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O descumprimento da transação penal

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22/01/2010 às 00:00
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4. A BUSCA PELA EFETIVIDADE DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL

Inconteste que condicionar a homologação da transação penal ao seu cumprimento não é uma solução que se coaduna por completo com a lei do Juizado Especial Criminal, entretanto, àquela que impõe a execução da pena aplicada na transação penal desta se dissocia por inteiro, ao passo que não admite a conversão da pena alternativa em pena privativa de liberdade, não apresenta solução para o cumprimento forçado da pena restritiva de direitos e, quanto à pena de multa, a forma de execução que defende, sabidamente, resta infrutífera.

Aqueles que defendem esta segunda solução, ao que parece, partem da premissa de que a inefetividade do juizado especial criminal subsiste porque "o legislador quis assim" e, a partir dela, assumem uma posição de conformismo. Conforme já estudado, contradiz esta premissa a própria exposição de motivos do projeto de lei convertido na lei n.º 9099/95, a qual denota que o legislador desejou exatamente o inverso, excluir a impunidade e a ausência de prestação jurisdicional adequada nos delitos de menor potencial ofensivo, os quais, embora não possuam a mesma carga de reprovabilidade dos crimes mais graves, desta não são despidos, sendo que uma solução jurisdicional pronta e efetiva era e é reivindicada veementemente pela sociedade.

A ausência de uma legislação que indique expressamente qual é o procedimento a ser adotado quando do descumprimento de uma transação penal, sem dúvida, é uma lacuna legislativa e, destarte, demanda uma mobilização junto ao Poder Legislativo para que seja suprida, sendo esta uma das recomendações do próprio FONAJE consoante já visto.

Mas esta constatação não tem o condão de afastar a aplicação da lei do Juizado Especial Criminal tal qual foi idealizada, muito menos o de impor uma posição passiva ao operador do direito, compelindo-o a nada fazer quando o acordo é deliberadamente descumprido pelo transacionado. Enquanto o legislador não remata expressamente a referida lacuna, esta poderá ser suplementada pelo operador do direito, mediante uma acertada exegese da legislação então existente com a utilização de todos os métodos interpretativos possíveis, desde que direcionados a um resultado final harmônico, de forma a evitar contradições nas conclusões decorrentes da aplicação de cada um deles e, sobretudo, de modo afastar àquelas que não estejam sob a égide da Constituição Federal, ou seja, inconstitucionais.

É possível extrair o conteúdo da lei do Juizado Especial Criminal, especificamente no tocante ao descumprimento da transação penal, através da interpretação legislativa como também da própria atividade judicial, a qual não pode deixar de prestar uma tutela jurisdicional efetiva com fundamento na eventual omissão legislativa. Ínsito no ordenamento jurídico penal a máxima de que quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Embora não haja previsão expressa no Código Penal neste sentido, o qual é silente acerca da omissão da lei, subsidiariamente incidem os artigos 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, o artigo 3º do Código de Processo Penal e o artigo 6º da Lei dos Juizados Especiais. [18]

A interpretação de uma lei é o método utilizado para extrair o seu conteúdo e quanto aos meios utilizados poderá ser literal, teleológica e sistêmica. No que se refere ao descumprimento da transação penal, o método literal não solve o problema, ante o fato de que a previsão legal constante no texto legal deixou de ser admitida pelo ordenamento jurídico, restando ao intérprete, na busca da melhor solução para o impasse, a aplicação dos métodos teleológico e sistêmico.

A interpretação teleológica busca fazê-lo através do estudo sobre os fins por ela propostos. [19] A finalidade da lei não decorre somente da vontade do legislador, sendo imprescindível que neste contexto seja considerada a realidade social da época de sua elaboração, como também daquela quando é operada a interpretação. Assim o é porque a sociedade não é estática, ou seja, surgem fatos novos e se modificam estados de fato consolidados ao tempo da elaboração de uma lei, logicamente não previstos pelo legislador, e que demandarão a realização de uma interpretação sob um novo enfoque.

Portanto, há que ser considerada para a interpretação da legislação, mediante a utilização do método teleológico, a vontade do legislador, a qual embora não se sobreponha ao texto legal, dele também não se desvencilha, já que o justifica, e a vontade da lei propriamente dita, aferida pela realidade social, pela necessidade da sociedade seja quando da elaboração da lei, seja no momento em que esta é interpretada pelo operador do direito. Na aplicação deste método interpretativo também se impõe a consideração de que há disposição legal expressa preconizando que a atividade judicial deve atender aos fins sociais almejados pela lei e, especialmente, às exigências do bem comum.

No tocante à legislação do Juizado Especial Criminal e do instituto da transação penal, a interpretação teleológica resulta na necessidade do ajuizamento da ação penal quando descumprida a pena aplicada na transação penal, cuja autorização se extrai do conteúdo da própria lei, embora nesta não esteja prevista expressamente. Veja-se que a vontade do legislador, o que já foi abordado, era a de conferir efetividade na prestação da tutela jurisdicional nos crimes de menor potencial ofensivo, sem lhes retirar o caráter penal, nem eximir, incondicionalmente, seus autores de responsabilização criminal. A realidade social à época da elaboração da lei demonstrava a necessidade de uma justiça mais célere nos delitos menos graves, até mesmo porque os processos criminais respectivos eram esquecidos, em virtude do aumento da criminalidade, que fazia com que a justiça voltasse à atenção, prioritariamente, àqueles mais graves. A realidade social atual, sem embargo da vigência da lei dos Juizados Especiais Criminais, neste ponto, coincide com àquela verificada quando de sua elaboração, pois que a prestação da tutela jurisdicional nos delitos de menor potencial ofensivo continua sendo inefetiva.

A transação penal não se traduz somente em uma medida despenalizadora, sobretudo, importa na prestação jurisdicional célere nos delitos de menor potencial ofensivo, demonstrando a toda a sociedade que a estes casos se pode conferir pronta solução jurisdicional, ainda que esta consista na renúncia ao ajuizamento de uma ação penal, já que, por outro lado, também permite a aplicação de uma pena alternativa ao autor do delito. No entanto, quando esta pena não é cumprida e não há quaisquer medidas efetivas que possam ser adotadas para tanto, torna-se àquela vicissitude que fundamentou a elaboração da lei.

Deduz-se, portanto, da interpretação teleológica da lei do Juizado Especial Criminal que, seja pela vontade do legislador, seja pela vontade da lei propriamente dita, se o descumprimento da transação penal não permite a conversão da pena alternativa em pena privativa de liberdade, deverá ser ajuizada a ação penal respectiva. Se o legislador e a sociedade quiseram, a princípio, a conversão da pena alternativa em privativa de liberdade quando a transação penal fosse descumprida, ou seja, "quis o mais", não se pode realizar uma construção doutrinária e jurisprudencial que afaste o ajuizamento da ação penal, que "é o menos". E, pari passu, veda-se uma interpretação que conduza ao "nada", como ocorre naquela que impõe uma execução infrutífera da pena aplicada em sede de transação penal.

Não será outro o desfecho no que toca à interpretação sistemática da lei do Juizado Especial Criminal. A interpretação sistemática é aquela na qual se interpreta uma lei em conjunto com o ordenamento jurídico, partindo-se da base e avançando, progressivamente, até o cume da pirâmide normativa, que é a Constituição Federal. No que toca ao Juizado Especial Criminal, os dispositivos legais da lei n.º 9.099/95 devem ser interpretados de modo a guardar consonância com o sistema legal por ela estabelecido e, sobretudo, com a Constituição Federal.

As conseqüências do descumprimento da transação penal foram regulamentadas na lei referida, o que já foi abordado neste texto quando da apreciação do disposto nos seus artigos 85 e 86, entretanto, dada a impossibilidade de que a execução das penas fosse procedida daquela forma, resta interpretá-la frente ao texto constitucional, na busca da outra solução adequada.

Procedendo-se à interpretação sistemática da lei n.º 9099/95 diante da Constituição Federal, retoma-se o que já foi abordado sobre os mandados expressos de criminalização constantes do texto constitucional, que conduz ao resultado de que quando descumprida a transação penal deverá ser oferecida a denúncia criminal pelo Ministério Público.

Destarte, verifica-se que, se a interpretação gramatical não oferece solução à celeuma do descumprimento da transação penal, os métodos de interpretação teleológica e sistemática apresentam-na de forma diametralmente oposta ao preconizado pela doutrina que entende que descumprida a transação penal torna-se impossível a instauração da ação penal.

A natureza da sentença homologatória da transação penal foi, na forma já explicitada, tida como um dos principais fundamentos da impossibilidade do oferecimento da denúncia criminal pelos doutrinadores que defendem a impossibilidade do oferecimento da denúncia, tanto por aqueles que entenderam pelo seu caráter meramente homologatório, como por aqueles que propugnam pela coisa julgada formal da homologação, como também pelos que a têm como material, com caráter condenatório, próprio ou impróprio.


5.CONCLUSÕES ARTICULADAS

De todo o exposto, conclui-se que:

a)Os institutos despenalizadores previstos na lei n.º 9099/95 ainda suscitam muitas divergências doutrinárias e jurisprudenciais acerca de suas aplicações, sendo que as conseqüências do descumprimento da transação penal são objeto de constantes debates no meio jurídico, de cujos resultados decorrem, em suma, duas teorias: àquela que admite o oferecimento da ação penal e àquela que defende a execução da pena alternativa aplicada.

b)Os dois posicionamentos jurídicos são fundamentados pelos doutrinadores, não se olvidando das demais argumentações por eles utilizadas, pela natureza jurídica da sentença homologatória da transação penal, sendo que dentre os posicionamentos sobre a matéria, destacam-se as seguintes classificações doutrinárias: b.1) a sentença que homologa a transação penal tem caráter meramente homologatório; b.2) a natureza da sentença é declaratória com a produção de coisa julgada formal; b.3) a sentença que homologa a transação penal tem caráter declaratório e produz coisa julgada formal e material; b.4) a sentença homologatória é uma sentença condenatória.

c)Verifica-se que há doutrinadores, no que se refere à natureza jurídica da sentença homologatória da transação penal, que comungam do mesmo posicionamento jurídico, contudo, discordam do resultado de sua aplicação, uns defendendo o oferecimento da denúncia quando descumprida a transação penal e outros defendendo a execução da pena alternativa, o que denota que a referida natureza jurídica não é suficiente, por si só, para fundamentar uma ou outra das teorias.

d)O projeto de lei n.º 1.480/89, de autoria do Deputado Michel Temer, deu origem à lei do Juizado Especial Criminal, sendo que se infere da sua exposição de motivos que a criação desta justiça especializada baseou-se na necessidade de uma prestação jurisdicional efetiva no tocante aos delitos de menor potencial ofensivo, já que a impunidade destes era destaque, à época, e decorria do fato de que, em virtude do aumento da criminalidade e do número excessivo de processos, o Poder Judiciário optou por priorizar a prestação da tutela jurisdicional das infrações penais mais graves.

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e)A intenção do legislador na elaboração da lei integra o método de interpretação teleológica da lei penal e, portanto, não deve ser desprezada, alvitrando-se que a opção de política criminal não pode sobrepor-se à lei vigente, mas também dela não se dissocia. Alia-se à intenção do legislador a vontade da sociedade, seja à da época da elaboração da lei do Juizado Especial Criminal, seja no momento atual de sua interpretação, e se constata que a sua publicação e vigência justificaram-se na necessidade de uma efetiva prestação de tutela jurisdicional nos delitos de menor potencial ofensivo, cuja efetividade, atualmente, ainda não se faz presente.

f)O método de interpretação sistemático também deve ser utilizado para a interpretação da lei dos Juizados Especiais Criminais, tendo como parâmetro principal a Constituição Federal, a qual, sem embargo da doutrina que a tem como corolário do garantismo penal, também instituiu a fundamentalidade de um direito penal efetivo, que se concretizaria no que se refere aos delitos de menor potencial ofensivo com a criação dos Juizados Especiais Criminais, uma determinação constitucional.

g)Somando-se os métodos de interpretação teleológicos e sistemáticos aplicados ao instituto da transação penal, consagrado na lei do Juizado Especial Criminal, tem-se um resultado harmônico e consoante a Constituição Federal, que não poderia ser outro senão o de que descumprida a transação penal, deve o Ministério Público oferecer a denúncia criminal.


BIBLIOGRAFIA

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JESUS, Damásio Evangelista de. Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada – São Paulo: Editora Saraiva, 1995; e Descumprimento da pena restritiva de direitos na transação penal- Importante acórdão do Supremo Tribunal Federal – março/2000 - http://cjdj.damasio.com.br/?page_name=art_023_2000&category_id=36; -

MIRABETE, Julio Fabbrini - Juizados Especiais Criminais: comentários, jurisprudência, legislação – 5ª Ed – São Paulo: Editora Atlas, 2002, pg. 164.

NUCCI, Guilherme de Souza – Leis Penais e processuais penais comentadas – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. pg. 389.

SIRVINKAS, Luis Paulo – Conseqüências do descumprimento da transação penal (solução jurídica ou prática?) CD Editora Plenum, setembro de 2009.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa – Comentários à lei dos Juizados Especiais Criminais – 6ª Ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2009.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl – Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral/Eugenio Raúl Zaffaroni, José Henrique Pierangeli – 5ª Ed. rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

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Sobre a autora
Ana Paula Pina Gaio

Promotora de justiça no Estado do Paraná, Especialização em direito público na Universidade Federal do Paraná, Especialização em direito criminal nas Faculdades Curitiba/PR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAIO, Ana Paula Pina. O descumprimento da transação penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2396, 22 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14233. Acesso em: 17 mai. 2024.

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