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Análise crítica sobre o art. 1.829 do Código Civil brasileiro e suas diversas interpretações

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02/11/2023 às 11:55
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6. DO POSICIONAMENTO DO STJ

O Superior Tribunal de Justiça uniformizou o entendimento7 de que o cônjuge sobrevivente, casado em regime da comunhão parcial de bens, concorre com os descendentes do de cujus somente em relação aos bens particulares deixados por este último.

Nesse sentido:

RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. HERDEIRO NECESSÁRIO. EXISTÊNCIA DE DESCENDENTES DO CÔNJUGE FALECIDO. CONCORRÊNCIA. ACERVO HEREDITÁRIO. EXISTÊNCIA DE BENS PARTICULARES DO DE CUJUS . INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.829, I, DO CÓDIGO CIVIL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA. (...)

2. Nos termos do art. 1.829, I, do Código Civil de 2002, o cônjuge sobrevivente, casado no regime de comunhão parcial de bens, concorrerá com os descendentes do cônjuge falecido somente quando este tiver deixado bens particulares.

3. A referida concorrência dar-se-á exclusivamente quanto aos bens particulares constantes do acervo hereditário do de cujus.

4. Recurso especial provido.

(Brasília. Superior Tribunal de Justiça, 2015, grifo nosso).


7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme visto em todos os casos analisados, a incongruência de pensamentos em relação ao inciso I do artigo 1829 do Código Civil é motivo de grande debate na doutrina brasileira. Diante as análises feitas neste trabalho, percebe-se que não há, atualmente, uma solução capaz de dirimir todos os problemas trazidos pelo referido dispositivo legal. Cada uma das interpretações sugeridas enseja problemas consideráveis e de complexas resoluções. Diante disso, pode-se inferir que o critério utilizado pelo legislador para determinar se haverá concorrência do cônjuge com os descendentes do de cujus é por demasiado falho.

Pode-se dizer que perante a atual redação do inciso em análise, a interpretação mais adequada é a adotada pelo Superior Tribunal de Justiça e pela doutrina majoritária (concorrência do cônjuge sobrevivente e dos descendentes do de cujus apenas nos bens particulares deixados por este último), tendo em vista que, malgrado apresente problemas - mormente o de não impedir que a união estável sobreponha-se ao casamento realizado sob o regime da comunhão de bens em alguns casos-, garante a proteção do cônjuge supérstite e os direitos dos demais herdeiros, dificulta a existência de fraudes e não condiciona a qualidade de herdeiro do consorte sobrevivo à existência de bens deixados pelo de cujus.

Todavia, embora a interpretação supramencionada seja a mais adequada, é mister destacar que nenhuma das interpretações sugeridas é capaz de sanar integralmente os problemas, uma vez que há má redação legislativa e as interpretações devem ser limitadas pela letra da lei, ou seja, o intérprete não pode assumir o papel do legislador e modificar categoricamente o que está positivado no código, ainda que sob o argumento de melhorar o disposto na lei. Portanto, a solução ideal seria o legislador fazer modificações no campo do direito sucessório, a fim de garantir que: (I) o casamento realizado sob o regime da comunhão parcial de bens e a união estável estejam em igualdade de direitos, impedindo que um sobreponha-se ao outro ; (II) que o casamento pelo regime da comunhão universal de bens não seja desfavorecido em relação ao casamento realizado pelo regime da comunhão parcial de bens e (III) que não haja possibilidades para fraudes.

Para tanto, o mais adequado seria revogar o artigo 1.790 do Código Civil e tratar, no mesmo dispositivo legal, dos direitos sucessórios oriundos dos casamentos e das uniões estáveis, garantindo que tanto o cônjuge casado pelo regime da comunhão parcial de bens, quanto o(a) companheiro(a), além de possuir metade de todos os bens adquiridos onerosamente em conjunto, seja herdeiro(a) do de cujus apenas no que tange aos bens particulares deixados por este. Essa alteração no disposto no Código Civil resolve o último problema da interpretação sugerida: impede que a união estável tenha mais direitos que o casamento realizado sob o regime da comunhão universal de bens, sem causar extremos prejuízos e discriminações à união estável.


Nota do Editor

Corroborando o presente estudo, o Supremo Tribunal Federal decidiu, com repercussão geral, pela fixação da seguinte tese:

“No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”.

(Temas 498 e 809 do STF, com repercussão geral; RE 646.721 e RE 878.694 , julgados em 10/05/2017)


REFERÊNCIAS

ALVES, Jônes Figueiredo; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Anotado. São Paulo: Método, 2005.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 6º vol. 22. Ed.; Direito das Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2008.

CAHALI, Francisco José Cahali; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Curso avançado de direito civil , v. VI, 2003;

BRASIL, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <h ttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 25 dez. 2015;

BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Concorrência acervo hereditário. Recurso Especial Civil 1.368.123-SP. Relator: Ministro Sidnei Beneti. 22 abr. 2015. Informativo nº 0563, Brasília, DF, p. 5. 14 de jun. de 2015.

BRASIL, Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Inventário. Agravo de Instrumento 1.0024.10.199410-1/001. Relator: Desembargador Eduardo Andrade – 1 ª Câmara Cível. 13 jul. 2012.

BRASIL, Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível N.º 1.0024.04.463851-8/001. Relator: Desembargador Nepomoceno da Silva. 06 dez. 2007;

BRASIL, Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Agravo de Instrumento 00579354220138190000. Relator: Desembargador Carlos Santos de Oliveira – 22 ª Câmara Cível. Julgamento em 21 de jan. de 2012. Publicação da súmula em: 27 fev. 2014.

BRASIL, Tribunal Regional de São Paulo. Agravo de Instrumento 22260939420148260000. Relator: Desembargador Silvério da Silva – 8 ª Câmara De Direito Privado. 30 abr. 2015.

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BRASÍLIA. Câmara Legislativa. Projeto de Lei PL 508/2007. Altera dispositivos da Lei 10.406/2002 que dispõem sobre os direitos sucessórios entre cônjuges e companheiros de união estável. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=345372> Acesso em: 06 out. 2015;

JORNADA DE DIREITO CIVIL, 3, 2004, Brasília. III Jornada de Direito Civil. Portal do Conselho da Justiça Federal. 2005;

LACERDA, Cesar, concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes e ascendentes. 2006. Monografia apresentada Universidade do Vale do Itajai – UNIVALI – para obtenção do grau de bacharel em Direito;

LACERDA, Maria da Glória Souza; DUTRA, Vera Carmem de Ávila, Interpretação do art. 1829, I, do Código Civil de 2002, no tocante ao regime da comunhão parcial de bens, revista das Faculdades Integradas Vianna Júnior – Vianasapiens, v.1 Ed especial, out. 2010.

LISBOA, Roberto Senise, manual de direito civil, v. 5: direito de família e sucessões, 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2010;

GONÇALVES, Carlos Roberto, direito civil brasileiro , V. 7, direito das sucessões, 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2011;

NEGRÃO, Theotônio; GOUVÊIA, José Roberto F.; BONDIOLI, Luis Guilherme A. Código Civil e Legislação Civil em Vigor, 30. Ed. São Paulo, 2011;


Notas

1 Art. 1659: Excluem-se da comunhão:

I - os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar;

II - os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares;

III - as obrigações anteriores ao casamento;

IV - as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal;

V - os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão;

VI - os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;

VII - as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.

2 Art. 1.661. São incomunicáveis os bens cuja aquisição tiver por título uma causa anterior ao casamento.

3 Art. 1.662. No regime da comunhão parcial, presumem-se adquiridos na constância do casamento os bens móveis, quando não se provar que o foram em data anterior.

4 Disponível em: <https://www.mariaberenice.com.br/uploads/2_-_ponto_final.pdf >. Acesso em: 2 out. 2015.

5 Veja página 7.

6Recomenda-se ler a íntegra do projeto disponível em: <https://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=345372> Acesso em: 06 out. 2015.

7 Nesse sentido, vide o noticiário do STJ. Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/Se%C3%A7%C3%A3o-uniformiza-entendimento-sobre-sucess%C3%A3o-em-regime-de-comunh%C3%A3o-parcial-de-bens> Acesso em: 06 out. 2015.


Abstract: The following scientific paper intends to detail the problem with the multiple interpretations given to the Article 1929, I, Law 10.406/2012 (Brazilian Civil Code), that talks about the dispute for heritage goods between the living spoUse, married with partial separation of property, and the descendants from the deceased. To this end, will be addressed each of the four main currents of homeland doctrine discussing the topic, as well as the understanding of the Superior Tribunal de Justiça. Finally, the main objective of this work is to find the main problems of each interpretation in order to prove that none of them is in accordance with Brazilian legal system, having therefore an urgent need to change the legal provision under discussion.

Keywords: Concurrence. Sucession. Partial community property. Article 1829 Civil Code. Heritage.

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Sobre o autor
Igor Ladeira dos Santos

Sócio fundador do Escritório Jander Maurício Brum & Igor Ladeira dos Santos Advogados Associados. Formado em direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF; Especialista em Direito Imobiliário pela Universidade Cândido Mendes. Corretor de imóveis. Foi editor do periódico jurídico da UFJF - Alethes. Áreas de estudo aprofundado: Direito Imobiliário; Direito Sucessório; Direito Civil e Direito do Consumidor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Igor Ladeira. Análise crítica sobre o art. 1.829 do Código Civil brasileiro e suas diversas interpretações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7428, 2 nov. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46234. Acesso em: 20 mai. 2024.

Mais informações

O presente artigo científico foi, originalmente, pubicado no periódico jurídico Alethes, da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF http://periodicoalethes.com.br/media/pdf/10/periodico-alethes-edicao-10_2.pdf

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