Patrimônio Cultural Material e Imaterial:

Documentos internacionais para uma falsa dicotomia

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A Unesco, em razão da constatação de que os bens de valor cultural se encontravam ameaçados de destruição por causas naturais e por conflitos armados (guerras) e que o desaparecimento deles acarreta o empobrecimento irreversível do patrimônio de todos os povos do mundo, desenvolve inicialmente um sistema internacional de proteção para o Patrimônio Cultural Material integrado por monumentos, conjuntos arquitetônicos e sítios arqueológicos.

A Convenção da Unesco de 1972 para o patrimônio cultural material, dentre os seus critérios para considerar um bem como patrimônio cultural mundial adota o valor universal excepcional, que é avaliado pelo comitê intergovernamental com base nas noções de autenticidade e integridade.

O critério da autenticidade [1] foi duramente criticado, especialmente pelo Japão, porque não contemplava o seu patrimônio cultural e de inúmeros outros países orientais, servindo apenas para os países ocidentais, em especial da Europa, já que o teste de autenticidade que consiste em aferir se o bem cultural é verdadeiro em substância, sendo proveniente de fonte ou autoria reconhecida, era realizado somente sob o ponto de vista material ou físico do bem cultural a ser incluído na lista da Unesco.

O Japão é riquíssimo em templos construídos em madeira com base em técnicas e saberes milenares. Contudo, os templos são constantemente destruídos e reconstruídos, seja por ação da natureza (terremotos) seja por aspectos culturais. Essa reconstrução permanente dos templos fazia com que eles não atendessem a exigência de autenticidade da Unesco sob a perspectiva unicamente material ou física.

Os questionamentos sobre o critério da autenticidade limitado a sua aferição do ponto de vista apenas material ou físico iniciaram-se durante a década de 1980, mas a mudança veio apenas em 1994 com a Recomendação de Nara [2] (Japão) que se colocou a discutir a noção de autenticidade, o que impactou nas orientações técnicas adotadas pela Unesco que passou a considerar que “os juízos acerca dos valores atribuídos ao patrimônio cultural, bem como a credibilidade das fontes de informação, podem diferir de cultura para cultura, e mesmo dentro de uma mesma cultura. O respeito que é devido a todas as culturas exige que o patrimônio cultural seja considerado e julgado essencialmente nos contextos culturais a que pertence” [3].

Neste aspecto, fica claro que no caso dos templos, o que o Japão estava buscando proteger, além da sua dimensão material, era, em verdade, o conhecimento tradicional, os saberes e fazeres atrelados às técnicas construtivas, ou seja, a dimensão imaterial do patrimônio cultural. Com isso, a noção de que o patrimônio cultural material não pode ser destruído, demolido ou mutilado para ser posteriormente reconstruído não tem aceitação universal - não, em termos absolutos.

Com efeito, a insuficiência da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural da Unesco de 1972 ficou evidenciada e os ajustes pertinentes decorrentes da Recomendação de Nara foram incorporados pela Unesco na definição de Autenticidade pelo Comitê do Patrimônio Mundial. Assim, a Recomendação de Nara (1994) dá ênfase à dimensão imaterial na proteção do patrimônio cultural material.

Mas ainda era insuficiente porque privilegiava apenas a dimensão material e ignorava a dimensão imaterial ou não lhe dava a centralidade e a relevância necessárias, o que era apontado por diversos países não europeus que continuavam sem serem contemplados na lista do Patrimônio Mundial. Desta feita, os debates são dedicados a modelar uma nova Convenção destinada ao trato da salvaguarda da dimensão imaterial do patrimônio, que de certa forma foi explicitada pela Recomendação de Nara (1994).

A salvaguarda da dimensão imaterial do Patrimônio Cultural é concretizada na Convenção da Unesco de 2003 que reconhece o caráter dinâmico desses bens culturais quando aponta que a transmissão de geração em geração faz com que o Patrimônio Cultural Imaterial seja “constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana” (Unesco, 2003).

Com isso, fica evidente a indissociabilidade das dimensões material e imaterial do patrimônio cultural, sendo falsa a dicotomia entre ambas, pois o patrimônio cultural reúne em si as duas dimensões, evidenciadas pela Recomendação de Nara (1994), o que antes era ignorado pela Unesco na composição das listas do Patrimônio Cultural Mundial.

Um ponto positivo dessa falsa dicotomia é que ela tornou possível conferir visibilidade ao Patrimônio Cultural na dimensão imaterial que se encontrava sufocado pela visão “pedra e cal” do patrimônio material e das visões de monumentalidade e excepcionalidade que davam suporte para o tombamento. Um ponto negativo dessa falsa dicotomia, em especial para o Brasil, é que ela é usada como subterfúgio para ignorar a definição comum de patrimônio cultural dada pela Constituição de 1988 para ambas as dimensões e que, portanto, os critérios para seleção dos bens culturais materiais ou imateriais devem seguir a referencialidade e assegurar a colaboração da comunidade.

Esse temor, por certo, decorre dos possíveis e inevitáveis questionamentos que podem ser explicitados em relação aos bens culturais materiais e à referencialidade deles, o que vai impulsionar uma necessária releitura da história oficial e dos motivos da proteção do patrimônio cultural.

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Um exemplo disso é o Sítio Histórico São Miguel Arcanjo - tombado como Patrimônio Cultural, em 1938, e declarado Patrimônio da Humanidade, pela Unesco, em 1983 [4], e seu registro como Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro, consagrando os sentidos e significados atribuídos pelos Guarani-Mbyá, ocorreu em 2014 e sua inscrição como Patrimônio do Mercosul em 2019.

Neste sentido, parece que a noção de salvaguarda atribuída ao patrimônio cultural imaterial que demanda identificação, reconhecimento, registro etnográfico, acompanhamento periódico e apoio também deve ser conferido aos bens que predominam a sua vertente material e essa sensibilidade parece que está brotando para o patrimônio cultural material. E a imprescindibilidade da colaboração da comunidade que é nítida e bem disciplinada para o Patrimônio Cultural Imaterial, mas que ainda engatinha para a vertente material do patrimônio, especialmente pela manutenção de uma legislação do tombamento que não acompanhou suas transformações.

Mas, a perspectiva é que, assim como foi estabelecido na Carta de Ouro Preto para a Legislação Brasileira do Patrimônio Cultural [5] (2023), que tratou a proposta de aperfeiçoamento da legislação do Patrimônio Cultural sem essa falsa dicotomia – material e imaterial, construa-se uma legislação adequada para a proteção do patrimônio cultural e atenta aos preceitos constitucionais que enfatizam a colaboração da comunidade em todas as fases da sua proteção.

Texto síntese desenvolvido para servir de base para análise dos 20 anos de vigência da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, adotada pela Unesco como parte do conteúdo da disciplina Teoria e Prática Contemporânea dos Direitos Culturais do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

Notas:

[1] Para saber sobre a definição de autenticidade conferir o Dicionário do Patrimônio Cultural do IPHAN disponível em: http://portal.iphan.gov.br/dicionarioPatrimonioCultural

[2] ICOMOS. Conselho Internacional de Monumentos e Sítios. Documento de Nara sobre a autenticidade. Nara, 1994. Disponível em: <https://www.culturanorte.pt/fotos/editor2/1994-declaracao_de_nara_sobre_autenticidade-icomos.pdf>. Acesso em: 03 jan. 2019.

[3] UNESCO. Orientações técnicas para aplicação da Convenção do Patrimônio Mundial. 2017. Disponível em: <http://whc.unesco.org/en/guidelines>. Acesso em: 02 jan. 2019.

[4] Conferir no sítio eletrônico do IPHAN: disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/766/

[5] Conferir no sítio eletrônico do Seminário Nacional de Direito do Patrimônio Cultural: disponível em: https://www.patrimonioculturalbrasil.org/carta

Sobre o autor
Allan Carlos Moreira Magalhães

Doutor e Pós-doutor em Direito (UNIFOR), professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e Autor do livro “Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo” (Dialética-SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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