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Efetividade da tutela do consumidor na relação contratual bancária

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SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1 EVOLUÇÃO DA TEORIA CONTRATUAL; 2 O ESTADO SOCIAL DE DIREITO GARANTINDO A DEFESA DO CONSUMIDOR, 2.1 LEI 8078/90: NORMAS DE ORDEM PÚBLICA E INTERESSE SOCIAL., 2.2 PRINCÍPIO DA ISONOMIA, 2.3 PRINCÍPIO DA ORDEM ECONÔMICA, 2.4 INSTRUMENTOS DE PROTEÇÃO DO CDC; 3 ELEMENTOS DAS RELAÇÕES DE CONSUMO, 3.1 DEFINIÇÃO DE RELAÇÃO DE CONSUMO, 3.3 DEFINIÇÕES DE CONSUMIDOR, 3.3.1 TEORIAS MAXIMALISTA E FINALISTA.3.4 DEFINIÇÃO DE FORNECEDOR, 3.5 DEFINIÇÃO DE DE PRODUTO E SERVIÇO; 4 INCIDÊNCIA DAS NORMAS DO CDC ÀS RELAÇÕES CONTRATUAIS BANCÁRIAS.4.1CONTRATOS BANCÁRIOS, 4.2 DISTRIBUIÇÃO DO CRÉDITO NO MERCADO, 4.3 CONSUMIDOR DE CRÉDITO, 4.4 FORNECEDOR DE CRÉDITO; 5 A EFETIVA TUTELA DO CONSUMIDOR NAS CONTRATAÇÕES BANCÁRIAS.5.1 A FUNÇÃO JURISDICIONAL DO ESTADO BRASILEIRO, 5.2 PRESTAÇÃO JURISDICIONAL DE PROTECÃO AO CONSUMIDOR DE CRÉDITO; 6 CONSIDERAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS BANCOS EM FACE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, 6.1 ASPECTOS GERAIS DA RESPONSABILIDADE CIVIL, 6.2 RESPONSABILIDADE NAS RELAÇÕES DE CONSUMO, 6.3 A RESPONSABILIDADE DAS INSTITUIÇÕES BANCÁRIAS; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS


INTRODUÇÃO

Tratar dos contratos bancários significa, na verdade, apreciar um dos elementos mais importantes da sociedade moderna - o consumo. É fato indiscutível que se vive em uma sociedade voltada para esse fenômeno, buscando as pessoas, insistentemente, através da aquisição de bens e acumulação de capital, sua satisfação pessoal.

Para realização deste consumo, indispensável se faz a ocorrência de crédito, uma vez que o caráter econômico do consumo só pode ser alimentado com recursos financeiros, sempre transferidos dos consumidores para os fornecedores em retribuição de bens adquiridos e/ou serviços prestados.

Neste contexto é que o papel das instituições financeiras torna-se cada vez maior, pois é através delas que a população tem acesso a esta "especiaria" da sociedade contemporânea. E conhecedoras do poder de seu produto, criam uma verdadeira ordem jurídica própria, através de seus contratos de adesão, totalmente dissociados dos princípios e fundamentos trazidos pela Constituição Federal.

E um dos fundamentos refere-se exatamente à proteção do consumidor, que determinou a criação do Código de Defesa do Consumidor, através de Lei 8.078/90, eminentemente desigual no tratamento que oferece às partes, mas não por um erro ou descuido do legislador e sim porque sua finalidade é especificamente proteger a parte mais fraca nas relações de consumo.

Desde a promulgação desta lei instaurou-se a polêmica, da incidência ou não de suas normas a alguns setores, pois se questionava a legalidade desta interferência do Estado nas relações privadas, a serem regidas pelo Código Civil.

Então, para que se determinasse a incidência de uma lente ou de outra era necessário verificar se a relação, independente de ser privada, configurava-se como sendo de consumo.

Esta questão atualmente parece pacificada tanto na doutrina quanto na jurisprudência, no entanto, para que chegassem a esta conclusão foi necessário o enquadramento dos elementos que compõem as relações contratuais bancárias àqueles que caracterizam as relações de consumo e aos ditames do CDC.

Além disso, transcorridos 14 anos da edição deste código, cumpre questionar se as garantias e os instrumentos de proteção criados têm sido concretizados na prática. Pois se a resposta for positiva certamente já é tempo de colher os frutos, perceber mudanças nos contratos apresentados ao mercado de consumo pelos bancos, demonstrando a incorporação da boa-fé à sua conduta, em atitudes solidárias daqueles que detém o poder com relação àqueles que dependem desse poder. E se negativa surgem outras questões, estas normas, garantias constitucionais, não foram efetivadas porquê e a quem caberia este papel?

O objetivo do presente trabalho, sem a pretensão de esgotar a matéria, é identificar os conceitos indispensáveis a esse enquadramento, analisar a relação contratual de consumo entre clientes e instituições financeiras, sempre de modo crítico, de forma a possibilitar uma tomada de posição sobre a matéria, a aplicação ou não do Código de Defesa do Consumidor aos contratos bancários, e indo mais adiante, verificar a efetividade que tem sido conferida a este direito fundamental outorgado pela CF/88.


1 evolução da teoria contratual

Antes que se passe a análise da proteção do consumidor em suas relações contratuais com instituições financeiras, é preciso ter em mente que as evoluções sociais são acompanhadas sempre pela evolução dos valores jurídicos que as fundamentam, assim é que dependendo do contexto histórico e de desenvolvimento social, diferente será o enfoque apresentado, pela ciência do direito, do instrumento contratual.

A noção clássica do contrato, como acordo de vontades ou forma de composição de interesses, acompanha a humanidade desde seus mais remotos tempos.

Suas origens poderiam ser encontradas no Direito Romano, a par do entendimento de alguns autores, como Orlando Gomes para quem, o instituto jurídico hoje denominado contrato, fundado na concepção clássica de autonomia de vontades, não teria equivalente naquele período, onde a essência da constituição da obrigação, surgia a partir de certas solenidades que deveriam ser adotadas, e não da manifestação da vontade em si. [1]

Entretanto, ao se considerarem as evoluções advindas com o incremento da Sociedade Romana, durante o período pós-clássico, quando houve sensível crescimento dos negócios jurídicos realizados, percebe-se que começa a ser admitida a vontade declarada pelas partes, como origem da força obrigatória das convenções ou pactos, o que significou razoável flexibilização dos procedimentos contratuais, outrora tão formais.

Esta concepção clássica de contrato, tendo como pedra angular a autonomia da vontade [2], foi influenciada por algumas correntes doutrinárias, dentre as quais se destacam o Direito Canônico e o Direito Natural.

As raízes do princípio da autonomia da vontade surgem de fato no direito canônico, a partir das idéias apresentadas, eminentemente através de pregações religiosas, que ressaltavam o dever moral da palavra devendo esta ser sempre proferida com consciência, pois o seu descumprimento consistiria no cometimento de um pecado.

A partir dos conceitos trazidos pelo jusnaturalismo, essencialmente racionalista e individualista, com tendência a supervalorizar o Homem, surge a idéia de que o nascimento das obrigações se encontrava na livre e racional vontade manifestada pelos contratantes, sendo esta suficiente para tornar obrigatório o acordo realizado.

Ou seja, o homem ser racional por excelência, só se obrigaria a algo se assim desejasse e se isto lhe trouxesse proveito, ou ao menos não lhe fosse prejudicial. Arnold Wald aponta o ápice da teoria contratual dos jusnaturalistas:

São os jusnaturalistas que levam o contratualismo ao seu apogeu, baseando em um contrato a própria estrutura estatal (O Contrato Social de Rousseau). [3]

Embalada por esses pensamentos, a filosofia iluminista, que buscava limitar o poder absolutista e opressor dos monarcas na Europa, obtém êxito com a Revolução Francesa que consagrou, através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a positivação dos direitos políticos do homem, fundados nos pilares do pensamento iluminista: igualdade, liberdade e fraternidade. Estes princípios da filosofia iluminista reforçam os contornos do dogma da autonomia da vontade.

Dentro deste mesmo contexto, e talvez seus frutos, surgem os princípios do liberalismo econômico, da livre circulação de riquezas, isentando das intervenções estatais o mercado, que seria regulado e equilibrado automaticamente pela atuação do homem, relacionando-se livremente com seus iguais na defesa de seus interesses.

É o Estado Voluntarista do deixai fazer, deixai passar, fundado no ideal da igualdade entre os homens, e supremacia de suas vontades, não havendo razão alguma que lhe impelisse a intervir nas relações privadas, pois esta livre manifestação, criadora de obrigações, deveria ser valorada tanto ou até mais do que a própria lei. Era o poder legislativo do particular, dentro dos limites de seus interesses privados.

O direito francês positivou este pensamento, ao mesmo tempo, liberalista, voluntarista e individualista, através do Código Civil de Napoleão, importante documento jurídico que bem retratou, em seu artigo 1.134, a força normativa conferida aos contratos naquele período, servindo de parâmetro para legislações futuras, inclusive para o Código Civil Brasileiro de 1916.

Conferir esta força normativa aos contratos implicava, na prática, em se admitir que as normas legais estatais teriam caráter supletivo das manifestações de vontade, tendo em vista esta ampla perspectiva de liberdade do querer humano, que só por si mesmo, em virtude de obrigações, contraídas poderia sofrer restrições ou limitações.

Dentro desse contexto, ao direito restava garantir o cumprimento destas vontades, não sendo de sua alçada interferir no conteúdo de tais declarações. E sob esta ótica o próprio direito seria produto de um contrato, conforme a teoria de Rousseau, citada por Cláudia Lima Marques, "o contrato não obriga porque assim estabeleceu o direito, é o direito que vale porque deriva de um contrato. O contrato, tornando-se um a priori do direito, revela possuir uma base outra, uma legitimidade essencial e autônoma em relação às normas: à vontade dos cidadãos". [4]

Ocorre que não constavam nos documentos criados pelos pensadores iluministas e positivados, após a Revolução Francesa as profundas desigualdades existentes entre os homens, contrastando com a igualdade garantida pela Declaração de Direitos, que se mostrou meramente formal, a igualdade de papel. A realidade comprovou que na prática a teoria era outra.

E se a reação popular aos desmandos e abusos dos monarcas absolutistas culminou com a instituição de seus direitos políticos, assecuratórios da propriedade e liberdades econômica e comercial, do mesmo modo há reação, quando a população volta a se sentir oprimida, não mais pelo poder estatal, mas por seus pares, iguais segundo a lei, contudo desiguais na realidade do dia a dia. Não buscavam então a garantia de tais direitos, no papel, mas sua efetividade na prática, o que só seria possível com o surgimento de outra geração de direitos, os sociais, protegendo o homem do próprio homem.

Assim, no âmbito das relações contratuais, em razão da evidente situação de desequilíbrio entre as partes contratantes, passa a ser necessária uma intervenção estatal inclusive no conteúdo das manifestações de vontade, outrora absolutas, como meio de se alcançar uma igualdade real, através de uma justiça distributiva, que dispensasse tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais. Como conseqüência, os princípios consagrados da autonomia da vontade e da liberdade contratual, ainda não eliminados da ordem jurídica, deixam de ser absolutos e tornam-se relativos.

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Sobre esta justiça distributiva, indispensável no atual Estado Social de Direito, Darcy Azambuja apresentou lição, antes mesmo da existência da Constituição Federal de 1988:

Os indivíduos humanos são, ao mesmo tempo, iguais e desiguais. Iguais pela natureza da pessoa humana, com as prerrogativas dessa qualidade que se encontra em todos eles; mas, desiguais também pela diversidade das suas condições de vida na ordem física, psicológica, moral, social e econômica: diversidade de sexo, idade, de saúde, de inteligência, de instrução, de virtudes, de educação, de profissão, de fortuna, de raça, de língua, de opinião, de serviços prestados ao Estado, etc....A verdadeira igualdade consiste em tratar desigualmente indivíduos desiguais e na proporção dessa desigualdade. [5]

E assim como ocorreu no âmbito das relações de trabalho, o que alterou substancialmente as relações contratuais, foram os avanços tecnológicos e o crescimento das empresas, decorrente do feroz movimento de industrialização, que trouxeram, ainda, uma alteração da forma de constituição de mercado, que pelo aumento da produção, que deixa de ser direcionado a indivíduos, passando a ter como destinatários grupos indetermináveis, é o nascimento, tanto da produção, quanto da sociedade de massa.

As empresas entendendo desnecessária a discussão de certos detalhes e para atender as relações decorrentes deste volume de produção direcionados a uma sociedade massificada, começam a elaborar cláusulas contratuais gerais, com o intuito de racionalizar e tornar mais prática a contratação, passando a dispor de um esquema contratual previamente formulado, oferecido à simples aceitação dos consumidores, surgindo então os contratos de adesão, homogêneos em seu conteúdo, mas direcionados e concluídos com uma série indefinida de contratantes. [6]

Esta modalidade contratual se apresenta como um verdadeiro paradoxo da noção clássica dos contratos, até então um instrumento de declaração de vontades, passando através desta degeneração a representar a vontade de apenas uma das partes.

Das iniqüidades cometidas através destes instrumentos, agravadas pela desigualdade real, surge a necessidade de intervenção estatal através da via legislativa, com o escopo de evitar ou reduzir os efeitos danosos desta imposição unilateral de vontades, conferindo a partir de então àquele instrumento de feições originárias tão individualistas seu indispensável caráter social.

Essa atuação vai ocorrendo de forma gradativa, alterando a noção clássica de contrato e acompanhando às mudanças sociais de modo a sobrepor o objetivo de equilíbrio das partes, o princípio da boa-fé e a própria função social dos contratos, a manifestação de vontades e sua força obrigatória.

É a noção do interesse social acima do individual, positivado no direito brasileiro através da Carta Constitucional de 1988 que criou o Estado Social de Direito, estando lançadas às sementes da proteção ao consumidor.


2 o estado social de direto garantindo a defesa do consumidor

Analisando a evolução da teoria contratual foi possível traçar um paralelo com a evolução da própria sociedade.

E se até certo ponto do século XX o Estado brasileiro tinha a função de garantir apenas a ordem e a segurança, passa a ter outras diretivas depois da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, que instaura uma nova fase política, econômica e social.

Isto tendo em vista que esta nova fase política, econômica e social, acarreta conseqüentemente a criação de uma nova ordem de valores.

Os valores jurídicos resultam em idéias inteiramente abstratas, supra constitucionais, que informam todo o ordenamento jurídico e que jamais se traduzem em linguagem normativa.

Por exemplo, a justiça e a segurança ou paz jurídica são as idéias básicas do Direito. Daí a indicação de que os valores resultam em informação, em base para análise dos pressupostos do direito.

Diante do caráter dos valores, sua tradução em princípios e regras concretas do direito, sofrerá variações ao longo do tempo, dependendo das etapas da própria vida jurídica.

O que é justo? A resposta, em termos de valores, dependerá da época.

Já o princípio representa o primeiro estágio de concretização dos valores jurídicos a que se vinculam. A justiça e a segurança antes mencionadas, começam a adquirir concretude normativa e ganham expressão escrita. Comportam os princípios, todavia, ainda algum grau de abstração e indeterminação.

Tais referências resultam no sentido de apontar a característica da atividade dependendo da época. No já referido Estado Liberal havia, na atividade empresarial, a compreensão de que o Estado não deveria interferir na relação entre o empresário e o consumidor porque nenhuma relação guardava, o comportamento, com os interesses da Administração Pública.

Cumpria ao Estado cuidar das áreas que lhe eram próprias: segurança, relações exteriores, defesa interna, segurança externa, etc.

Entretanto, com as alterações ao longo do tempo, valores daquela época hoje são aplicados de forma diversa e no limite da própria concepção do novo Estado, do Bem Estar Social onde se justifica a intervenção sempre que o interesse público exigir e, portanto, participa a Administração Pública de todas as atividades bastando, repetindo, a indicação do requisito mencionado: o interesse público podendo, inclusive, sacrificar direitos.

Nessa concepção é que se afirma a ocorrência do que num primeiro momento se denominou publicização do direito, para atualmente ser tratado como direito civil constitucional, restando ao empresário também parcela de participação no resultado do atendimento ao bem estar social.

O Estado Moderno, criado com a CF/88, se caracteriza por uma política pública assumindo outras funções, além das acima elencadas, para alcançar seu objetivo maior que é a construção de uma sociedade justa, livre e solidária. E dentre estas novas funções assumidas, como o implemento do desenvolvimento, erradicação da pobreza, defesa da saúde pública, encontra-se a garantia fundamental da defesa do consumidor.

E esta defesa contará com a ciência jurídica, pois o direito tem que acompanhar as evoluções do homem e da sociedade, não podendo permanecer à parte da realidade.

2.1 Lei 8078/90: Normas de ordem pública e interesse social

A Lei 8078, de 11 de setembro de 1990, que regula a proteção do consumidor, teve sua criação determinada por norma constitucional.

Com efeito, ao instituir o novo Estado Brasileiro, a partir da CF/88, o legislador constituinte inseriu no artigo 5º, inciso XXXII, como um dos direitos fundamentais, a proteção do consumidor.

Deste modo os consumidores foram erigidos à categoria de titulares de direitos fundamentais [7], ao mesmo tempo em que se determinou um ônus para o Estado.

Decorre deste mandamento constitucional a natureza de ordem pública que reveste todas as normas inseridas na lei 8078/90, que lhes confere jus cogens, ou seja, obrigatoriedade, conforme expresso em seu artigo 1º, que estabelece cuidar o Código de Defesa do Consumidor de normas de ordem pública e interesse social.

As normas de ordem pública estabelecem valores básicos e fundamentais de nossa ordem jurídica, são normas de direito privado, mas de forte interesse público, daí serem indisponíveis e inafastáveis através de contratos. O CDC é claro, em seu art. 1º, ao dispor que suas normas dirigem-se à proteção prioritária de um grupo social, os consumidores, e que se constituem em normas de ordem pública, inafastáveis, portanto, pela vontade individual. São normas de interesse social, pois as leis de ordem pública são aquelas que interessam mais diretamente à sociedade que aos particulares. [8]

Quanto ao interesse social, entende-se que o legislador ao criar o CDC teve em mente tutelar não apenas o indivíduo, mas a coletividade de consumidores, determinável ou não, exposta de forma notadamente vulnerável às práticas do mercado de consumo, o que se caracterizou como "fenômeno importante na sociedade moderna, pois que se tem mostrado difícil, às vezes, inócua, a tentativa de consumidores, isoladamente, reagirem às espoliações perpetradas por produtores". [9]

Desta forma, o dever do Estado de promover a defesa do consumidor, como interesse social que é, deixa de ser tratado apenas no campo dos direitos individuais, passando a fazer parte também dos direitos coletivos, o que na prática apresenta conseqüências importantes, segundo Nelson Nery:

Ser de interesse social, significa, em termos práticos, que o MP terá participação obrigatória em todas as ações coletivas sobre lides de consumo, encontrando-se legitimado, para defender em juízo, os direitos individuais homogêneos (art. 81, § ú, III) do consumidor, pois como são interesses sociais ex lege (art.1º), esta defesa atende a finalidade institucional do MP. [10]

Decorre desta caracterização da defesa do consumidor como interesse público, uma das grandes inovações trazidas pela Lei 8078/90, de alcance multidisciplinar, pois o artigo 81, I, do CDC apresenta a definição do que sejam os interesses difusos, cuja defesa se fará através de ação civil pública.

São direitos cujos titulares não se pode determinar. A ligação entre os titulares se dá por circunstâncias de fato. O objeto desses interesses é indivisível, não pode ser cindido. É difuso, por exemplo: o direito de respirar ar puro; o direito do consumidor de ser alvo de publicidade não enganosa e não abusiva. [11]

Talvez por possuir esta natureza a defesa do consumidor tenha recebido do legislador constituinte tratamento especial, pois no artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias foi estabelecido o prazo de 120 dias para criação de um código que positivasse e regulamentasse este direito fundamental.

E não fosse essa postura adotada, provavelmente até hoje se estaria a espera da boa vontade do Poder Legislativo em criar norma infraconstitucional. Em que pese o fato de que algumas determinações constitucionais restam sem efetiva aplicabilidade, a mercê de regulamentação por lei ordinária, como por exemplo o parágrafo 3º do artigo 192 que estipulou o teto de 12% ao ano, para as taxas de juros referentes à concessão de crédito, sob pena de configuração do crime de usura.

2.2 Princípio da isonomia

Além de direito fundamental do cidadão brasileiro, consubstanciaram-se as normas de defesa do consumidor, no âmbito das relações de consumo, como meio de concretização do princípio constitucional da isonomia, enquanto igualdade material, real, e não meramente formal.

O princípio constitucional da igualdade, artigo 5º da CF/88, ao mesmo tempo em que se realiza através destas normas, se apresenta como seu fundamento, conferindo legitimidade à tutela especial dispensada ao consumidor e positivada no artigo 4º, I, do CDC que reconhece a vulnerabilidade presumida do consumidor.

E não poderia ser de outra forma, tendo em vista o fim social que determinou a inclusão da proteção do consumidor no rol das garantias fundamentais, justamente pela constatação de que diante do mercado, regrado pelas normas do "capitalismo selvagem" este se encontrava em situação de evidente desvantagem, o que contraria, inclusive o princípio, da dignidade da pessoa humana.

E nestas condições se tornou essencial à manutenção da ordem do bem estar social a intervenção do Estado, também neste campo de atuação eminentemente privado, atuando como regulador destas desigualdades, pois o caput do artigo 5º da CF não quis se referir à igualdade legal como paridade de tratamento, mas à igualdade social. O que de acordo com Paulo Bonavides isto significa que "na atual fase da doutrina não se trata em rigor, como assinalou Leibhols, de uma igualdade ‘perante’ a lei, mas ‘através’ da lei". [12]

Deste modo as inovações trazidas ao ordenamento jurídico brasileiro através da lei 8078/90 o transformam em instrumento de aplicação concreta da justiça distributiva.

2.3 princípio da ordem econômica

Apesar das inúmeras controvérsias geradas com a normatização da defesa do consumidor, sob falsas alegações de que este código iria inviabilizar as relações de mercado, a sua proteção foi estabelecida pelo legislador constituinte como um dos princípios da ordem econômica, artigo 170, V, CF/88.

E este princípio constitucional apresenta-se no artigo 4º do CDC, que cuida dos objetivos a serem perseguidos, através da criação de um sistema nacional das relações de consumo, dentre os quais, harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da defesa do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica. [13]Não é outro o intuito da lei, que o de gerar harmonia nas relações de consumo, conforme se depreende do caput, de seu artigo 4º, ao instituir o sistema nacional das relações de consumo.

Portanto, não significa que a lei de proteção ao consumidor ao proteger o mais fraco, se apresentará implacável à outra parte da relação, e deste modo ao próprio mercado como um todo.

Muito pelo contrário, a lei 8078/90 não almeja uma estagnação da evolução do mercado e conseqüentemente da economia, e sim visa equilibrar as relações que formam este mercado, cumprindo a determinação constitucional de que esta defesa se compatibilizasse de forma a tornar viáveis os princípios da ordem econômica, art. 170, pois esta também se configura em interesse de todos. [14] O que se busca é o desenvolvimento harmônico e sustentável, conforme já fora previsto através da Resolução ONU 153/95

2.4 Instrumentos de proteção DO CDC

De nada serviria para efetiva proteção da parte mais fraca, das relações de consumo, a constituição do CDC se ele não trouxesse em seu corpo instrumentos que elevassem o consumidor à posição de igualdade com relação ao fornecedor.

O artigo 6º do CDC contempla os direitos básicos do consumidor, configurando o texto deste dispositivo uma verdadeira síntese do conteúdo dos artigos seguintes da lei, tanto em termos de direito material, quanto na área processual.

Lembrando que o intérprete sempre terá que ter em vista a finalidade desta lei, especial por direcionar atenção a pessoas específicas que necessitavam de tutela diferenciada por parte do Estado, sendo característica das leis que possuem função social a imposição de noções valorativas que devem orientar a sociedade, "positivando uma série de novos direitos assegurados a esse grupo tutelado que representarão respectivos deveres a outros agentes da sociedade". [15]

Alguns dos instrumentos de proteção apresentados com a Lei 8078/90 serão aqui citados, especialmente os que se referem mais detidamente ao objeto do presente estudo, quanto à proteção contratual.

Outra inovação de significativa importância refere-se à positivação do princípio da boa-fé no Código de Defesa do Consumidor.

Ainda que o atual Código Civil também o traga expresso em seu corpo, há que se considerar que por ocasião da promulgação da lei de proteção do consumidor em 1990, e durante 12 anos portanto, o CDC coexistiu com o Código Civil de Bevilácqua, onde este princípio era considerado implícito.

O Código de Defesa do Consumidor traz expresso o princípio da boa-fé em seus artigos 4º, III e 51, IV. Contudo, o que de mais importante decorre desta positivação é a adoção, ainda que implícita, da cláusula geral de boa-fé, que mesmo não expressa deverá ser reputada como inserida e existente em todas as relações de consumo. [16]

Afinal, se os princípios da Política Nacional das Relações de Consumo harmonização dos interesses dos participantes da relação de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com as necessidades de desenvolvimento tecnológico deverão ser efetuados com base na boa-fé (art.4º, III), assim como serão reputadas como abusivas, e portanto nulas de pleno direito, as cláusulas contratuais que a ela se mostrem incompatíveis (art.51, IV), resta evidente, que em todas as relações de consumo esta implícita a necessidade de respeito e atendimento a esta regra.

Dentre os inúmeros direitos básicos do consumidor, elencados no artigo 6º, dois são aqui examinados, quais sejam, aqueles previstos nos incisos V e VIII.

Através da norma contida no inciso VIII, o legislador instituiu como direito essencial do consumidor à facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova em seu favor. Nesta garantia encontra-se aplicação do princípio da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LV), além é claro da igualdade.

A linha de raciocínio não se altera muito pois, sempre partindo do pressuposto de vulnerabilidade do consumidor, é essencial para restabelecimento de equilíbrio e garantia de justiça, que seu acesso à justiça e a defesa de seus direitos seja facilitada, sob pena de durante o curso da ação, esta desvantagem se acentuar ainda mais.

A inversão do ônus da prova, sempre que presente um dos requisitos necessários, elencados neste inciso, é o modo de se possibilitar o acesso do consumidor, vulnerável, se não na essência, circunstancialmente, às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, requisitos do due process of law – devido processo legal.

A regra disposta no inciso V, que prevê a modificação ou revisão das cláusulas contratuais que, respectivamente, estabeleçam prestações desproporcionais ou que se tornem excessivamente onerosas em virtude de fato superveniente, está diretamente relacionada à proteção do consumidor nas relações contratuais, tema que por sua importância, recebeu do legislador capítulo próprio (Capítulo VI), a dispor sobre a Proteção Contratual.

Com relação a esta tutela específica, destacam-se os artigos 47, 51 e 54, inseridos neste capítulo.

Em se considerando a revolução trazida ao ordenamento jurídico através da criação do CDC há que se afirmar que um dos campos em que esta se mostrou mais evidente foi justamente o das relações contratuais.

Reafirmando que para a relação contratual sofrer a incidência das normas do CDC, terá que apresentar partes contratantes em situação de desigualdade e, conforme será analisado ainda, inseridas nos conceitos de consumidor e fornecedor, apresentados pelo próprio código,

A norma deste inciso V reflete a relativização do outrora imperioso princípio da pacta sunt servanda, e ao mesmo tempo a aplicação do princípio da conservação dos contratos.

Pois, diferente da ordem civil tradicional que determina a resolução dos contratos possuidores de cláusulas abusivas, o CDC garante as partes, a manutenção da substância do contrato, mesmo diante de tais iniqüidades, pois esse sistema inovador possui instrumentos através dos quais deve se proceder à adequação ou modificação da cláusula que gera vantagem exagerada, ou ainda a revisão daquela que torne excessivamente oneroso o contrato para o consumidor.

Diretamente relacionados ao dispositivo ora analisado, estão os artigos 51 e 54 do CDC.

Trata o primeiro deles de exemplificar rol de cláusulas abusivas e por isso nulas de pleno direito, pois ferem a ordem pública da defesa do consumidor, e o segundo ao conceituar contratos de adesão, e por força desta definição, determina cuidado redobrado quando da interpretação destes instrumentos.

Quanto às nulidades previstas no artigo 51, mais algumas considerações. Essencialmente, no que se refere ao sistema próprio de nulidades do CDC. As normas que tratam da nulidade em outros sistemas jurídicos, como o Civil, o processual, etc., não podem ser inteiramente aplicáveis ao sistema de defesa do consumidor.

E isto se dá, em virtude de variarem as normas de um sistema a outro de acordo com suas próprias peculiaridades. Por exemplo, com relação à preclusão, enquanto no âmbito do direito civil há tratamento diferenciado às nulidades relativas e absolutas, o sistema consumerista só faz menção às absolutas, sendo facultado ao consumidor, deste modo, alegá-las a qualquer tempo, a uma por ser nulidade que fere a ordem pública, e a duas pelo silêncio do legislador em fixar um prazo prescricional.

Sendo matéria de ordem pública, (art. 1º, CDC), a nulidade de pleno direito das cláusulas abusivas nos contratos de consumo não é atingida pela preclusão, de modo que pode ser alegada a qualquer tempo e grau de jurisdição, impondo-se ao juiz o dever de pronunciá-las de ofício. O Código não fixou nenhum prazo para o exercimento do direito de pleitear em juízo a nulidade da cláusula abusiva. Conseqüentemente, na ausência de norma nesse sentido, a ação é imprescritível. [17]

E, finalmente, quanto à norma inserida no artigo 47 do CDC, que determina a interpretação dos contratos, de consumo, sempre de forma favorável ao consumidor.

Mais uma inovação apresentou o CDC neste aspecto, pois o Código Civil de 1916, não continha disposição correspondente, e mesmo o Código Civil de 2002, que faz referência à interpretação favorável, a restringe às obrigações originadas por contratos do tipo de adesão e ainda, havendo cláusulas obscuras. Tendo que ser ressaltado, a atualidade desta nova lei civil, justificáveis as diferenças pela diversa finalidade, bem como diversidade de destinatários, entre o CC e o CDC.

A norma do CDC não se dirige apenas aos contratos de adesão, mas aos contratos de consumo em geral, às cláusulas ou qualquer pacto ou convenção firmado entre consumidor e fornecedor.

Esse benefício, também tradução do princípio da isonomia em razão do desequilíbrio de forças flagrantes entre as partes contratantes, encontra fundamento na valoração da função social do contrato, trazida pelo novo modelo estatal advindo da promulgação da Carta Constitucional.

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Sobre a autora
Rafaella Munhoz da Rocha Lacerda

acadêmica do curso de Direito da Faculdade de Direito de Curitiba

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LACERDA, Rafaella Munhoz Rocha. Efetividade da tutela do consumidor na relação contratual bancária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 615, 15 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6443. Acesso em: 25 abr. 2024.

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