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Gratuidade registrária: reflexões sobre o entendimento do Supremo Tribunal Federal

13/11/2009 às 00:00
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A Lei nº. 9.534, de 10 de dezembro de 1997, deu nova redação ao art. 30 da Lei nº. 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), acrescentando inciso ao art. 1º da Lei nº. 9.265/96 e alterando os artigos 30 e 45 da Lei nº. 8.935/94 (Lei dos Notários e Registradores). Com efeito, a partir da inovação legislativa, o caput do art. 30 da Lei nº. 6.015/73 passou a prever que "não serão cobrados emolumentos pelo registro civil de nascimento e pelo assento de óbito, bem como pela primeira certidão respectiva". Os parágrafos respectivos, resumidamente, preconizaram que os reconhecidamente pobres estariam isentos de pagamento de emolumento pelas demais certidões extraídas pelo cartório de registro civil, bem como que o estado de pobreza em questão precisaria ser comprovado mediante simples declaração do próprio interessado ou a rogo, tratando-se de analfabeto, nesse caso, acompanhada da assinatura de duas testemunhas. Por fim, fez-se a previsão de que a falsidade da declaração estaria apta a ensejar a responsabilidade civil e criminal do interessado.

Ademais, o art. 3º da Lei nº. 9.534/97 acrescentou o inciso VI ao art. 1º da Lei nº. 9.265/96, que regulamentou o inciso LXXVII do art. 5º da Constituição, dispondo sobre a gratuidade dos atos necessários ao exercício da cidadania, no sentido de reconhecer o registro civil de nascimento e o assento de óbito, bem como a primeira certidão respectiva, como sendo atos de tal natureza jurídica.

Finalmente, em seu art. 5º, a Lei nº. 9.534/97 modificou a redação do art. 45 da Lei nº. 8.935/94, que regulamentou o art. 236 da CF/88, dispondo sobre serviços notarias e de registro, sendo assegurada a gratuidade do registro civil de nascimento e do assento de óbito, bem como da primeira certidão, tendo o parágrafo único do mencionado dispositivo legal previsto ainda que "para os reconhecidamente pobres não serão cobrados emolumentos pelas certidões a que se refere este artigo".

Diante da edição da Lei nº. 9.534/97, a Associação dos Notários e Registradores do Brasil, ANOREG/BR, interpôs Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal atacando os comandos legais concernentes à gratuidade, a saber: Artigos 1º, 3º e 5º da Lei 9534/97.

Os dispositivos retromencionados foram atribuídos de inconstitucionais sob diversos argumentos, dentre os quais destacamos: Constituírem violação frontal aos preceitos constitucionais que "garantem o exercício da atividade notarial e de registro em caráter privado" [01], resultando na aniquilação do direito do serventuário à percepção de emolumentos, previsto o art. 236, §2º da CF/88; a necessidade de o legislador dar contornos mais determinados à expressão "reconhecidamente pobres"; criação de hipótese de requisição de serviços públicos, fora dos casos permitidos constitucionalmente.

O C. Supremo Tribunal Federal, através de sua composição plenária, conheceu da ação, apreciando o mérito. Vale a transcrição da ementa do acórdão:

EMENTA: Constitucional. Argüida a inconstitucionalidade de arts. Da Lei 9.534/97. Registros Públicos. Gratuidade pelo registro civil de nascimento, assento de óbito, pela primeira certidão desses atos e por todas as certidões aos "reconhecidamente pobres". Não há plausibilidade do direito alegado. Os atos relativos ao nascimento e ao óbito relacionam-se com a cidadania e com o seu exercício e são gratuitos na forma de Lei – Art. 5º, LXXVII. Portanto, não há direito constitucional à percepção de emolumentos por todos os atos que delegado do Poder Público pratica; Não há obrigação constitucional do Estado de instituir emolumentos para todos esses serviços; os serventuários têm direito de perceber, de forma integral, a totalidade dos emolumentos relativos aos serviços para os quais tenham sido fixados. Ação conhecida. Liminar Indeferida. [02]

A decisão do STF que ora analisamos tratou, direta e indiretamente, de diversos direitos e garantias fundamentais previstos na Carta Magna de 1988, tais como a cidadania e a dignidade humana, preconizados como fundamentos da República Federativa do Brasil [03]; o princípio da solidariedade [04]; a gratuidade, somente para os reconhecidamente pobres, na forma da lei, do registro civil de nascimento e da certidão de óbito [05]; a "assistência aos desamparados" [06], dentre outros. No caso em análise, o ponto central da discussão teve seu foco voltado para a questão da cidadania, haja vista ser o registro de nascimento e o assento de óbito, bem como suas respectivas primeiras certidões, atos que se relacionam íntima e diretamente com o exercício desta.

No caso do registro e da certidão de nascimento, foi dada relevância ao fato de esta ser a "mãe de todos" os documentos necessários para efeito de trânsito social do indivíduo, tais como carteira de identidade, CTPS, título de eleitor, carteira de motorista, dentre outros. Ora, se não há registro e certidão de nascimento donde se possam extrair as informações a serem contidas nestes documentos, não se poderá obtê-los. Já o registro de óbito, consoante prescreve o art. 77 da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6015/73), é documento necessário para que se possa autorizar o sepultamento da pessoa natural. São estes, portanto, atos necessários para que se possa certificar o início e o fim da pessoa natural no mundo jurídico.

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Em que pese a pertinência dos temas enfrentados pelo Pretório Excelso, outros pontos de suma importância deveriam ter sido abordados, dada à extrema relevância social da temática posta sob análise.

Ora, é cediço o descaso social ao qual vêm sendo submetidos os indivíduos menos abastados. Assim, estes acabam, muitas vezes, restando excluídos da vida social como um todo, sendo-lhes negadas as condições mínimas para uma existência digna. Inscreve-se como exemplo a situação de uma pessoa que nasce e permanece vinte anos de sua vida sem sequer ter sido registrada civilmente. Fatalmente, ela será um "indivíduo à margem da sociedade", eis que não poderá adquirir qualquer documento indispensável ao trânsito social. Dessa forma, será excluído do ensino, do exercício dos direitos políticos, do acesso ao judiciário, da proteção jurídica dada ao nome da pessoa, do mercado formal de trabalho, dos sistema de assistência e previdência social, enfim, do "acesso à justiça" em sua mais moderna interpretação, entendido, assim, como o acesso à uma ordem jurídica justa.

Com efeito, a certidão de nascimento é o atestado formal da existência da pessoa natural, fonte fornecedora de todas as informações que serão necessárias no transcorrer de sua vida civil. Por seu turno, o registro de óbito, consoante prevê o art. 77 da LRP, [07] é indispensável para que se possa autorizar o sepultamento da pessoa natural. São, portanto, formalidades necessárias para que se possa certificar o início e o fim da pessoa natural no mundo jurídico.

Não há liberdade, muito menos justiça, na indigência, na miséria, na ignorância e na doença, mas sim sujeição ao subemprego, à mendicância, à exploração sexual, à violência policial e a todas as mazelas que a ausência de condições econômicas mínimas de uma existência digna acarretam.

Neste diapasão, a ideia da indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos embasa a exegese que inclui os direitos fundamentais sociais, assim como os políticos e de nacionalidade, na expressão ‘direitos e garantias individuais’ do inciso IV do §4º. do art. 60 da Constituição Federal. Desta forma, todos seriam considerados cláusulas pétreas. Assim, a cidadania, a gratuidade do registro e o acesso à justiça estariam perfeitamente rotulados no alcance da expressão "direitos individuais".

Não há dúvida que os atos relativos ao nascimento e ao óbito relacionam-se com a cidadania e seu respectivo exercício, estando previsto no rol dos direitos e garantias individuais, inserto no art. 5º da Carta Magna, que tais atos serão gratuitos. Por outro lado, não é de clientela a relação entre o serventuário e o particular, pois a atividade notarial e registral, embora exercida em caráter privado, se sujeita a um regime de direito público, sendo devidos os emolumentos como contraprestação de serviço público que o Estado, por intermédio de seus delegatários, presta aos particulares. No julgamento sob análise, o Min. Maurício Corrêa, destacando a importância de assegurar-se a todos o exercício da cidadania, bem como, por outro lado, reconhecendo a necessidade da recomposição dos gastos para as serventias extrajudiciais, aduziu o seguinte: "[...] creio tratar-se de um absurdo. Se o Estado quiser descobrir solução para que a cidadania seja exercida na sua plenitude, faça como fez em outras áreas: crie defensorias públicas e encontre recursos para que os que executam tarefas do Estado, no campo da cidadania, não sofram as conseqüências de uma determinação imperativa, evitando que os atingidos pratiquem atos gratuitamente, sem nada receber".

Dessa forma, resta-nos concluir que o acesso à justiça, trantando-se de um direito fundamental [08], não pode ser restringido, devendo ter seus inúmeros obstáculos efetivamente enfrentados e vencidos. Como direito fundamental que é, detém um regime dea eficácia reforçada em sua aplicabilidade, dado que os direitos fundamentais considerados em seu sentido amplo, ainda que não tenham sua intangibilidade expressamente assegurada, afiguram-se como pontos indissociáveis da propria condição de subsistência da Lei Maior.

Assim, vislumbramos que a falta do registro de nascimento e de óbito, bem como de suas respectivas certidões, constitui um "entrave" na efetivação do Acesso à Justiça, representando tal garantia muito mais do quê apenas o ingresso formal do indivíduo no Poder Judiciário, tendo sua amplitude voltada para o acesso à uma ordem jurídica justa, baseada na efetivação dos princípios da dignidade humana e da igualdade.

Finalmente, temos como ponto que deveria ter merecido maior destaque no julgado o fato de que o legislador constituinte originário, ao preconizar a gratuidade do registro civil de nascimento e da certidão de óbito, o fez desejando obter um "escudo" mínimo de proteção para os indivíduos, no que diz respeito à sua identificação como "pessoa natural". Sendo assim, fins de buscar a melhor hermenêutica, mostra-se equivocado o entendimento no sentido de que o legislador infraconstitucional não poderia "aumentar" a extensão da referida norma. Muito pelo contrário! As cláusulas pétreas não podem ser "ofuscadas" ou "restringidas", nada impedindo que haja aumento de sua interpretação, de forma a otimizar seus efeitos.


Notas

  1. Vide art. 236, §1° da Constituição Federal de 1988.
  2. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI/MC 1800-1/DF, Relator Min. NELSON JOBIM, Julgamento: 06/04/1998, Tribunal Pleno, Publicação no DJ: 03/10/2003, p.10. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/pesquisa.asp>. Acesso em 11/07/2007.
  3. Art. 1°, inc. II e III, da CF/1988.
  4. Art. 3°, I da CF/1988.
  5. Art. 5°, LXXVI, da CF/1988.
  6. Art. 6°, caput, da CF/1988.
  7. Lei n° 6.015/73, comumente denominada de "Lei dos Registros Públicos".
  8. Na nossa opinião, mais precisamente "direito individual fundamental", de modo a embasar nosso raciocíno mesmo perante aqueles que advogam a tese de que a cláusula de imutabilidade constitucional, constante da redação do art. 60, § 4º, da CF, só albergaria propriamente os direitos individuais preconizados no texto do art. 5º da Constituição.
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Sobre a autora
Roberta Madeira Quaranta

Defensora Pública do Estado do Ceará e Professora do Centro Universitário Christus – UNICHRISTUS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUARANTA, Roberta Madeira. Gratuidade registrária: reflexões sobre o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2326, 13 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13841. Acesso em: 27 abr. 2024.

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