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Início da vida humana e da personalidade jurídica:

questões à luz da Bioética

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1. Origem da Vida

             Nascer, crescer, reproduzir, e morrer: ciclo da vida. Toda célula ou organismo provém de outra célula ou organismo preexistente, daí a pergunta crucial: qual é a origem da célula primordial? Ou seja, qual a origem da vida? Ao longo da história foram desenvolvidas algumas teorias que buscam explicar essa origem.

            Dentre as principais postulações temos a Teoria Criacionista (a vida teria sido criada na Terra por um Deus), a Teoria da Panspermia (a vida teria surgido na Terra proveniente de outro planeta), a Teoria Abiogênica ou da Geração Espontânea (a vida surgiria espontaneamente e continuamente da matéria inanimada) e a Teoria da Auto-Organização (a vida teria surgido a partir da auto-organização de compostos orgânicos simples em macromoléculas que originaria as protocélulas primordiais, todos esses processos teriam ocorrido sob condições extremamente especiais), tal teoria é a mais aceita atualmente no meio científico. Entretanto, não há um consenso de como se deu esses passos iniciais ocorridos em condições especiais, sendo, ainda hoje, palco de debates (1).


2. Reprodução

            Existem dois tipos básicos de reprodução: a sexuada (com envolvimento de gametas (2)) e a assexuada (sem envolvimento de gametas). Na reprodução sexuada o gameta masculino une-se ao gameta feminino dando origem a uma nova célula: ovo ou zigoto, a qual irá originar um novo ser vivo com características diferentes das que seus pais possuíam, pois será composto da união do material genético de ambos.

            Todavia, a reprodução sexuada não é universal e imprescindível à sobrevivência das espécies: organismos unicelulares se reproduzem por simples divisão; várias plantas se propagam vegetativamente; no reino animal, a hidra se reproduz por brotamento; vermes marinhos se dividem em metades de dois organismos que conseguem recuperar as partes que estão faltando; espécies de lagartos que consistem apenas de fêmeas, reproduzem-se sem acasalamento (3).

            A reprodução nas suas mais diferentes facetas é a responsável pela propagação e perpetuação da vida no planeta Terra.


3. Reprodução Humana

            O espermatozóide é o gameta masculino e o ovócito (óvulo) é o gameta feminino. Após a relação sexual, sem uso de qualquer meio contraceptivo, de pessoas reprodutivamente saudáveis haverá o encontro desses gametas com posterior fusão de ambos (fertilização) em uma única célula. Atualmente, devido ao surgimento e evolução da medicina reprodutiva, a fertilização pode ocorrer fora do corpo da mulher. Após a fertilização a célula formada será o embrião (4) que irá se fixar no útero materno, através de um processo que é denominado de implantação.


4. Início da Vida Humana

            A morte do ser humano é definida a partir da parada de funcionamento do cérebro, morte cerebral, conceito esse evoluído através dos tempos para permitir a doação de órgãos. Analogicamente muitos pesquisadores então questionam se o início da vida humana também não devesse seguir o mesmo critério: início da atividade cerebral (5). Ou seja, por motivação essencialmente utilitária, foi dado o conceito de morte e definido o seu estado temporal, sendo, portanto, indispensável que se altere o conceito do início da vida humana (6), ou melhor, que se defina tal momento temporal de acordo com os anseios e necessidades da sociedade, como o foi no conceito de morte.

            As pesquisas médicas têm-se utilizados de diferentes conceitos científicos para definir o início da vida humana com o objetivo de se utilizar células embrionárias para fins terapêuticos, sem que se firam preceitos éticos, filosóficos e religiosos da sociedade.

            Em alguns países há a adoção do termo blastocisto (células entre o quarto e quinto dia após a fecundação, mas antes da implantação no útero, que ocorre no sexto dia), mas as controvérsias existentes sobre esse tema devem-se ao fato do próprio blastocisto ser ou não considerado um ser humano (7).

            Diferentemente da Igreja Católica que considera o início da vida humana tão logo ocorra a fecundação independente do local (8), para o rabino presidente da Comissão de Bioética do Conselho Rabínico da América o óvulo fertilizado in vitro não possui humanidade (9).

            Muitos não reconhecem que o embrião no estágio inicial seja um ser humano, para tanto foi cunhado o termo pré-embrião (em 1986 por Anne McLaren), designando aqueles embriões que ainda não se implantaram no útero, entretanto, tentativas de outras classificações surgiram (10). O mesmo termo de pré-embrião tem sido também utilizado no Brasil (11).

            Um outro argumento levantado pelos profissionais que concordam em utilizar células embrionárias para fins terapêuticos baseia-se no fato de que se o embrião não for implantado em um útero materno, este não conseguirá continuar seu desenvolvimento, estando, portanto, condenado a não nascer (12).

            De forma sucinta há quatro correntes quanto ao início da vida humana: a) as que defendem que o início da vida começa com a fertilização; b) as que defendem que o início da vida começa com a implantação do embrião no útero; c) as que defendem que o início da vida começa com o início da atividade cerebral e d) as que defendem que o início da vida começa com o nascimento com vida do embrião.

            Ressalta-se que os doutrinadores de direito penal tem utilizado a seguinte classificação após a fertilização: ovo (até três semanas de gestação), embrião (de três semanas a três meses), feto (após três meses) (13); (14).

            Para o ordenamento jurídico é de vital importância que se defina de maneira clara e simples o início da vida humana, para determinar a partir de que momento essa nova entidade será considerada viva e terá personalidade jurídica, será tutelada pelo Direito, assim como se fez com o conceito de morte. Tal definição deve surgir livre de explicações pseudo-científicas e místicas (15) e deve ser pautado nas discussões bioéticas (16).

            Todavia, tais conceitos não devem ser estáticos, mas sim flexíveis e com capacidade de evoluir com o passar do tempo, pois, por exemplo, se for adotado o conceito de embrião apenas após a implantação no útero materno e tal conceito for imutável o que será daqueles embriões que venham a se desenvolver em úteros artificiais, os quais pouco a pouco vão saindo cada vez mais da esfera da ficção científica e adentrando nos experimentos científicos (17)? É o Admirável Mundo Novo (18) que salta em nossas vidas todos os dias, nos deixando perplexos.


5. Relação com o Código Civil e o Código Penal

            O artigo 2º do Código Civil dita que a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (pessoa por nascer, já concebida no útero materno). Onde o nascimento com vida caracteriza-se pelo ato do nascituro respirar. Desde a concepção o nascituro tem seus direitos assegurados pelo ordenamento jurídico, com a condição que nasça com vida. Antes do nascimento o nascituro não tem personalidade jurídica, mas tem natureza humana (humanidade), razão de ser de sua proteção jurídica pelo Código Civil (19).

            Ora, se desde a concepção o embrião possui humanidade, logo é um ser humano, sendo, detentor de direitos fundamentais e de personalidade jurídica. Resta ainda questões a serem respondidas: Embriões congelados seriam nascituros? Teriam personalidade jurídica?

            O caso é que a própria legislação específica, Lei 8.974/91, e a Resolução 1.358/92 sobre fecundação assistida do Conselho Federal de Medicina (CRM) também não conceituam o nascituro.

            O Código Penal brasileiro no seu artigo 124 pune o aborto provocado em si mesma ou consentido que outrem lho provoque (20) a partir do momento da concepção, ou seja, a partir da fertilização até o início do parto, tendo tal concepção pacífico entendimento entre os doutrinadores do Direito Penal brasileiro (21); (22); (23); (24).

            Se assim o é porque que os métodos anticonceptivos D.I.U (Dispositivo Intra-Uterino) e o medicamento popularmente conhecido como "a pílula do dia seguinte" que impedem a implantação do embrião no útero são comercializados e utilizados normalmente? Não estariam as mulheres que fazem usos desses meios anticonceptivos praticando o aborto? Não estariam os fabricantes desses métodos praticando a assistência ao aborto? E isso não é crime? E por que não há ninguém punido?

            Será que a sociedade brasileira adotou, ainda que tacitamente, o critério de que a vida humana apenas se inicia após a implantação?


8. Breve Histórico dos Direitos da Personalidade

            Em Roma o início da personalidade jurídica se dava pela observância de alguns fatores: nascimento com vida, forma humana e a presença de viabilidade fetal, ou seja, perfeição orgânica para continuar a viver. Em alguns casos, todavia, se antecipava o começa da existência para a data da concepção. A pessoa, ainda devia reunir o status libertatis, o status familiae e o status civitatis (25).

            Na Idade Média, influenciado pelo Cristianismo, no século XII chega-se ao consenso de que o sentido de pessoa está em um ser completo, independente e intransferível, persona como per se una. Sendo acrescido, a tal conceito, o elemento da dignidade humana no período renascentista. Por volta de 1770 na França, na Idade Moderna, surge a expressão "direitos fundamentais" no âmbito jurídico, refletindo as mudanças ideológicas que se processavam no interior da sociedade e no âmbito internacional cunhou-se a expressão "direitos humanos" (26).

            Na atualidade, a personalidade é a capacidade abstrata para possuir direitos e contrair obrigações na ordem civil, sendo indissociável da pessoa humana. A personalidade jurídica se dá com o nascimento com vida (representado pela respiração do recém-nato). Os direitos da personalidade jurídica são necessários, essenciais ao resguardo da dignidade humana, portanto, universais, absolutos, imprescritíveis, intransmissíveis, impenhoráveis e vitalícios (27).

            Os direitos da personalidade jurídica são direitos que transcendem, o ordenamento jurídico positivo, porque ínsitos à própria natureza do homem, como ente dotado de personalidade. Intimamente ligados ao homem, para sua proteção jurídica, independentes de relação imediata com o mundo exterior ou outra pessoa, são intangíveis, de lege lata, pelo Estado, ou pelos particulares (28).

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            A teoria dos direitos da personalidade é uma construção recente, daí as divergências e dificuldades existentes na sua aceitação e compreensão. Sua construção deve-se principalmente: a) ao cristianismo, onde se impetrou a idéia da dignidade do homem, b) à Escola de Direito Natural, firmando a noção de direitos naturais, c) aos filósofos e pensadores do iluminismo que valorizaram o ser em detrimento ao Estado (29).

            Mudanças na interpretação do Direito estão ocorrendo. Termos e concepções que perduraram na sociedade por muitos séculos se apresentam maleáveis no início deste século, principalmente devido ao avanço das Ciências Biomédicas, alterando conceitos e concepções de vida, morte, início e fim da vida (30); (31).


9. Fetos Anencefálicos e o Supremo Tribunal Federal - STF

            Trata-se de Medida Cautelar em Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54-8 Distrito Federal, tendo como o Ministro Relator Marco Aurélio, foi adotada no dia 1 de Julho de 2004, decisão com efeito vinculante que todas as gestantes cujo feto é anencefálio, ou seja, sem cérebro ou parte dele, tem o direito de interromper a gravidez (32), tendo a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) concordado com o entendimento do Ministro. Entretanto, o parecer do Procurador-Geral da República, Dr. Cláudio Fonteles, foi pelo indeferimento do pleito.

            In verbis, assim votou o Ministro Relator Marco Aurélio:

            "... Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana. O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São nove meses de acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. Como registrado na inicial, a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é - e ninguém ousa contestar -, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto - que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade. A saúde, no sentido admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os aspectos físico, mental e social. Daí cumprir o afastamento do quadro, aguardando-se o desfecho, o julgamento de fundo da própria argüição de descumprimento de preceito fundamental, no que idas e vindas do processo acabam por projetar no tempo esdrúxula situação.

            Preceitua a lei de regência que a liminar pode conduzir à suspensão de processos em curso, à suspensão da eficácia de decisões judiciais que não hajam sido cobertas pela preclusão maior, considerada a recorribilidade. O poder de cautela é ínsito à jurisdição, no que esta é colocada ao alcance de todos, para afastar lesão a direito ou ameaça de lesão, o que, ante a organicidade do Direito, a demora no desfecho final dos processos, pressupõe atuação imediata. Há, sim, de formalizar-se medida acauteladora e esta não pode ficar limitada a mera suspensão de todo e qualquer procedimento judicial hoje existente. Há de viabilizar, embora de modo precário e efêmero, a concretude maior da Carta da República, presentes os valores em foco. Daí o acolhimento do pleito formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se não só o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, como também o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto. É como decido na espécie."

            No pleno do Supremo Tribunal Federal – STF, a liminar concedida pelo Ministro relator foi revogada por maioria.

            A decisão do Ministro Marco Aurélio traz a tona uma série de questionamentos de suma importância no caso em questão:

            - O feto anencefálico não causa a morte da mãe, se causasse tal situação, ter-se-ia diante o aborto terapêutico. Logo, qual o direito mais importante, que se sobrepõe, o direito á integridade moral e psicológica da mãe ou o direito a vida do feto, pois esse tem uma expectativa de nascer com vida ainda que sua vida seja extremamente efêmera?

            - Apesar da pequena parcela dos fetos anencefálicos que nascem com vida morrerem dentro de horas ou poucos dias após o nascimento (33) tem o Estado o direito de destruí-los, de não considera-los humanos? Não será a efemeridade da vida humana um fato certo e concreto? A morte não é a única certeza que carregamos em vida? Seria a duração da vida humana um determinante no conceito do ser humano, na dignidade humana, nos direitos humanos?

            - Estaria também a presença de cérebro, capacidade cerebral relacionada ao conceito de vida e morte? Este relacionamento estaria correto? Pode-se mensurar o ser humano de acordo com a sua capacidade cerebral ou presença e ausência de cérebro ou parte dele?

            Se é verdade que a proteção à vida humana em toda a sua extensão é o bem máximo protegido pela Carta Magna brasileira (resalta-se que o Brasil ratificou a Convenção de San José da Costa Rica, que a vida humana foi tutelada pelo ordenamento positivo de maneira plena, a partir da fecundação (34)) não seria um paradoxo o ordenamento jurídico não permitir o aborto de um feto anencefálico (o qual tem uma expectativa de vida ínfima) e permitir o aborto no caso de estupro mesmo com o feto em perfeitas condições de desenvolvimento?

            Todas essas questões tem que ser levadas a uma discussão profunda pela sociedade para que não se abra perigosos precedentes, como bem a história da humanidade tem ensinado.

            O Governo brasileiro começa a dar sinais que é favorável ao início das discussões acerca das discussões sobre a lei do aborto (35).


8. Conclusões

            Para o ordenamento jurídico é de vital importância que se defina de maneira clara e simples o início da vida humana, para determinar a partir de que momento essa nova vida terá personalidade jurídica, será tutelada pelo Direito, assim como se fez com o conceito de morte. Entretanto, esse conceito deve ser mutável, ter a capacidade de evoluir e ser pautado em conceitos éticos e científicos.

            Deve-se ter como base em todas as discussões acerca do tema que o bem máximo que é a vida humana deve ser protegido em toda sua plenitude e extensão.

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Sobre o autor
Arthur Henrique de Pontes Regis

bacharelando em Direito pela UNICEUB, bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade Federal da Paraíba

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REGIS, Arthur Henrique Pontes. Início da vida humana e da personalidade jurídica:: questões à luz da Bioética. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 617, 17 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6462. Acesso em: 28 mar. 2024.

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