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A diferença entre calúnia e denunciação caluniosa

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7 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA CALÚNIA E DA DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA A PARTIR DO CASO CONCRETO

            FRANCESCO CARRARA afirma que a possibilidade de qualquer do povo acusar outrem do cometimento de um delito, caso não fosse regulamentada, provocaria distúrbios e abusos na sociedade [19]. Réu, expressa-se a doutrina, é aquele sobre o qual, dentro de um processo, recai a acusação pelo cometimento de um delito. Ao discorrer sobre provas, o citado jurista italiano afirma que a confissão do réu consiste em qualquer afirmação consistente em prejuízo próprio, mas que a confissão só terá valor se acompanhada dos seguintes elementos [20]:

            a)A confissão deve ser precedida de prova da materialidade dos fatos;

            b)A confissão deve ser emitida perante juízo competente;

            c)A confissão deve ser feita em continuação ao interrogatório, e não por iniciativa própria;

            d)A confissão deve promanar de pessoa inteligente e livre;

            e)A confissão deve ter caráter principal, e não incidental, a fim de que pareça ser séria e consciente;

            f)A confissão deve ser espontânea, e não obtida mediante tortura e meios afins;

            g)A confissão deve recair sobre coisas possíveis;

            h)A confissão deve ser unívoca;

            i)A confissão deve ser constante;

            j)A confissão deve ser expressa;

            k)A confissão deve ser verdadeira, e não presumida;

            l)A confissão deve ser efetiva, e não ficta;

            m)A confissão deve ser circunstanciada, isto é, os pormenores em que o réu circunscreveu a sua confissão devem ser verificados.

            Analisando os elementos acima apontados pelo ilustre jurista italiano, notamos que a segunda confissão do acusado Cristiano apresentou-se: mediante iniciativa própria, uma vez que foi requerida, pelo próprio acusado, uma nova inquirição em juízo; e plurívoca, haja vista que o interrogando, por declaração própria, confirmava o seu primeiro depoimento e apenas iria retificar algumas informações; pelo que já demonstramos: o que foi dito no interrogatório do dia 1º de dezembro vai de encontro com o que foi dito aos dias 24 de abril, de modo que não há como se acreditar em uma ou em outra versão.

            Na doutrina brasileira, FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO argúi que a experiência demonstra que, apesar de valioso meio de prova, não se pode dar valor absoluto à confissão [21]. A história da justiça criminal apresenta inúmeras situações de confissões falsas, ao que cita CARRARA em nota de rodapé de seu Programa do Curso de Direito Criminal [22]:

            Curioso é o caso lembrado por Mittermaier, de um malfeitor que se confessou réu de delito ocorrido em lugar onde ele não estava, para obter na sentença condenatório por aquele delito leve, um documento que justificasse o seu álibi, e o pusesse a salva da pena em que incorrera por um crime atroz, cometido noutro lugar. Do mesmo modo, um marechal da França, no século passado, fez-se condenar por estupro, no tribunal de uma província, para vencer a demanda que sua mulher lhe movera visando à nulidade de matrimônio por impotência. Eu tive em mãos um rapaz que de tal forma perdera o sentido de honra e tão abandonado estava de toda virtude cívica, que se fingiu culpado de um pequeno furto para obter isenção do serviço militar.

            Dos exemplos dados acima e da existência de tantos outros, podemos inferir que se a auto-acusação falsa é comum, que se dirá da acusação falsa de outrem. Em outras palavras: da imputação, falsa, de fato definido como crime a outrem, o que constitui o delito do artigo 138 do Estatuto Penal brasileiro: crime de calúnia. Não raro, portanto, é o acusado que, diante da materialidade dos fatos e da autoria dos mesmos, se vê obrigado a confessar, e, buscando melhorar a sua posição, introduz, aos acontecimentos verdadeiros, circunstâncias falsas.

            Aliás, é o que ocorre no caso concreto em tela: já tendo sido comprovada a materialidade dos fatos e a autoria dos fatos ao caseiro, este, tenta, mediante nova confissão, com elementos inteiramente novos, acusar o empresário e marido de uma das vítimas de mandante do crime de latrocínio.

            Assim é que, no Código Processual Penal brasileiro, estabelece o artigo 200 que a confissão será divisível. GUILHERME DE SOUZA NUCCI nos esclarece o aspecto de divisibilidade da confissão: o juiz poderá aproveitar a confissão, integral ou parcialmente, para formular a motivação de sua decisão, podendo, assim, crer em um trecho da confissão e em outro, não [23].

            A fortiori, não se deve dar qualquer valor à chamada de co-réu, também conhecida como delação. Como bem apontam CHRISTIANO FRAGOSO e JOSÉ CARLOS FRAGOSO é muito comum, quando o acusado confessa, acreditar-se não apenas em sua palavra quanto à própria culpabilidade como também em relação às outras partes de seu interrogatório [24].

            Ademais, TOURINHO FILHO adverte que o magistrado não pode, em hipótese alguma, admitir como verdadeira a acusação feita por um réu em face de um terceiro, imputando a este a qualidade de co-autor sem que lhe seja dado o direito ao contraditório: "bem pode acontecer que, por vingança, ódio ou qualquer outro sentimento mesquinho e pérfido, o autor de um crime, sentindo-se perdido, sem nenhuma possibilidade de defesa, por pura maldade, procure envolver, como partícipe, uma pessoa qualquer [25]".

            O contraditório é elemento essencial para a valoração da prova, além de ser uma garantia constitucional. A atribuição de valor probatório à palavra de um delator, sem a existência de qualquer suporte que lhe dê certeza de validade é, no mínimo, uma afronta à Lei Maior: aquele que faz uso do instituto da delação é ao qual cabe o ônus da prova, devendo, pois, provar a verdadeira sua imputação, sob pena de sofrer uma sanção por não tê-la provado. Desta feita, se for imputado um fato cometido como crime a uma pessoa, e não se provar verdadeira tal imputação, esta será falsa e o imputante incorrerá no crime de calúnia.

            Deve-se, pois, considerando a incompatibilidade das alegações do acusado Cristiano, utilizar-se da característica de divisibilidade da confissão, a fim de que comprovada a materialidade dos fatos bem como a sua autoria, considere-se que o acusado trouxe para si a responsabilidade pela conduta criminosa de latrocínio, e, ademais, considere-se falsa a imputação de que o empresário Jorge seria o mandante do crime, uma vez que, como já foi apresentado, não deve ser dado crédito ao instituto da delação, uma vez que o próprio Cristiano pode ter desejado incluir o seu patrão como mandante criminal, para tirar proveito desta situação e, quiçá, sofrer uma penalização menor.

            Mas não é só. Poder-se-ia avaliar o cometimento pelo acusado Cristiano de delito de calúnia qualificada (artigo 339); contudo, como já esclarecemos com a ilibada lição de FRANZ VON LISZT, não há que se falar em denunciação caluniosa quando é o acusado, em seu interrogatório, quem imputa, falsamente, fato definido como crime a um terceiro. Há que se notar que há sim a calúnia, mas que inexiste a denunciação caluniosa, a qual deve ser espontânea.

            A explicação não pára por aí. No interrogatório de um acusado não há que se falar em delatio criminis, e sim em chamada de co-réu, também conhecida por delação, de modo que se faz imprescindível instauração de investigação policial, a fim de se apurar a materialidade dos fatos, bem como de sua autoria, co-autoria ou participação. Provado que o delatado é autor, co-autor ou partícipe, passará ele a ser acusado e, provavelmente, denunciado; caso contrário, o delatado terá sido vítima de calúnia.


8 REFERÊNCIAS

            BITTENCOURT, Vinícius. O poder da calúnia: o caso Donati. 1.ed. [s.l.]: Editora Edição do Autor, [s.d.], 71p.

            CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial, volume 2. 5.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2005, 628p.

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            CARRARA, Francesco. Programa do curso de direito criminal: parte geral, volume II. 1.ed. Campinas: Editora LZN, 2002, 536p.

            FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. 2.ed. Porto Alegre: Editora Fabris, 2000, 208p.

            FIRMO, Aníbal Bruno de Oliveira. Crimes contra a pessoa. 5.ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, 434p.

            FRAGOSO, Christiano; FRAGOSO, José Carlos. Apontamentos sobre confissão e chamada de co-réu. Disponível em: . Acessado em: 14 de maio de 2006.

            JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal: parte especial, volume 2. 20.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1998, 507p.

            ______. Direito penal: parte especial, volume 4. 8.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1997, 348p.

            LISZT, Franz von. Tratado de direito penal alemão: tomo II. 1.ed. Campinas: Editoral Russell, 2003, 494p.

            MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. 1.ed. Curitiba: Editora Juruá, 2003, 142p.

            MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial – arts. 121 a 234 do CP –, volume 1. 13.ed. São Paulo: Editora Atlas, 1998, 493p.

            ______. Manual de direito penal: parte especial – arts. 235 a 361 do CP –, volume 3. 12.ed. São Paulo: Editora Atlas, 1998, 497p.

            ______. Processo penal.10.ed. São Paulo: Editora Atlas, 2000, 784p.

            NORONHA, Edgar Magalhães. Direito penal: volume 2. 13.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1977, 557p.

            NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, 1215p.

            ______. Código penal comentado. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, 1180p.

            SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais: na Constituição Federal de 1988. 3.ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2004, 158p.

            STOCO, Rui; REZENDE, Sérgio Jacinto. Código penal e sua interpretação jurisprudencial: parte especial, volume V, arts. 312 a 361. 1.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1979, 707p.

            TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 8.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2006, 916p.


Notas

            01

MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. 1.ed. Curitiba: Editora Juruá, 2003, p. 51.

            02

FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. 2.ed. Porto Alegre: Editora Fabris, 2000, pp. 66-67.

            03

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais: na Constituição Federal de 1988. 3.ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2004, p. 33.

            04

LISZT, Franz von. Tratado de direito penal alemão: tomo II. 1.ed. Campinas: Editora Russell, 2003, pp. 79-80.

            05

Idem, p. 80, nota 104 – nota do tradutor.

            06

LISZT, Franz von. Obra citada, p. 83.

            07

Interessante notar que a imputação de fato verdadeiro definido como crime não será, sob hipótese alguma, calúnia, podendo, contudo, constituir-se como delatio criminis, isto é, a comunicação da ocorrência de uma infração penal e, se possível, de seu autor, à autoridade policial, feita por qualquer do povo. Assim, poderá ser instaurado inquérito policial para apurar a materialidade do delito e a autoria do mesmo.

            08

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial, volume 2. 5.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2005, p. 240.

            09

Neste sentido: MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial – arts. 121 a 234 do CP –, volume 1. 13.ed. São Paulo: Editora Atlas, 1998, p. 155; CAPEZ, Fernando. Obra citada, p. 236; JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal: parte especial, volume 2. 20.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1998, pp. 200-202; NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 561. Em sentido contrário: NORONHA, Edgar Magalhães. Direito penal: volume 2. 13.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1977, p. 125.

            10

Neste sentido: CAPEZ, Fernando. Obra citada, pp. 237-238; FIRMO, Aníbal Bruno de Oliveira. Crimes contra a pessoa. 5.ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, pp.276-278; NUCCI, Guilherme de Souza. Obra citada, p. 561. Em sentido contrário: NORONHA, Edgar Magalhães. Obra citada, p. 125; MIRABETE, Julio Fabbrini. Obra citada, pp. 154-155. JESUS, Damásio Evangelista de. Obra citada, volume 2, pp. 202-203.

            11

CAPEZ, Fernando. Obra citada, p. 243.

            12

Em sentido contrário: GRECO FILHO, Vicente. Citado por NUCCI, Guilherme de Souza. Obra citada, p. 564: "Em contrário, manifesta-se Vicente Greco Filho, afirmando que essas restrições foram revogadas pela Constituição Federal de 1988, ‘tendo em vista a plenitude do regime democrático, no qual a verdade não admite restrição à sua emergência, qualquer que seja a autoridade envolvida’ (Manual de processo penal, p. 387)".

            13

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial – arts. 235 a 361 do CP –, volume 3. 12.ed. São Paulo: Editora Atlas, 1998, p. 159.

            14

No mesmo sentido: JESUS, Damásio Evangelista de. Obra citada, volume 4, pp. 245-246; STOCO, Rui; REZENDE, Sérgio Jacinto. Código penal e sua interpretação jurisprudencial: parte especial, volume V, arts. 312 a 361. 1.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1979, p. 337: "a falsa imputação de crime não prejudica somente a pessoa contra quem é feita, mas também à Justiça".

            15

Neste sentido: MIRABETE, Julio Fabbrini. Obra citada, volume 1, p. 159; CAPEZ, Fernando. Obra citada, volume 2, p. 247.

            16

LISZT, Franz von. Obra citada, p. 404.

            17

Idem, p. 37.

            18

BITTENCOURT, Vinícius. Obra citada, p. 31-37.

            19

CARRARA, Francesco. Programa do curso de direito criminal: parte geral, volume II. 1.ed. Campinas: Editora LZN, 2002, p. 327.

            20

Idem, pp. 409-412; Ver também: MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal.10.ed. São Paulo: Editora Atlas, 2000, p. 287.

            21

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 8.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2006, p. 541.

            22

CARRARA, Francesco. Obra citada, pp. 409-410, nota 188.

            23

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 433. Ver também: TOURINHO FILHO, Fernando da costa. Obra citada, pp. 542-543.

            24

FRAGOSO, Christiano; FRAGOSO, José Carlos. Apontamentos sobre confissão e chamada de co-réu. Disponível em: . Acessado em: 14 de maio de 2006.

            25

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Obra citada, p. 537.
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Sobre o autor
Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Diretor Secretário-Geral da Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH). Membro do Comitê de Pesquisa da Faculdade Estácio de Sá, Campus Vitória (FESV). Professor de Introdução ao Estudo do Direito, Direito Financeiro, Direito Tributário e Processo Tributário, no Curso de Direito da FESV. Pesquisador vinculado ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da FDV. Consultor de Publicações; Advogado e Consultor Jurídico sócio do Escritório Homem de Siqueira & Pinheiro Faro Advogados Associados. Autor de mais de uma centena de trabalhos jurídicos publicados no Brasil, na Alemanha, no Chile, na Bélgica, na Inglaterra, na Romênia, na Itália, na Espanha, no Peru e em Portugal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem. A diferença entre calúnia e denunciação caluniosa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1079, 15 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8520. Acesso em: 29 abr. 2024.

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