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A reforma trabalhista: garantia ou mitigação de direitos?

11/01/2004 às 00:00
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A flexibilização das normas trabalhistas deve ter por escopo a adequação de seu conteúdo a realidade fática das relações empregatícias, e não a mitigação de direitos trabalhistas sob o mote do "negociado sobre o legislado".

Em julho do corrente ano, teve início mais uma corrida do atual Governo por reformas. Com a instauração do Fórum Nacional do Trabalho, que conta com a participação de trabalhadores, empresários, juristas e o próprio Governo, retomar-se-ão as proposições de alteração na legislação trabalhista que há muito se arrastam pelos porões legislativos do país. Todavia, agora, com a sensível diferença de que os trabalhadores terão "voz ativa" na discussão implementada.

O afã de alterar, tanto o texto constitucional quanto as normas consolidadas, não é novo. No governo Fernando Henrique Cardoso surgiram diversas proposições de modificação das normas trabalhistas, dentre os quais é possível destacar, como de maior comoção, o Projeto de Lei n.º 5.483, de 10 de dezembro de 2001, para reforma do artigo 618 da Consolidação das Leis do Trabalho, e a Proposta de Emenda Constitucional n.º 623, de 1998, elaborada pelo Ministério do Trabalho e do Emprego.

Com a PEC 623, pretendia-se a substituição do princípio da unicidade sindical pelo da pluralidade, possibilitando, assim, a liberdade plena para criação de entidades sindicais. A proposta buscava, também, a extinção da contribuição sindical. A tentativa, porém, não logrou êxito; o texto apresentado foi sepultado, ainda na Câmara dos Deputados, na Comissão de Constituição e Justiça, por determinação da então Relatora Deputada Federal Zulaiê Cobra, que entendeu pela prejudicialidade do assunto trazido pela PEC 346, e anexas - dentre elas a PEC 623 - face sua discussão anterior quando da apreciação da Reforma do Poder Judiciário e da Emenda Constitucional que extinguiu a representação classista na Justiça do Trabalho.

Melhor sorte também não mereceu o Projeto de Lei n.º 5.483/2001 que, em 30 de abril de 2003, foi retirada da pauta de votação do Senado, a pedido da Presidência da República.

Não obstante o fracasso das tentativas anteriores, o recente tentame tem-se revestido de toda a legitimidade possível, vez que se cerca de discussões cujos participantes são tanto empregados quanto empregadores.

Não se adentrará aqui a questão da reforma sindical, posto que tão complexo assunto é tema para um trabalho especifico, voltado, única e exclusivamente, para ele. Discutir-se-á neste estudo as proposições de Reforma Trabalhista que, com o mote do "negociado sobre o legislado", pretende enterrar direitos dos trabalhadores.

Num primeiro momento, não há como tratar das tentativas de modificação do texto consolidado sem trazer à tona a já desgastada discussão acerca da flexibilização das leis trabalhistas. Um nome pomposo para um conceito simples. De acordo com o Dicionário Aurélio, flexibilizar é "tornar flexível", que, por sua vez, é algo "que se pode dobrar ou curvar, arqueável, vergável, flexo". Ao pretender flexibilizar as normas trabalhistas, busca-se possibilitar que os direitos por ela trazidos sejam "dobráveis", "moldáveis" aos interesses das partes.

O Projeto de Lei n.º 5.483/2001 [1], que alteraria o artigo 618 da Consolidação das Leis do Trabalho, buscava estabelecer que as condições de trabalho avençadas em convenção ou acordo coletivo de trabalho prevaleceriam sobre os direitos garantidos em lei. Deste modo, facultava-se, à convenção ou acordo coletivo, a possibilidade de restringir direitos trabalhistas, desde que, é claro, fosse o acordado entre as partes.

Os direitos dos trabalhadores trazidos pelo texto constitucional e pelas inúmeras normas trabalhistas que, em 1º de maio de 1934, foram reunidas na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT são oriundos de uma gradativa evolução do direito do trabalho no Brasil. Em que pese as Constituições de 1824 e 1891 tenham previsto a liberdade de associação, os trabalhadores só foram "agraciados" com alguns direitos com o advento da Constituição de 1934 que, em seu artigo 121, garantia isonomia salarial, salário mínimo, jornada de trabalho de oito horas diárias, proibição de trabalho para menores, repouso semanal, férias remuneradas, indenização por demissão sem justa causa, reconhecimento dos acordos e convenções coletivas, entre outros. Todos esses direitos, e outros que foram posteriormente acrescentados, constam de todos as Constituições já promulgadas neste país após 1934. Assim, os direitos trabalhistas foram conquistados ao longo de décadas de evolução histórica do direito do trabalho no Brasil.

De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego, em documento intitulado "Diagnóstico sobre a reforma sindical e trabalhista", de 16 de março de 2003, a reforma faz-se necessária para "conferir mais efetividade as leis trabalhistas" e "estimular a autocomposição dos conflitos e sua resolução por meio de novos mecanismos de conciliação, mediação e arbitragem".

A autocomposição não é instituto novo no direito trabalhista brasileiro. Os sindicatos há décadas desempenham papel de negociador, buscando garantir os direitos de seus filiados. O número de acordos e convenções firmados até hoje é incontável, não se fazendo necessária qualquer discussão acerca da sua importância no cenário trabalhista nacional. Todavia, não obstante sua indiscutível importância, a prevalência de seu conteúdo sobre o contido em lei confronta todo e qualquer principio até então ensinado nas aulas acadêmicas.

O artigo 9º da Consolidação das Leis do Trabalho determina que "serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação" e o artigo 623 dispõe que "será nula de pleno direito disposição de Convenção ou Acordo que, direta ou indiretamente, contrarie proibição ou norma disciplinadora da política econômico-financeira do Governo ou concernente à política salarial vigente, não produzindo quaisquer efeitos perante autoridades e repartições públicas, inclusive para fins de revisão de preços e tarifas de mercadorias e serviços".

O primeiro dispositivo positiva o princípio da irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas e o segundo estabelece a necessária submissão dos acordos/convenções coletivas à lei; a supremacia dessa é, portanto, garantida pelo próprio texto consolidado.

A efetiva contribuição da essência da flexibilização para o avanço das relações trabalhistas é de todo inconteste. O direito não é, nem deve ser, estático. Ao contrário, sua função é, justamente, adaptar-se às situações que surgem no decorrer da evolução humana e, desta maneira, possibilitar sua solução. O engessamento do direito o tornaria vão, na medida em que seus preceitos não evoluiriam com a sociedade e com as novas demandas por ela trazidas. Exemplo disso é a recente promulgação do Novo Código Civil, Lei n.º 10.406, de 10.1.2002 que, em que pese tenha deixado de dispor acerca de inúmeras matérias cotidianamente discutidas, trouxe diversas inovações ao cenário jurídico atual.

Contudo, a necessidade de evolução do direito não pode, em momento algum, dar azo ao desrespeito às garantias já conquistadas. Diante disso, não se pode admitir que, sob o pano da flexibilização do direito do trabalho, mascare-se a tentativa de esmagar direitos há muito adquiridos. A lição de Francisco Ferreira Jorge Neto e Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcante [2] não é outra: "A flexibilização não pode ser vista como possível pela simples substituição da tutela legal pela sindical. Porém, é razoável, mesmo mantendo-se a tutela legal imposta pelo Estado, outros critérios de fontes, através das negociações coletivas e que representam avanços para as classes trabalhadoras. Deve ser valorizada a flexibilização como avanço no trato das relações trabalhistas, mas não se pode negar a necessidade de manutenção de direitos que foram alcançados após décadas de lutas". Esse posicionamento é defendido por tantos outros grandes doutrinadores brasileiros.

O Tribunal Superior do Trabalho apresenta entendimentos discrepantes acerca da matéria. De um lado, tem-se a Orientação Jurisprudencial n.º 258 [3], da Subseção II da Seção de Dissídios Individuais, que, em caso específico de adicional de periculosidade, se posiciona pela prevalência do acordado entre as partes sobre o preceito legal. Por outro lado, existem entendimentos de que os acordos/convenções coletivos não podem dispor de forma contrária às garantias mínimas de proteção ao trabalhador, asseguradas na legislação [4], de modo a mitigá-las. A matéria não é pacífica na jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho. Todavia, não obstante posicionamentos favoráveis à prevalência do negociado sobre o legislado, os julgamentos, em sua maioria, ressalvam questões que envolvam segurança e medicina do trabalho [5], excluindo-as do rol de matérias negociáveis.

A intenção de flexibilizar-se as normas trabalhistas, a fim de garantir uma melhor adequação do direito à situação fática trabalhista atual, é aplausível. Todavia, essa necessária flexibilização não pode possibilitar a mitigação dos direitos dos trabalhadores. Assim, não obstante a intenção seja louvável, o resultado pode ser desastroso.

Apresentou-se, à discussão, a possibilidade de empresas de pequeno porte diluírem a gratificação natalina de seus empregados em parcelas mensais, evitando, assim, a "sobrecarga" de pagamento de verbas trabalhistas a que são submetidas no fim do ano. Ora, para se evitar a excessiva carga de despesas com seus funcionários, faculta-se às empresas, desde que constante em acordo ou convenção, a diluição do 13º salário. Descobre-se um santo para cobrir outro.

O 13º salário ou gratificação natalina foi criada pela Lei n.º 4.090, de 13.7.62, que, em seu artigo 1º, [6] garantia, aos empregados, no mês de dezembro, o pagamento de uma gratificação salarial correspondente ao valor de uma remuneração mensal. A clara e inequívoca intenção do legislador era garantir, no mês de dezembro - época de festas e, muitas vezes, férias familiares – um incremento no salário do trabalhador, a fim de possibilitar a compra de presentes, viagens ou qualquer outro interesse do empregado. Em 1965, com o advento da Lei n.º 4.7498, foi facultado, ao empregado, requerer, no mês de janeiro de cada ano, o pagamento adiantado de metade de sua gratificação natalina, por ocasião de suas férias [7]. Assim, restou facultado, ao trabalhador, a opção de perceber seu décimo terceiro em duas parcelas (a primeira entre os meses de fevereiro e novembro, por ocasião de suas férias, desde que solicitado em janeiro e a segunda até o dia 20 de dezembro) ou de uma única vez no mês de dezembro.

Merece destaque o fato de que, para que o décimo terceiro seja parcelado, faz-se necessária a solicitação do empregado nesse sentido. Não há, portanto, como o empregador, a seu bel prazer, optar por pagar a gratificação natalina parceladamente. Não se está, deste modo, a mitigar um direito trabalhista, mas a flexibilizá-lo, moldando-o de acordo com o interesse do trabalhador.

O mesmo não pode ser dito da intenção de diluir a gratificação natalina em parcelas mensais ao longo do ano. A intenção do legislador de conceder uma remuneração a mais ao trabalhador, um décimo terceiro salário, se perderia em insignificantes valores mensalmente pagos.

Sob a égide da flexibilização, do "negociado sobre o legislado", estar-se-ia, mais uma vez, mitigando um direito constitucionalmente garantido [8]. Não obstante a continuidade do pagamento da gratificação natalina, sua essência estaria perdida, na medida em que não mais consistiria em um salário além, mas em ínfimas parcelas mensalmente acrescidas à remuneração.

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A defesa de direitos trabalhistas em sua essência, em sua razão de existir, é uma batalha que deve ser constantemente travada.

Moldá-los às necessidades de cada categoria ou cada trabalhador é louvável, porém seu desvirtuamento é um desrespeito às incansáveis lutas travadas ao longo dos séculos para que os trabalhadores não ocupem, jamais, a condição análoga a de escravos. Com isso, conclui-se que a Reforma Trabalhista deve primar pela evolução do direito do trabalho, a fim de adequá-lo às novas situações que surgem constantemente nas relações trabalhistas. Porém, essa reforma não pode, jamais, dar azo à mitigação de direitos. A flexibilização das normas trabalhistas deve ter por escopo, sempre, a adequação de seu conteúdo a realidade fática das relações empregatícias, de modo a abranger e solucionar, da melhor maneira possível, o maior número de situações de conflito e não a mitigação de direitos trabalhistas sob o mote do negociado sobre o legislado.


Notas

01. "PROJETO DE LEI Nº 5483/2001 - Altera o dispositivo da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943.

Art. 1º - O art. 618 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943, passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 618 - As condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em lei, desde que não contrariem a Constituição Federal e as normas de segurança e saúde do trabalho."

Art. 2º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação."

02. In Manual de Direito do Trabalho – 2003 – Ed. Lúmen Júris/RJ – p. 103.

03. "Adicional de periculosidade. Acordo coletivo ou convenção coletiva. Prevalência. A fixação do adicional de periculosidade, em percentual inferior ao legal e proporcional ao tempo de exposição ao risco, deve ser respeitada, desde que pactuada em acordos ou convenções coletivos de trabalho (art. 7º, inciso XXVI, da CF/1988)".

04. "ACORDO COLETIVO - GARANTIAS LEGAIS MÍNIMAS DE PROTEÇÃO AO TRABALHADOR - IMPOSSIBILIDADE DE PACTUAÇÃO EM SENTIDO CONTRÁRIO - ORIENTAÇÃO Nº 31 DA SDC.

À luz dos princípios que regem a hierarquia das fontes de Direito do Trabalho, as normas coletivas, salvo os casos constitucionalmente previstos, não podem dispor de forma contrária às garantias mínimas de proteção ao trabalhador asseguradas na legislação, que funcionam como um elemento limitador à autonomia da vontade das partes no âmbito da negociação coletiva.

Recurso ordinário não provido."

(TST - ROAA 741381/2001 - DECISÃO: 13 09 2001 - ÓRGÃO JULGADOR - SEÇÃO ESPECIALIZADA EM DISSÍDIOS COLETIVOS - DJ DATA: 28-09-2001 PG: 528 – RELATOR: MINISTRO MILTON DE MOURA FRANÇA)

05. "ESTABILIDADE DO EMPREGADO ACIDENTADO – ALTERAÇÃO.

Apesar de entender que os princípios constitucionais insculpidos no art. 7º, VI e XII, da Carta Magna ampliaram a liberdade de negociação das representações sindicais para que elas possam, por meio de concessões recíprocas, chegar à solução dos seus conflitos, não é possível prevalecer o que foi acordado sobre a legislação vigente. A jurisprudência desta Seção Normativa é no sentido de que, quando se trata de normas relativas à segurança e à medicina do trabalho, o caráter imperativo delas restringe o campo de atuação da vontade das partes, porquanto essas matérias não se encontram entre aquelas passíveis de flexibilização pela via do acordo ou da convenção coletiva." (destaque atual) – TST – ROAA 735830/2001 – Data do Julgamento: 22 11 2001 - ÓRGÃO JULGADOR - SEÇÃO ESPECIALIZADA EM DISSÍDIOS COLETIVOS - DJ DATA: 15-02-2002 – RELATOR: MINISTRO RONALDO JOSÉ LOPES LEAL.

06. "Art. 1º - No mês de dezembro de cada ano, a todo empregado será paga, pelo empregador, uma gratificação salarial, independentemente da remuneração a que fizer jus.

§ 1º - A gratificação corresponderá a 1/12 avos da remuneração devida em dezembro, por mês de serviço, do ano correspondente."

07. "Art. 1º - A gratificação salarial instituída pela Lei número 4.090, de 13 de julho de 1962, será paga pelo empregador até o dia 20 de dezembro de cada ano, compensada a importância que, a título de adiantamento, o empregado houver recebido na forma do artigo seguinte.

Art. 2º - Entre os meses de fevereiro e novembro de cada ano, o empregador pagará, como adiantamento da gratificação referida no artigo precedente, de uma só vez, metade do salário recebido pelo respectivo empregado no mês anterior.

(...)

§ 2º - O adiantamento será pago ao ensejo das férias do empregado, sempre que este o requerer no mês de janeiro do correspondente ano."

08. "Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(...)

VIII – décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria."

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Sobre a autora
Andréa Marin dos Santos

Advogada militante em Brasília/DF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Andréa Marin. A reforma trabalhista: garantia ou mitigação de direitos?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 189, 11 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4677. Acesso em: 19 mai. 2024.

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