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Politização do ensino jurídico (história e possibilidades) e o papel da educação popular

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5. CONCLUSÕES

            Historicamente o ensino jurídico no Brasil foi criado para garantir mão-de-obra qualificada que assumiria os cargos da burocracia estatal e reproduzir, no seio da sociedade, a economia agropecuária e escravocrata. A "neutralidade política", albergada pretensamente sob o pano dos direitos civis e políticos, cumpriu o papel de manto superficialmente liberal, sob o qual esconde-se a burocracia patrimonialista que compreende direitos como privilégios clientelistas. "As classes médias superiores, jamais quiseram ser cidadãs; os pobres jamais puderam ser cidadãos. As classes médias foram condicionadas a apenas querer privilégios e não direitos." [14] Nunca houve uma preocupação sistemática com a formação político/social dos bacharéis, restando os cursos concentrados em meras filigranas técnicas que absorvem e despolitizam as mentes. Tudo isso deu-se num contexto mais amplo de redefinição dos próprios papeis da universidade, na qual esta torna-se empresa, perde em autonomia, e nega o seu lídimo papel de formadora de mentes críticas.

            A politização do ensino jurídico significa o encontro com as pautas populares através tanto da atuação nos tradicionais espaços jurídicos de forma socialmente engajada ("Uso Alternativo de Direito" e "Positivismo de Combate") como de atividades que reconheçam o povo como produtor de normas socialmente eficazes e legítimas (Pluralismo Jurídico"). Para dirimir os conflitos que surgem nesses centros não oficiais de poder a discussão do acesso à justiça ganha grande importância, principalmente através do uso de meios alternativos de resolução de conflitos. Dentre eles (conciliação, arbitragem e mediação), o que mais se adequa a proposta libertadora da educação popular é a mediação, na qual o mediador nada mais é do que um condutor e facilitador do processo que termina com a produção da resolução dos conflitos pelas próprias partes. A assessoria jurídica universitária popular insere-se nesse contexto de forma primordial pois a um só tempo concretiza o tripé mais fraco da universidade (a extensão) e milita na luta pela efetivação de direitos humanos e contra todo forma de opressão.

            Mas essa atuação social precisa encontrar ressonância em educadores progressistas que se compreendam como orientadores de espaços privilegiados de produção de saber/poder. Um primeiro passo é romper com os limites da razão. A atividade educativa, sob pena de ser reducionista, deve acolher globalmente os seus atores para que todos cresçam em conjunto. O educador precisa ver-se como aprendiz no exercício da sua atividade de modo a possibilitar, amorosa e afetuosamente, a formação de indivíduos socialmente sensíveis às demandas populares e politicamente engajados. Acrescente-se, contemporaneamente, a preocupação com as questões atinentes à sustentabilidade, à um meio-ambiente equilibrado que possibilite a vida com qualidade para todos os seres (é o que Leonardo Boff chama de "biocracia"). "Ninguém ensina nada a ninguém, mas todos aprendem em comunhão, a partir da leitura coletiva do mundo": é esse o legado freiriano que precisa ser entendido e efetivado.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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            SILVA, João Roberto da. A mediação e o processo de mediação. São Paulo: Paulistanajur: 2004.

            VENÂNCIO FILHO, Alberto.Análise histórica do ensino jurídico no Brasil. In Encontros da Unb: Ensino Jurídico. Brasília, EdUNB, 1978/9. Ps. 11-36.

            WOLKMER, Antônio Carlos. História do direito no Brasil. 3° ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.


NOTAS

            01

Antônio Carlos Wolkmer. História do direito no Brasil. 3° ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. Ps. 14-17;143.

            02

Marco Antônio Barbosa. Os guarani, a jurisprudência e o indigenato. In José Geral de Sousa Júnior (org.). O direito achado na rua. Brasília: EdUNB, 1988. Ps. 90-92.

            03

João Batista Herkenhoff. Direito e utopia. 3° ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. Ps. 47/8.

            04

Moacir Gadotti. Um legado de esperança. São Paulo: Cortez, 2001. (Questões da Nossa Época; n° 91).

            05

"The end of a tradition – Culture change and development in the município of Cunha. New York: Columbia Press, 1971. Apud João Batista Herkenhoff. Direito e utopia. 3° ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. P. 30.

            06

Boaventura de Sousa Santos. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. José Geral de Sousa Júnior (org.). O direito achado na rua. Brasília: EdUNB, 1988. Ps. 46-51.

            07

Idem. P. 50.

            08

Mauro Cappelletti e Bryant Garth. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1988. P. 12.

            09

"a) educação para o exercício dos próprios direitos e respeito aos direitos alheios (escopo social); b) a preservação do valor liberdade, a oferta de meios de participação nos destinos da nação ou Estado e a preservação do ordenamento jurídico e da própria autoridade deste (escopo político); c) a atuação da vontade concreta do direito (escopo jurídico). Antônio C. de A. Cintra; Ada P. Grinover; Cândido R. Dinamarco. Teoria geral do processo. 20° ed. São Paulo: Malheiros: 2004. P. 24.

            10

No último ERENAJU (2006), encontro anual de todos os projetos que fazem parte da RENAJU, realizado em Fortaleza, decidiu-se por maioria que a Rede deixaria de ser um espaço de mera troca de experiências para passar a ter atuação política junto às demandas criticamente analisadas surgidas de Movimentos Sociais. Um conseqüência dessa decisão é o indicativo que de que os projetos em todo o Brasil passem a atuar não somente nos espaços comunitários, mas também com movi mentos sociais.

            11

Nilson Guedes de Freitas. Pedagogia do amor: caminho da libertação da relação professor-aluno. Rio de Janeiro: WAK Editora, 2000. P. 164.

            12

"Cabe realçar que, uma média de 50 casos foram impetrados contra o Estado brasileiro, perante a Comissão Interamericana, no período de 1970 a 1998. Estes casos foram encaminhados, via de regra, por entidades não-governamentais de defesa dos direitos humanos, de âmbito nacional ou internacional e, por vezes, pela atuação conjunta dessas entidades. O universo dos 50 casos pode ser classificado em 7 grupos: l) casos de detenção arbitrária e tortura cometidos durante o regime autoritário militar; 2) casos de violação dos direitos das populações indígenas; 3) casos de violência rural; 4) casos de violência da polícia militar; 5) casos de violação dos direitos de crianças e adolescentes; 6) casos de violência contra a mulher e 7) casos de discriminação racial.

            Note-se que 70% dos casos referem-se à violência da polícia militar, o que demonstra que o processo de democratização foi incapaz de romper com as práticas autoritárias do regime repressivo militar, apresentando como reminiscência um padrão de violência sistemática praticada pela polícia militar, que não consegue ser controlada pelo aparelho estatal. A grande distinção entre as práticas autoritárias verificadas no regime militar e no processo de democratização está no fato de que, no primeiro caso, a violência era perpetrada direta e explicitamente por ação do regime autoritário e sustentava a manutenção de seu próprio aparato ideológico. Já no processo de democratização, a sistemática violência policial apresenta-se como resultado, não mais de uma ação, mas de uma omissão do Estado em não ser capaz de deter os abusos perpetrados por seus agentes. Tal como no regime militar, não se verifica a punição dos responsáveis. A insuficiência, ou mesmo, em alguns casos, a inexistência de resposta por parte do Estado brasileiro é o fator que – a configurar o requisito do prévio esgotamento dos recursos internos – enseja a denúncia dessas violações de direitos perante a Comissão Interamericana.

            [...]

            Observe-se ainda que, em 90%dos casos examinados, as vítimas podem ser consideradas pessoas socialmente pobres, sem qualquer liderança destacada, o que inclui tanto aqueles que viviam em favelas, nas ruas, nas estradas, nas prisões, ou mesmo, em regime de trabalho escravo no campo." Flávia Piovesan e Renato Stanziola Vieira. A força normativa dos princípios constitucionais fundamentais: a dignidade da pessoa humana. In Temas de direitos humanos. 2° ed. São Paulo: Max Limonad, 2003, ps. 328-342. Ps. 425/6.

            13

João Batista Herkenhoff. Direito e utopia. 3° ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. Ps. 55/56.

            14

Milton Santos. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2002. Ps. 49/50.
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Sobre o autor
Leandro Ferraz Damasceno Ribeiro

Advogado. Mestre em direitos humanos(UFPB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Leandro Ferraz Damasceno. Politização do ensino jurídico (história e possibilidades) e o papel da educação popular. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1452, 23 jun. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10066. Acesso em: 27 abr. 2024.

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