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Depoimento sem dano.

O olhar interdisciplinar na compreensão do delito e o respeito à dignidade da pessoa humana na inquirição de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual

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25/04/2011 às 08:07
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4 A construção social do conceito de infância

O conceito de infância tal qual é compreendido na atualidade, nem sempre vigorou nas sociedades humanas. Não havia, em épocas anteriores ao século XVI, lucidez e clareza sobre as etapas da vida humana. Não era admitida a existência autônoma da infância como uma categoria diferenciada, de pessoas em fase de desenvolvimento psicológico. Crianças e adolescentes eram tratados como "adultos inferiores". Bastava passar o período de dependência física da mãe para serem tratados como adultos. Porém, somente a partir do século XIX doutrinadores e estudiosos passaram a se preocupar com as crianças.

Com a publicação, na França em 1960 e nos Estados Unidos em 1962 do livro de Ariès sobre a "História social da infância e da família", o autor nos trouxe um dos primeiros estudos sobre a infância, fase de desenvolvimento psíquico. Toma sentido a assertiva do autor, aludido por Nacsimento, Brancher e Oliveira (s/d, p.4):

Durante a Idade Média, antes da escolarização das crianças, estas e os adultos compartilhavam os mesmos lugares e situações, fossem eles domésticos, de trabalho ou de festa. Na sociedade medieval não havia a divisão territorial e de atividades em função da idade dos indivíduos, não havia o sentimento de infância ou uma representação elaborada dessa fase da vida.

A arte e a literatura exerceram extrema importância histórico-social no conceito de infância, pois foi a partir de criações artísticas de imagens e livros, principalmente a partir do séc. XVII, que a família passou a ser retratada de forma significante. Assim, um sentimento de compaixão foi aos poucos sendo criado e a criança e o adolescente começavam a ser reconhecidos como seres dependentes - tanto fisicamente no trabalho, como na vida social e cultural - dos seus pais, que tinham a responsabilidade da criação e educação dos mesmos até atingirem um estágio de vida onde seriam capazes de sobreviverem com as "próprias forças".

A palavra infância passou a designar a primeira idade de vida: a idade da necessidade de proteção, que perdura até os dias de hoje. Pode-se perceber, portanto, que até o século XVII, a ciência desconhecia a infância. Isto porquê, não havia lugar para as crianças nesta sociedade. Fato caracterizado pela inexistência de uma expressão particular a elas. Foi, então, a partir das idéias de proteção, amparo, dependência, que surge a infância. As crianças, vistas apenas como seres biológicos, necessitavam de grandes cuidados e, também, de uma rígida disciplina, a fim de transformá-las em adultos socialmente aceitos.

Na atual sociedade contemporânea, a divisão de faixas etárias entre crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos encontra-se acentuada pelo alto nível dos estudos realizados sobre cada etapa da vida, e sobre a evolução psicológica que transcorre na vida das pessoas através da idade e experiência de cada ser humano. O conceito de infância depende da cultura de cada sociedade. Porém, é consenso a afirmação de que crianças e adolescentes não são seres inferiores, seres incapazes, mas sim, pessoas em desenvolvimento psíquico, físico, biológico e intelectual. Correspondem a uma mente aberta para aprendizados. Época onde os conceitos e princípios aos poucos são armazenados na consciência, onde "tudo é novo", onde busca-se o aprendizado através de uma aguçada curiosidade.

O "sucesso" na formação da pessoa em fase de desenvolvimento depende do contexto social em que essa pessoa está inserida, depende dos pais e de toda a família, da escola na qual a criança e/ou o adolescente busca uma formação e dos amigos. Enfim, existe uma relação do ser humano com o meio social em sua formação. Torna-se relevante a afirmação de Sarmento, referido por Nascimento, Brancher e Oliveira (s/d p. 13/14)

O imaginário social é inerente ao processo de formação e desenvolvimento da personalidade e racionalidade de cada criança concreta, mas isso acontece no contexto social e cultural que fornece as condições e as possibilidades desse processo. As condições sociais e culturais são heterogêneas, mas incidem perante uma condição infantil comum: a de uma geração desprovida de condições autônomas de sobrevivência e de crescimento e que está sob o controle da geração adulta.

Quando as instituições informais (família, escola, igreja...) conseguem transmitir as normas de conduta e de convivência para um ser humano em fase de desenvolvimento psicológico, as instituições formais atuam apenas para reiterar algo já exposto, não havendo necessidade de opressão e sanção. No entanto, "o princípio do parens patriae legitima que o Estado assuma a responsabilidade pela criança nos casos em que a família falha seu papel. E o princípio do melhor interesse da criança enfatiza como primordial o bem-estar e interesse da criança" (RAMIRES; PASSARINI; SANTOS, 2009 p. 216). Em síntese, a família, a escola, a sociedade e a infra-estrutura do bairro onde a criança convive são de extrema relevância na formação deste indivíduo, para que ele possa acatar com passividade e tranqüilidade as normas de socialização.


5 A vulnerabilidade das crianças e dos adolescentes para se tornarem vítimas de abuso sexual.

Algumas características físicas, biológicas e psicológicas de um ser humano, sua sociedade, sua vizinhança, sua rotina diária, seus costumes, seu sexo e sua idade podem torná-lo mais ou menos vulnerável a vitimização do que outro.

Não se pode aceitar, na criminologia moderna, um conceito anacrônico onde afirma que existe vítima nata. A vitimização depende fundamentalmente de três fatores: sociais, pessoais e situacionais. Isso significa afirmar que o risco de vitimização não é genérico, mas sim, diferencial, variando de pessoa para pessoa.

Os déficits psico-biológicos – como idade, sexo e enfermidade – caracterizam a tipologia de vulnerabilidade pessoal da vítima na etiologia do delito. Na vulnerabilidade relacional destaca-se o desequilíbrio presente entre vítima e ofensor, e a dinâmica desintegradora em que degenera a interação (ex. relação entre homem e mulher). A vulnerabilidade contextual expressa a ausência de defesa específica de certas vítimas determinada pelas características vitimogenêsicas de um concreto habitat ou entorno: o bairro, a escola, o local de trabalho, o espaço virtual, etc. A vulnerabilidade social deriva de estruturas sócio-econômicas.

Após essa explanação, pode-se declarar que o crime não é um fato genérico, muito mesmo aleatório, ele é seletivo: existem vítimas mais ou menos vulneráveis, com maior ou menor grau de fatores de risco, locais apropriados para o cometimento do delito, um contexto social e uma relação entre delinqüente-vítima para que o crime ocorra. Enfim, depende de toda a gama de fatores psicológicos, biológicos e sociais.

O abuso sexual em crianças e adolescentes expressa uma visível relação de superioridade do adulto e, na grande maioria das vezes, também de confiança. É extremamente comum esses casos acontecerem dentro da família, caracterizando a violência intrafamiliar. "Por violência intrafamiliar entende-se aquela que ocorre entre os membros da família, nos diferentes subsistemas (conjugal, parental, fraternal), principalmente no ambiente da casa, porém, não exclusivamente nele" (MACIEL; CRUZ, 2009 p.89).

Os dados apontados na pesquisa realizada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, onde foram consultados 295 processos de abuso sexual contra crianças e adolescentes entre maio de 2003 e dezembro de 2008, demonstram a relação intrafamiliar entre delinqüente e vítima na grande maioria dos fatos:

A pesquisa acima mencionada comprova a vulnerabilidade de pessoas em desenvolvimento psicológico de se tornarem vítimas dentro da própria casa, onde o delinqüente encontra facilidade na realização do ato devido à confiança que nele a vítima depositava. Baseando-se na freqüência e incidência na ocorrência desse fenômeno delitivo intrafamiliar, é necessário intensificar estudos de caráter epidemiológico sobre a natureza dessa violência e, conseqüentemente, a análise de intervenções preventivas eficazes.

É importante olhar para esses delitos com as lentes da criminologia, isto é, assumir o caráter que esta ciência nos ensinou, levando em consideração toda a relação psicológica e social do delito, e examiná-lo com o auxílio de todas as ciências que possam nos ajudar a compreender o fato e os fatores causadores. Toma sentido a assertiva de Faleiros, apontado por Cezar (2007, p.44):

Ética, cultural e socialmente, a violência sexual contra crianças e adolescentes é uma violação de direitos humanos universais, de regras sociais e familiares das sociedades que ocorre. É, portanto, uma ultrapassagem dos limites humanos, legais, culturais, sociais, físicos, psicológicos. Trata-se de uma transgressão e, nesse sentido, é um crime, ou seja, um ato delituoso, delinqüente, criminoso e inumano da sexualidade da criança e adolescente.

Crianças e adolescentes possuem imaturo desenvolvimento psicológico, não compreendem as atividades sexuais, portanto, incapazes de dar qualquer tipo de consentimento e legitimidade ao agressor. Muitas vezes, pela relação de confiança, a vítima aceita o ato por não saber dos danos que este pode causar, e acreditar que está fazendo o certo, ou seja, obedecendo a seu pai ou padrasto, por exemplo, que na maioria das vezes, utiliza a vítima como um instrumento de descarga de seus impulsos, para aliviar suas tensões, tal como a droga para o drogadito. Fisicamente, as vítimas são passivas, oferecem poucas ou não oferecem chance alguma de defesa. Isso demonstra a vulnerabilidade das crianças e adolescentes a se tornarem vítimas de abuso sexual.

Quando ocorrem tais delitos, geralmente por falhas nas instituições informais como a família e a escola, por exemplo, surge a necessidade de uma atuação altruísta das instituições formais, que devem olhar o delito como um problema social e individual, aceitando o alto grau de vulnerabilidade da vítima para a revitimização, pois esta ainda está em desenvolvimento, está em fase de aprendizado educacional. O sistema legal deve ser capaz de colher informações essenciais da vítima sem aumentar os danos psíquicos ocasionados através da vitimização primária.

A intervenção judicial deve priorizar a proteção integral da criança, isto é, aceitar o seu caráter de possuir a mente em formação, tomando medidas que impeçam a continuação do abuso, viabilizando uma intervenção técnica adequada que a ajude a enfrentar tranquilamente o problema. É inadmissível, mas real e cotidiano, o sistema judicial investigar o fato, buscando a culpabilização e condenação do abusador, esquecendo a reintegração da vítima na sociedade que, quando criança ou adolescente, é vulnerável a alterações na personalidade e na conduta. Albornoz, ao relembrar citação própria em outra obra (2009, p.183), destaca as consequências psíquicas possíveis após a ocorrência de fatos traumáticos:

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As vivências abusivas instauram na mente da criança um processo de distribuição de energia psíquica que faz com que a personalidade dos jovens se estruture a partir do forte impacto na adversidade e em função dele, abafando as chances de desenvolvimento da tendência natural de cada indivíduo.

Desta forma, justifica-se a necessidade de humanização no decorrer do processo judicial e, principalmente, na vida da vítima que, quando estiver em fase de desenvolvimento psicológico, poderá sofrer fortes alterações comportamentais. Segundo Ramires, Passarini e Santos (2009 p. 214), o impacto da violência doméstica na vida da criança e do adolescente atinge diretamente todas as esferas do desenvolvimento e organização do self, isto é, "as dimensões afetiva, cognitiva, social, física e neurológica [...]".

O depoimento da vítima do delito é de extrema relevância para a comprovação dos fatos. Porém, quando se trata de crianças e adolescentes, deve-se levar em consideração o atual estado psíquico e fazer com que a vítima não reviva o fato, mas sim, relembre. Reviver é o mesmo que revitimar; relembrar é fazer com que tal fato faça parte da biografia da pessoa com o mínimo de danos psíquicos possíveis.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul divulgou oficialmente um gráfico demonstrando que, na grande maioria das vezes, o abusador comete diversos vezes o delito até esse ser descoberto. Os dados foram obtidos através de uma consulta realizada em 295 processos de abuso sexual contra criança e adolescentes, entre maio de 2003 e dezembro de 2008:

Devido à confiança depositada no delinqüente e a não compreensão dos atos nos quais está sendo vítima, crianças e adolescentes, por vergonha e medo, não denunciam o caso que, quanto mais for reiterado, maior será o grau de vitimização. Essas pesquisas representam apenas uma aproximação da realidade, pois muitos casos não são levados ao judiciário e incrementam a cifra negra nas estatísticas. "[...] Os efeitos da violência são detectados a posteriore, e é comum que um tempo longo (anos, às vezes) transcorra entre a violência original e o aparecimento de um defeito observável" (GONÇALVES, 2005 p.288). Desta forma, destaco a relevância de professores, vizinhos e amigos de detectarem alterações no comportamento da criança, que pode estar sendo vítima de abuso sexual.

Para angariar a confiança da criança e/ou do adolescente, o abusador costuma permitir que sua vítima participe de atividades proibidas, criando um vínculo de afeto entre os dois. Analisemos um caso hipotético: a mãe pede para a filha de 5 anos de idade não sair de casa sozinha para comprar sorvete por que é perigoso. Juntamente com seu noivo, reitera o pedido para que seu ele também não autorize a criança a sair sozinha. No entanto, quando está sozinho com a sua enteada, o padrasto autoriza a criança a buscar o sorvete. Dessa forma, cria-se um vínculo muito forte entre os dois, uma ilusão de amor e carinho. A relação entre o casal (padastro e mãe) é muito boa. O padrasto aproveita a relação e o estado de tranqüilidade no contexto familiar e começa a acariciar a criança de apenas 5 anos em suas regiões genitais. A criança aceita, pois está em fase de desenvolvimento psicológico e não compreende as relações sexuais, acreditando que esse ato do padrasto é mais uma demonstração de carinho e amor. Aos poucos, o padrasto ganha confiança e, através dessa relação de superioridade, passa a abusar sexualmente de sua enteada por longos e duradouros períodos.

A criança cresceu. Agora com 12 anos, percebeu que estava sendo vítima de um abuso sexual, porém, reconhece o medo de relatar o caso. O silêncio das vítimas de abuso sexual ocorre devido a alguns fatores, tais como: ameaças físicas e psicológicas; o abusador aproveitou da imaturidade psíquica da vítima e a distorceu a realidade, fazendo com que a vítima, psicologicamente, se sentisse abusadora; medo de perda de atenção, carinho e afeto do abusador que "a ama tanto"; medo de também ganhar uma punição pelos fatos, afinal de contas, fez muitas vezes o que a sua mãe proibiu e o padrasto autorizou, como buscar o sorvete, por exemplo.

Além de vulnerável à vitimização, a puberdade precoce - caracterizada pelas alterações visíveis na fisiologia humana, como o aumento da massa corporal e o desenvolvimento de mamas – insere as crianças e adolescentes dentro de um grupo de maior risco de se tornarem vítimas de abuso, pois seu corpo torna-se ainda mais atraente. Além disso, seu desenvolvimento fisiológico precoce não é acompanhado pelo desenvolvimento psicológico, isto é, a criança não é capaz de discernir ou tomar qualquer atitude referente à sexualidade, mesmo que o seu corpo atingiu um grau elevado de desenvolvimento, pois ainda não compreendeu a alteração fisiológica que ocorreu. Por isso, torna-se relevante a atuação dos pais ou responsáveis de educarem seus filhos de acordo com o seu desenvolvimento, ter consciência e aceitar a realidade social, ou seja, aceitar o rápido desenvolvimento do corpo da criança na puberdade e fazer o máximo possível para fazer com que ela também compreenda seu desenvolvimento.

Reiteradamente, demonstro a vulnerabilidade do ser humano em desenvolvimento psicológico para se tornar vítima de um abuso sexual, e também, extrema vulnerabilidade para se tornar uma vítima do sistema legal que não vê o delito como seletivo (não leva em consideração os fatores sociais, biológicos, físicos, psicológicos...), mas sim, como um simples ato de desrespeito à norma jurídica vigente.

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Sobre o autor
André Frandoloso Menegazzo

Estudante; Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Meridional - IMED - de Passo Fundo/RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENEGAZZO, André Frandoloso. Depoimento sem dano.: O olhar interdisciplinar na compreensão do delito e o respeito à dignidade da pessoa humana na inquirição de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2854, 25 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18930. Acesso em: 9 mai. 2024.

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