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A inconstitucionalidade do art. 54 e parágrafos da Resolução TSE n.º 22.712/2008.

O voto dos portadores de necessidades especiais

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24/01/2011 às 16:52
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6 TRATAMENTOS CONSTITUCIONAL E INFRACONSTITUCIONAL DO VOTO DOS INCAPAZES

A Carta Magna de 1988 regula os direitos políticos em seus artigos 14 e 15. Nestes dispositivos o constituinte originário fixou diretrizes gerais sobre as formas de exercício da soberania popular bem como a capacidade eleitoral.

O artigo 14, § 1º, inciso I define como obrigatórios o alistamento e o voto para os maiores de dezoito anos. No inciso II, determina que para os analfabetos, para os maiores de setenta anos e para os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos, o alistamento e o voto são facultativos. No § 2º, proíbe o voto para os estrangeiros e os conscritos.

Já no artigo 15, inciso II, há previsão da suspensão dos direitos políticos para aqueles que estiverem com incapacidade civil absoluta. O conceito de incapacidade civil absoluta está expresso no artigo 3º código civil de 2002:

Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:

I - os menores de dezesseis anos;

II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;

III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.

Assim, fazendo uma interpretação sistemática do art. 15, inciso II da Constituição Federal, combinado com o art. 3º, inciso III, do Código Civil, conclui-se que o constituinte originário - ao tratar daqueles que, mesmo por causa transitória, não possam exprimir sua vontade - estabeleceu, na Carta Maior, que os direitos políticos de tais indivíduos devem ser suspensos.

No âmbito infraconstitucional, a Lei n.º 4.737/1965 - Código Eleitoral, em seu artigo 6º, inciso II alínea "a", recepcionado pela Carta Magna de 1988, exclui a obrigatoriedade do voto para os enfermos, admitindo a justificativa no prazo de 30 dias, conforme disposição de seu artigo 7º.


7 DOS CRIMES DOS ARTIGOS 309 E 312 DO CÓDIGO ELEITORAL

O Código Eleitoral, com o fito de proteger os valores do voto direto, personalíssimo e secreto, tipifica como crimes eleitorais as seguintes condutas:

Art.309. Votar ou tentar votar mais de uma vez, ou em lugar de outrem:

Pena – Reclusão até três anos.

...

Art. 312. Violar ou tentar violar o sigilo do voto:

Pena – detenção até dois anos.

Ou seja, a Lei ordinária n.º 4.737/65 consubstancia os valores supremos do voto direto e secreto, definindo os tipos penais retro citados, para garantir que o voto seja exercido com liberdade (art. 312) e individualmente ( art. 309).

Pode-se defender que o disposto no art. 54 da Resolução TSE n.º 22.712/2008 não contradiz o que se prescreve nos tipos acima descritos, pois, naquele caso, há o consentimento do eleitor, que, por sua vontade, permite a outrem digitar o voto na urna eletrônica em seu lugar. Ou seja, o consentimento do eleitor serviria como causa de excludente de ilicitude ou de atipiticidade da conduta. Seria, em verdade, a aplicação do conceito de consentimento do ofendido ao crime eleitoral.

O código penal não contempla o consentimento do ofendido como uma das causas que excluem a ilicitude (art. 23 Código Penal), entretanto, a doutrina e jurisprudência pátrias têm entendido que tal instituto configura uma causa supra legal de exclusão de antijuridicidade ou, até mesmo, causa de atipicidade.

SOUSA (2009, p.06), em artigo científico apresentado no I Seminário de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFRN-CERES, ensina que:

...como excludente de antijuridicidade, o consentimento do ofendido exclui a ilicitude quando o comportamento do sujeito ativo importar numa lesão direta ao bem jurídico. ... como causa de atipicidade da conduta, o consentimento do detentor do bem juridicamente protegido excluirá a tipicidade da ação ou omissão quando o tipo descrever uma ação cujo caráter ilícito reside em atuar contra a vontade do sujeito passivo.

Outrossim, insta ressaltar que, para o consentimento do ofendido funcionar como causa de atipicidade da conduta, é mister que o bem jurídico lesado ou exposto a perigo de lesão se situe na esfera da disponibilidade do aquiescente (TOLEDO apud GRECO). Além disso, o titular do bem ou direito protegido deve ser o único titular do mesmo (SOUSA, 2009, p.07).

Resta-nos, então, analisar se o voto personalíssimo, direto e secreto é um direito disponível do cidadão eleitor ou é uma garantia de toda a sociedade e do próprio processo eleitoral.

As normas que definem os crimes eleitorais são regras de ordem pública, devido à alta relevância do processo eleitoral para concretização de um estado democrático de direito. Em decorrência, as ações penais que visam à apuração de crimes eleitorais são promovidas pelo Parquet, constitucionalmente legitimado como titular da ação penal pública.

In caso, devido aos valores protegidos (voto pessoal e secreto) pela norma penal eleitoral serem essenciais à democracia, a realização das condutas tipificadas nos artigos 309 e 312 do Código Eleitoral agridem não só o eleitor vitimado, mas toda coletividade. Daí a indisponibilidade e a obrigação, por dever de ofício, do Parquet atuar na efetivação do jus puniendi.

Por isso, considerando o ordenamento positivo, a doutrina que estuda o consentimento do ofendido e a própria natureza pública das ações penais que apuram os crimes definidos no código eleitoral, não se deve concluir que o bem jurídico protegido, o voto pessoal e secreto, seja disponível.

Além dos pontos acima tratados, tem-se ainda o fato de que o TSE, através da Resolução n.º 22.712/2008 (norma regulamentar que tem fundamento de validade no Código Eleitoral) permite a realização de uma conduta que o próprio código eleitoral criminaliza. É, pois, uma impropriedade que salta aos olhos e fere todos os conceitos teóricos e legais, no que tange à revogação de normas jurídicas. A ciência do direito ensina que só uma lei de hierarquia igual ou superior pode revogar outra anterior. O TSE esqueceu essa lição primária e fez uma norma secundária derrogar disposições da norma primária que lhe serve de fundamento de validade.


8 INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 54 DA RESOLUÇÃO N.º 22.172/2008

Ao longo do exposto procurou-se demonstrar cinco fatos: a) o voto tem um caráter personalíssimo e sigiloso, b) as resoluções do TSE são normas secundárias, c) a porcentagem de eleitores que se enquadram no conceito de "portadores de necessidades especiais" é relevante e capaz de desequilibrar um pleito municipal, d) as normas constitucionais e infraconstitucionais impõem aos incapazes de exercer o voto per si a suspensão dos direitos políticos, e) o Código Eleitoral considera crime votar no lugar de outrem e violar o sigilo do voto.

Partindo-se destes fatos e construindo uma argumentação lógica, chega-se à conclusão de que o disposto no artigo 54 e parágrafos da Resolução n.º 22.712/2008 afronta a Constituição em vigor.

Iniciando pelo caráter personalíssimo do voto, tem-se que a Constituição Federal, em seu art. 60, § 4º, inciso II, dispôs expressamente que o voto deve ser direto e secreto. CERQUEIRA(2008, p.335) ensina que o voto é o exercício do sufrágio. ... É o ato político que materializa, na prática, o direito de votar. O referido autor conceitua voto direto como sendo aquele em que os eleitores escolhem por si e sem intermediários os governantes e representantes.

Além do fato de ser direto e secreto, CERQUEIRA(2008, p. 335) considera o caráter pessoal do voto (não se admite voto por correspondência ou procuração) como sendo um atributo essencial, a fim de que expresse, efetivamente, a vontade do eleitor.

SILVA(2007, p. 360) define que o voto é direto quando os eleitores escolhem, por si, sem intermediários, os seus representantes e governantes. Ainda usando as palavras do professor SILVA(2007. p. 358-359), para que o voto constitua legítima expressão da vontade popular deve revestir-se de garantias que efetivem os atributos da sinceridade e autenticidade. Finaliza afirmando que a personalidade do voto é indispensável para realização destes atributos e que o eleitor deverá estar presente ele próprio, não se admitindo, no sistema brasileiro os votos por correspondência ou procuração.

Outro atributo necessário à soberania da vontade popular é a liberdade de voto. Para garantir essa liberdade, o constituinte originário impôs o sigilo do voto.

Assim, o artigo 54 e parágrafos da Resolução n.º 22.712/2008, desrespeitam os atributos protegidos pela Carta Maior, estando, pois, eivados de inconstitucionalidade material.

Continuando, insta analisar o vício formal que contamina a Resolução ora apreciada. O TSE, como já visto, possui competência regulamentar para edição de normas secundárias que visem a dar execução às leis eleitorais. Por isso, as normas dele emanadas estão localizadas em patamar inferior às normas primárias (leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias etc.), quiçá à Constituição da República. A Resolução n.º 22.712/2008 teve sua elaboração decorrente de processo diverso do processo legislativo para edição de normas primárias e, desta sorte, não poderia trazer a inovação objeto da análise. Assim, possui também vício formal de validade, ou seja, é também formalmente inconstitucional, já que elaborada por órgão incompetente para edição de normas que inovem o ordenamento jurídico.

Quanto ao terceiro fato, qual seja, o percentual de eleitores que se enquadram no conceito de "portadores de necessidades especiais" ser relevante e capaz de desequilibrar um pleito municipal, tal fato, por si só, já torna a edição de uma norma, como a presente no art. 54 e parágrafos, no mínimo inoportuna e inconveniente. Isto porque o corruptor terá, no caso da compra de votos de eleitores portadores de necessidades especiais, uma maior certeza de que seu "investimento" foi "lucrativo".

Em quarto lugar, analisando o que dispõe a Constituição Federal, no art. 15, inciso II, vê-se que quando o eleitor por causa transitória está impedido de exprimir sua vontade, há a imposição da suspensão dos direitos políticos. Quem não consegue exercer o voto per si está transitoriamente incapaz de exprimir sua vontade e por isso, em obediência à Carta Maior, deveria ter seus direitos políticos suspensos. Assim, uma norma infraconstitucional permitir que outrem vote por ele fere não só o caráter pétreo do voto direto e secreto, mas também a própria mens legis da Carta Maior.

A maneira de conciliar o direito ao voto para os portadores de necessidades especiais que não conseguem, sozinhos, digitar o voto na urna eletrônica ou escrevê-los na cédula de votação é fornecer meios auxiliares que conservem a pessoalidade e sigilo do voto.

Por último, considerando o texto literal expresso no artigo 309, segunda parte, da Lei n.º 4.737/65, que criminaliza a conduta de "votar no lugar de outrem" bem como o artigo 312 da retro citada norma que considera crime eleitoral "violar ou tentar violar o sigilo do voto", veem-se incongruência e contradição, uma vez que uma resolução, que tem como fundamento de validade o Código Eleitoral, permite a realização de uma conduta tipificada como crime neste mesmo código. É uma antinomia entre a norma de hierarquia inferior com a norma de hierarquia superior que lhe dá fundamento de validade.

Ex positis, conclui-se que o artigo 54, § § 1º e 2º, da Resolução n.º 22.712/2008 é inconstitucional.


9 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente artigo, demonstrou-se que o constante no artigo 54 e parágrafos da Resolução TSE n.º 22.712/2008 possui vários vícios que maculam sua constitucionalidade.

A evolução do voto, iniciando do período do Império até a atualidade, mostra o aumento da importância dada pelo legislador constituinte ao voto direto e secreto, a fim de garantir eleições livres e limpas. O TSE, com a nobre intenção de promover a inclusão dos portadores de necessidades especiais no exercício da cidadania, relativizou o caráter personalíssimo do voto, autorizando que um "portador de necessidade especial" convide alguém de sua confiança para votar por ele.

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Tendo em vista a dificuldade de definir claramente quem se enquadra como detentor desta prerrogativa, com arrimo em leis que conceituam a expressão "portador de necessidades especiais", classificaram-se os destinatários da norma. A partir desta classificação e utilizando os dados obtidos do TRE/RN, provou-se a potencialidade lesiva para o processo eleitoral no caso de manipulação do voto dessa classe de eleitores através de abuso de poder econômico e corrupção.

Não bastasse isso, com fulcro em conceitos científico jurídicos de autores de renome, devidamente referenciados, como o da supremacia constitucional, das cláusulas pétreas, da hierarquia das normas, do poder regulamentar, da forma de revogação de normas, bem como através da exegese de dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que tratam expressamente do voto daqueles que, mesmo por causa transitória não conseguem exprimir sua vontade, alcançou-se a meta traçada.

A inclusão dos portadores de necessidades especiais deve acontecer respeitando-se à Carta Magna. Ou seja, é mister oferecer condições para que o deficiente possa per si executar o voto.


REFERÊNCIAS:

CÂNDIDO, Joel J. Direito Eleitoral Brasileiro. 11 ed., rev. e atual. São Paulo: Edipro, 2005.

CERQUEIRA, Thales Tácito P. Luz de Pádua; CERQUERIA, Camila Mederios de A. P. L. de Pádua. Tratado de Direito Eleitoral. Tomo I: Direito material eleitoral – Parte I. São Paulo: Premier, 2008.

FERRAZ, Sergio Valladão. Curso de Direito Constitucional: teoria e questões. 2 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.

GRECO, Rogério. Curso de direito penalParte Geral, volume 1, artigos 1º a 120 do Código Penal . 8 ed. rev., atual. e ampl. Niterói, RJ : Método . 2007. p. 377-379.

NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 26 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. 4 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

SÃO PAULO. Diário Oficial do Estado de São Paulo. Diário da Assembléia Legislativa n.º 59 – DOE 29.03.2007 – Projeto de Lei n.º 145/2007. Assembléia Legislativa. Disponível em: <ftp://ftp.saude.sp.gov.br/ftpsessp/bibliote/informe_eletronico/2007/iels.mar.07/iels60/E_PL-145_2007.pdf>. Acesso em 10 mar. 2009.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007.

SOUSA, Arlley Andrade. O consentimento do ofendido sob a luz da teoria da imputação objetiva. In: Seminário de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFRN – CERES, 1., 2009. Caicó/RN.


Notas

01 Sinônimos de conscritos, ou seja, jovens prestando o serviço militar obrigatório.

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Sobre o autor
Arlley Andrade de Sousa

Analista Judiciário - Área Administrativa do TRE/RN . Chefe de Cartório da 27ª Z.E - Jucurutu/RN. Bacharel em Direito pela UFRN e Especialista em Direito e Processo Eleitoral da UnP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Arlley Andrade. A inconstitucionalidade do art. 54 e parágrafos da Resolução TSE n.º 22.712/2008.: O voto dos portadores de necessidades especiais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2763, 24 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18342. Acesso em: 2 mai. 2024.

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