão. Além de entender a importância da educação familiar e do ambiente escolar, é preciso que se dimensione o papel desempenhado pela exposição da criança aos estímulos e à influência dos meios de comunicação, especialmente os eletrônicos. Na moldagem do psiquismo infantil, há modelos de adultos - pais, professores e outros heróis - com os quais a criança se identifica e que, por isso, influenciam decisivamente no comportamento dos filhos, alunos e fãs. Pela estrutura do mundo moderno, a criança passa muito mais tempo na companhia dos heróis da televisão que com o pai ou o professor. Milhões delas substituem a ausência familiar e compensam sua solidão pela companhia de uma tela colorida, ágil, múltipla e sempre presente e disponível. Os modelos de identificação, positivos e negativos, acabam emergindo desse conjunto de influência. Quanto menor e mais frágil a criança, mais influência sofrerá e mais suscetível será de encontrar num herói violento ou mau caráter o modelo no qual espelhará seu futuro. (...) Uma má programação de televisão, como um mau pai ou um mau professor, pode se juntar decisivamente a circunstâncias pessoais das crianças para se constituir em fator patogênico. Interações sutis repetitivas patrocinadas por programas de televisão podem ter influência (saudável ou maléfica) tão decisiva quanto fatos (felizes ou traumáticos) da vida real" (14)

Paulo Roberto Ceccarelli [15] vê a questão da influência da mídia no comportamento social das crianças segundo o "espaço" criado pela ausência de um ambiente familiar bem estruturado. Neste caso, a criança buscará fora do âmbito familiar referências para construir seu sistema de valor ético-moral. Cenas que evocam violência, agressividade, aquelas que sugerem relações baseadas na desconfiança, na falta de solidariedade e outros fatores anti-sociais podem incutir "valores éticos" contrários àqueles tidos como fundamentais a uma estrutura social edificada em vista do respeito aos direitos do cidadão.

Com relação aos adolescentes, o Professor Ceccarelli diz que:

"a situação tampouco é simples: estes buscam modelos externos durante o período de separação e luto dos modelos familiares. Aqueles carentes de referências no ambiente familiar, encontram nos’valores globais’ respostas lá onde os pais, e em seguida a sociedade, nada lhes propõem, ‘assegurando’ ao sujeito a ilusão de pertencer a um grupo. Alguns movimentos anti-sociais dos adolescentes - delinqüência, uso de drogas... - traduzem bem esta configuração. Em ambos os casos - crianças e adolescentes - quando o mundo interno se encontra mal estruturado e pobre em imagens identificatórias, a televisão pode oferecer ‘soluções’ a conflitos internos. Tal situação é particularmente dramática nas camadas sociais menos favorecidas, vítimas potenciais da propaganda (perversa?) do capitalismo. Pode acontecer que, para muitos, os valores exibidos pela TV sejam transformados em valores sociais de felicidade. Ora, quando se cria entre o Eu do indivíduo e estes ‘valores’ uma distância intransponível, a violência pode ser a única maneira encontrada pelo sujeito como resposta à exclusão na qual este mesmo sistema o colocou".


5. A QUALIDADE DA PROGRAMAÇÃO TELEVISIVA

Com o fim da censura, a partir da Constituição de 1988, a televisão brasileira, a propósito do uso da liberdade de expressão, vem perdendo a compostura. Aproveitando-se do conformismo do cidadão, faz uma interpretação desvirtuada do dispositivo legal, para sair à caça de audiência usando para tanto de programação que afronta o mínimo de decência e moralidade. Porém, mais recentemente, percebe-se uma crescente mobilização pelo fim do que se chama de "baixaria na tv". Já se acham ações judiciais questionando certas linhas de programação. ONGs movimentam-se no sentido de exigir do poder público um maior controle sobre televisão. O próprio Ministério Público tem-se mostrado atento e iniciado ações contra programas que considera nocivos à sociedade.

O padrão de qualidade do que é exibido nas telas desceu a níveis abaixo do tolerável. A busca frenética por índices de audiência, sem importar os meios para tanto, vem tomando proporções nunca vistas, despertando indignação e descontentamento. Sem levar em conta o horário, assiste-se a todo tipo de exibicionismo de mau gosto: pegadinhas, erotismo acompanhado de linguajar inconveniente, cenas insinuantes de sexo, catastrofismo banalizado com repetição valorizada de tudo que é patético, enfim, há uma verdadeira poluição eletrônica tomando cada vez mais o espaço da comunicação eletrônica de massa.

Sobre a programação infantil, a UNESCO apresentou em 1998 [16] um relatório de estudo global sobre violência na mídia, nos anos de 1996/97. A amostra foi formada por um núcleo original de 23 países, entre eles o Brasil, num universo de 5.000 crianças de 12 anos. 93% das crianças tinham acesso à TV e passavam pelo menos 50% mais tempo assistindo a esse meio do que qualquer outra atividade extra-aula. Os meninos são mais fascinados pelos heróis agressivos. Os heróis da mídia são utilizados pelas crianças como escapismo e compensação por seus problemas. As visões de mundo das crianças são obviamente influenciadas pelas experiências reais tanto quanto pelos meios de comunicação.

A forma como é exibida uma situação determina sua implicação no comportamento da criança. Campanhas de ódio, ou a glorificação da violência acentuam as características de "recompensa" da agressão extrema. As crianças, em geral, não têm capacidade para distinguir entre realidade e ficção. Se as crianças ficam permanentemente expostas a mensagens que promovem a violência como um divertimento ou uma atitude adequada para resolver problemas ou adquirir status, torna-se muito alto o risco de que elas venham a aprender sobre essas atitudes e padrões de comportamento.

Destaca-se, dentre os resultado da pesquisa, a apresentação de cerca de 350.000 dados individuais (5.000 mil estudantes), com mais de 60 variáveis cada um. Em média, as crianças ficam três horas por dia em frente à tela. A televisão é o centro da vida das crianças em todo o mundo e há uma forte correlação entre o acesso à mídia moderna e os valores e orientações predominantes.

As crianças desejam viver em um ambiente familiar e funcional do ponto de vista social e, à medida que tais aspectos pareçam estar ausentes, procuram modelos que ofereçam a compensação por meio do poder e da agressividade. Isso explica o sucesso universal de personagens cinematográficos como "O Exterminador". Preferências individuais por esse tipo de filme não se constituem um problema. No entanto, quando o conteúdo de violência torna-se um fenômeno tão comum que chega a existência de um ambiente agressivo na mídia, aumenta consideravelmente a probabilidade de que as crianças desenvolvam um novo quadro referencial, sendo as predisposições problemáticas canalizadas para atitudes e comportamentos destrutivos.

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Na televisão brasileira, vê-se uma verdadeira guerra de audiência entre as redes de emissoras, o que acaba por puxar cada vez mais para baixo o nível de qualidade da programação. Por conta dessa disputa desatinada de mercado, vale tudo.

O público infantil, segundo Andréa Carla Falchi Ferreira Santos, em trabalho citado pela Revista Eletrônica Com Ciência [17], é o mais vulnerável aos apelos televisivos, sendo facilmente impressionado, em virtude de estar a sua personalidade ainda em formação. Por isso, as informações que recebe pela televisão são entendidas e processadas segundo o universo psíquico da criança, que inclui o ambiente em que vive. Essa influência pode estabelecer padrões de comportamento, acrescenta Santos. A programação infantil, visivelmente, tem sofrido os efeitos da deterioração geral dos conteúdos programáticos da televisão. A pesquisa da ONU/1998 revela que a televisão brasileira exibe 20 crimes por hora de desenho animado. Num mapeamento estatístico feito com seis emissoras de transmissão aberta detecta 1.432 crimes em uma semana de desenhos animados, conforme mostra o quadro a seguir:

Os crimes nos desenhos animados

Globo

SBT

Band

Record

Manchete

Cultura

Total

Programação total avaliada (em horas)

166

149

159

160

143

135

912

Desenhos animados exibidos dentro da programação (em horas)

12

36

4

8

5

6

71

Porcentagem de desenhos na programação total

7,23

24,16

2,52

5

3,5

4,44

7,79

Número de crimes ocorridos nos desenhos

259

753

31

164

160

65

1.432

Número de crimes a cada hora de

desenho

22

21

8

21

32

11

20

Fonte: Organização das Nações Unidas/ONU

Bandeirantes e TV Record lideram os homicídios em seus desenhos animados e a TV Globo vence em lesões corporais. A média mais alta (32 crimes por hora) ficou com a TV Manchete. Dos crimes cometidos, 38% tinham justificativas (reagir à violência) e 34% eram inteiramente gratuitos. Em geral não há polícia. Os crimes não geram conseqüências à vítima e não existe intermediação (alguém para dirimir conflito).

Esse mapeamento estatístico resultou da crescente preocupação da sociedade com o conteúdo "vale-tudo" das programações em meio a estudos acadêmicos, especialmente dos Estados Unidos, indicando suposta relação entre TV e comportamentos anti-sociais.

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Sobre o autor
Marcos Sílvio de Santana

acadêmico do curso de Direito pela FADIPA - Faculdade de Direito de Patos de Minas-MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTANA, Marcos Sílvio. A violência na mídia e seus reflexos na sociedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 276, 9 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5062. Acesso em: 2 mai. 2024.

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