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Direitos humanos e liberdade religiosa. O caso da proibição do uso do hijab pelas muçulmanas estrangeiras nas escolas públicas francesas.

Evidente violação às normas de direitos humanos ou mera consecução dos princípios da reciprocidade e igualdade?

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10/12/2004 às 00:00
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"Graças à Declaração Universal, os direitos humanos estabeleceram-se em todo o lugar como uma legítima preocupação política e moral e a comunidade internacional dá apoio aos direitos humanos, para que o cidadão comum possa recorrer a instrumentos de contestação e inspiração e que leis reforçando os direitos humanos se desenvolvam em diferentes regiões do mundo (...) Não há volta na revolução dos direitos humanos".
(Kofi A. Annan, Secretário Geral da ONU.

"Isso pode contribuir apenas com o acirramento do extremismo e fundamentalismo".
(Fanny Dethloff, Clériga Luterana)

"Os conflitos mundiais não deveriam ser trazidos para dentro da sala de aula".
(Alain Destexhe, Político Belga)


1.0. Considerações Introdutórias concernentes ao histórico da condição jurídica do estrangeiro.

O doutrinador JACOB DOLINGER (1) preconiza que o tratamento que os povos concediam aos estrangeiros residentes em seu território figura entre os aspectos mais importantes na determinação de seu grau de civilização e de humanitarismo.

No antigo Egito, apenas os ribeirinhos do Nilo eram considerados puros, não sendo permitido a um egípcio sequer comer na companhia de estrangeiros. A prática de religião diversa ao politeísmo egípcio era não apenas abominada, como reprimida.

Na Grécia e em Roma, em seus primórdios, o estrangeiro não se caracterizava como sendo ente dotado de direitos, pois estes eram derivados da religião, da qual aquele era excluído. Assim, as leis da cidade para ele não existiam. Não lhe era permitido casar, sendo os filhos nascidos da união de um cidadão e uma estrangeira considerados bastardos, não tendo a prerrogativa de contratar ou exercer o comércio, sendo-lhe vedado, ainda, herdar de um cidadão. Após um determinado período, surge a figura do polemarca (juiz dos estrangeiros) na Grécia, bem como o praetor peregrinus e do jus peregrinum, ambos concernentes à condição jurídica do estrangeiro em Roma.

Sobre o assunto ora versado, preceitua Ricardo Gama:

"Na antiguidade, como é cediço, os impérios e as cidades-Estado não eram regidos pela pacificação e convivência, mas, tão-somente, pelas conquistas. Nesse contexto, o estrangeiro era considerado sempre um inimigo real ou em potencial e, no mesmo sentido, os impérios e tribos vizinhos representavam uma ameaça constante, ressaltada a cobiça por novas conquistas sempre presente nos pretensos agressor e agredido. Como conseqüência dessa prática, baseado na ausência de noções de justiça e de sentimento de solidariedade, o isolamento de cada comunidade estava sempre em ascendência" (2).

Ainda de acordo com Dolinger (3), os bárbaros, após invadirem o Império Romano no século V, institucionalizaram o sistema da personalidade da lei, no qual cada pessoa era livre para reger sua vida pela norma jurídica de sua origem ("La race émigre, la loi la suit"). Dessa maneira, coexistiam no mesmo território o direito romano e múltiplos direitos bárbaros, aperfeiçoando-se relações jurídicas entre pessoas de diferentes origens e regidas por leis diversas.

Com o Regime Feudal, encerra-se o período da personalidade da lei, passando a vigorar o denominado sistema de territorialidade da lei, transformação ocorrida no século IX, não sendo comuns, conseqüentemente, os conflitos de normas à época.

Podemos considerar que FRIEDRICH CARL VON SAVIGNY (4) se configurava enquanto grande refutador do territorialismo. Sustentava que, quanto mais as relações entre os diversos povos se ampliam, mais devemos nos convencer da necessidade de renunciar ao princípio da exclusão, para adotar o princípio contrário. O interesse dos povos e dos indivíduos exigiria igualdade no tratamento das questões jurídicas.

Nesse contexto, defendia o doutrinador supra a existência de uma "comunidade de direito entre os diferentes povos", segundo a qual, para se encontrar a lei aplicável a cada hipótese, haveria de se "determinar para cada relação jurídica o direito mais de conformidade com a natureza própria e essencial dessa relação".

Por fim, ressaltem-se os ensinamentos de ACCIOLY:

"O reconhecimento de direitos do estrangeiro decorre de duas circunstâncias: a personalidade humana, com os direitos que lhes são inerentes e que nenhum Estado pode ignorar, e a situação do Estado como membro da comunidade internacional, com os deveres de interdependência e solidariedade entre as nações, impostos por essa situação. Donde resulta que o Estado deve regular a condição dos estrangeiros, sem distinção de nacionalidade, protegendo-os em suas pessoas e bens e reconhecendo a todos o mínimo de direitos admitidos pelo direito internacional" (5).

Ainda de acordo com o autor, os direitos que devem ser reconhecidos aos estrangeiros são: a) os direitos do homem, ou individuais, isto é, a liberdade individual e a inviolabilidade da pessoa humana, com todas as conseqüências daí decorrentes, tais como a liberdade de consciência, a de culto, a inviolabilidade do domicílio, o direito de comerciar, o direito de propriedade, etc; b) os direitos civis e de família.

Faz-se evidente, portanto, o fato de que a liberdade religiosa e de culto, enquanto prerrogativas consagradas pelo direito internacional, devem ser asseguradas a todo estrangeiro presente em território alheio. O assunto será explicitado detalhadamente mais adiante.


2.0. Liberdade Religiosa x Laicismo Estatal na França: uma breve perspectiva histórico-evolutiva.

O princípio do laicismo, já defendido por filósofos iluministas no século XVIII, que representa a separação entre Igreja e Estado, caracteriza-se por ser um dos elementos que embasaram a Revolução Francesa.

Jean Baubérot (6), acerca do princípio do laicismo em território francês, assim ensina, in verbis:

"The French notion of secularity appears as a means of grounding the social bond in values recognized as universal. The now generally agreed view in France is that this is the best means. That is open to debate. The essential point is that secularity is to be understood as a particular way of embodying shared values". (7)

O secularismo é considerado por alguns como sendo uma verdadeira "religião estatal" entre os franceses. Pensadores iluministas, como Montesquieu e Voltaire, entendiam que a Religião não passava de um elemento causador de discórdias, sendo, portanto, totalmente dispensável.

Durante a Revolução Francesa, muitos padres foram compelidos a jurar lealdade à República. Houve confiscação de bens da Igreja Católica. Ocorrera uma tentativa de resistência por parte do Vaticano em relação à ordem republicana imposta pela França à época pela Europa. Em represália, a França invadiu Roma em 1798 e 1809.

Napoleão Bonaparte decretou uma trégua trazendo a igreja para o abrigo do Estado, acordo que durou até 1905, quando a Terceira República declarou a separação definitiva entre a Igreja e o Estado. Ressalte-se que em 1804 foi decretado o Código Civil Napoleônico, que consagrou o princípio da igualdade do indivíduo perante a lei (8).

A situação se agravou a partir das décadas de 60 e 70, quando o processo de imigração por parte dos islâmicos passou a se intensificar. As gerações subseqüentes recrudesceram a estranheza e o repúdio a um Estado laico e repressor da liberdade religiosa, utilizando o véu e os ideais islâmicos como forma de preservação de sua identidade.

Nesse contexto, o país se encontra dividido: os mais tradicionalistas querem fazer valer os princípios seculares consubstanciados há tanto tempo, alegando que o hijab não passa de uma forma de demarcação territorial por parte dos islâmicos extremistas.

No que concerne à utilização do hijab pelas muçulmanas, Dalil Boubakeur, presidente do Conseil Français du Culte Musulman, assim entende :

"Le hijab est, après tout, une affaire personnelle. Les femmes ne sont pas les seules à qui l’on a imposé des tenues vestimentaires. Dans certains pays, les dirigeants ont prôné l’habit européen autant pour les hommes que pour les femmes" (9).

No final da década de 80, a mais alta corte francesa decidiu pela ilegalidade da proibição de símbolos religiosos nas escolas públicas. Todavia, entendeu, paradoxalmente, que os alunos que fizessem uso de um sinal religioso que assinalasse tentativa de conversão poderiam ser expulsos. No mesmo diapasão, cinco anos mais tarde, o ministro da Educação afirmou que sinais ´´ostensivos´´ poderiam ser proibidos, deixando para os diretores de escola a interpretação da declaração.

O debate teve seu ápice no final de 2003, quando uma comissão francesa presidida por Bernard Stasi apresentou os resultados de cinco meses de investigação sobre a aplicação do princípio do laicismo na França.

Nesse contexto de sentimento nacionalista, podemos afirmar que Alemanha, v.g., proibiu a utilização de símbolos religiosos por parte de professores da rede pública de ensino. O Estado Alemão, na concepção do seu chanceler Gerhard Schroeder, caracterizar-se-ia por ser secular (assim como a França), não podendo funcionários públicos utilizar símbolos religiosos no labor.

Acerca do contexto da situação dos estrangeiros islâmicos na Europa, preconiza Washington Araújo:

"O sentimento de superioridade racial, com sua longa história de sofrimentos, guerras e conflitos étnico-raciais, cederá espaço à proposta de unidade racial (...) [Entretanto] com o ressurgimento de movimentos racistas na Europa, em especial na Alemanha, contra a minoria turca residente no país, os países tendem a investir na prevenção desse mal, chegando a impor sanções econômicas drásticas - tal o ocorrido contra o apartheid na África do Sul". (10)


3.0. O caso da proibição do uso do hijab pelas muçulmanas estrangeiras nas escolas públicas francesas: violação às normas de direitos humanos ou mera consecução dos princípios da reciprocidade e igualdade?

Ab initio, faz-se imprescindível destacarmos o conteúdo do artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, verbis:

"Art. 18 -Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular".

Como resta evidente após a leitura do dispositivo, a liberdade de religião se caracteriza por ser um direito humano universal, erga omnes. Tem essa prerrogativa, portanto, todo e qualquer homem que deseje manifestar a sua crença, em público ou particularmente.

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O Vaticano, em 12 de Abril de 2002, assim se pronunciou na 58ª Sessão da Comissão da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos do Homem:

"O direito à liberdade religiosa contido no art. 18 da Declaração Universal dos Direitos do Homem foi sempre considerado como uma das pedras angulares do edifício dos direitos humanos, dado que diz respeito a uma das mais profundas dimensões da vida da pessoa e da sua busca da verdade. Violar o direito à liberdade religiosa significa violar um dos mais íntimos santuários da dignidade da pessoa humana. (...) A posição da Santa Sé (...) foi definida pelo Concílio Vaticano II, que faz a seguinte afirmação, em plena sintonia com os instrumentos de promoção dos direitos humanos: "Se, atendendo às circunstâncias peculiares dos povos, uma comunidade religiosa é especialmente reconhecida na ordenação jurídica da sociedade é, ao mesmo tempo, necessário que se reconheça a todos os cidadãos e comunidades religiosas o direito à liberdade em matéria religiosa e que tal direito seja respeitado (Declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae. 06". (11)

Com efeito, o artigo 18 da Declaração inspirou o surgimento de alguns diplomas que tratam da problemática em tela, quais sejam: a Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou convicções, proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 25/11/1981 (Resolução 36/55) e a Declaração sobre os direitos das pessoas pertencentes a minorias nacionais ou étnicas, religiosas e lingüísticas, aprovada pela Assembléia Geral em sua Resolução 47/135 de 18/12/1990.

Acerca dos documentos internacionais retromencionados, preceitua Alejandro CHANONA:

"(...) buscan la creación de un mundo en donde la dignidad humana sea preservada y mantenida a pesar de la persistencia de graves y múltiples violaciones a tales derechos que se comenten día a día en la mayoría de los países, sea por sentimientos nacionalistas, fundamentalistas xenofobillos o intolerantes en diversos puntos del orbe, que no solo ponen en tela de juicio la aplicación efectiva de los derechos humanos de millones de seres humanos, sino que representan un retroceso del esfuerzo realizado por la comunidad internacional por garantizar la realización y universalidad de los derechos humanos para todas las personas." (12)

O papa João Paulo II, em sua mensagem anual aos chefes de Estado no dia mundial da paz, no ano de 1999, assim afirmou:

"A liberdade religiosa constitui o coração dos direitos humanos. Essa é de tal maneira inviolável que exige que se reconheça às pessoas a liberdade de mudar de religião se assim sua consciência demandar. Cada qual, de fato, é obrigado a seguir sua consciência em todas as circunstâncias e não pode ser constrangido a agir em contraste com ela. Devido a esse direito inalienável, ninguém pode ser obrigado a aceitar pela força uma determinada religião, quaisquer que sejam as circunstâncias ou as motivações".

Assim, percebe-se que a liberdade religiosa possui ampla proteção por parte do sistema de direitos humanos internacional. Entretanto, o caso da França representa um verdadeiro choque principiológico, na medida em que dois valores não coadunam entre si: o secularismo, enquanto princípio supremo, consagrador da Revolução Francesa, e a liberdade religiosa per se. Seria esse conflito resultado de uma prática discriminatória e xenófoba, ou uma mera consecução dos princípios da igualdade e reciprocidade?

Com efeito, a Câmara de Deputados da França aprovou a Lei objeto da presente polêmica por 494 a favor e 36 contrários. Foi decidido que "no ensino básico e médio, símbolos e trajes que demonstram ostensivamente a filiação religiosa dos estudantes são proibidos" (13). A modificação no Código de Educação Francês foi determinada pela Lei nº 2004-228 de 15 de março 2004 e passou a vigorar desde 01 de setembro de 2004.

Discute-se, nesse contexto, se a norma acima citada não seria uma tentativa de fazer prevalecer o artigo 11 do Código Civil da França, que preconiza, verbis:

"art. 11- O estrangeiro gozará na França dos mesmos direitos civis do que os que são ou serão permitido aos franceses pelos tratados da nação à qual pertença o estrangeiro".

Encontra-se, assim, consubstanciado no dispositivo legal supra o sistema da reciprocidade diplomática. Seria, portanto, a proibição da utilização de símbolos religiosos uma espécie de reciprocidade, visto que, por exemplo, se uma cidadã francesa fosse expor a sua preferência religiosa em um país muçulmano mais extremista provavelmente seria compelida a não faze-lo?

Acerca do princípio da reciprocidade, ensina RICARDO GAMA:

"Com o princípio da reciprocidade, um Estado responde à gentileza com atos da mesma ordem. Em caso de violação da norma internacional, a punição atua como contraprestação. Assim, dando-se a violação de direitos, o causador da lesão deve ser contido para evitar maiores prejuízos e paralisar a ação que estiver em curso, sobrevindo, ainda, a obrigação de indenizar". (14)

Entretanto, declarações do primeiro-ministro francês Jean-Pierre Raffarin (15) defendendo o banimento do hijab das escolas públicas, posto que eventualmente "minariam" o ideal republicano francês de liberdade e igualdade, causaram alvoroço na comunidade islâmica.

RAFFARIN insinuou que a utilização do véu islâmico pressupunha um significado político, enfatizando que, se necessário fosse, o laicismo seria imposto a qualquer custo com base na Lei aprovada. A forma enfática com que proferiu tais afirmações ensejou a reação de determinados setores da sociedade francesa, que logo o acusaram de ser racista e xenófobo. Os seus defensores alegaram que não se tratava de discriminação, posto que foram igualmente proibidos os crucifixos cristãos e os quipás judaicos.

Realmente, podemos considerar que sentimentos xenófobos são responsáveis por minar não apenas a convivência harmônica entre estrangeiros e nacionais, como também por representar uma ameaça para a devida consecução das prerrogativas inerentes a todo ser humano. A xenofobia e a discriminação são fatores que podem ser verdadeiramente explosivos, alimentando a intolerância, aperfeiçoando-se, dessa maneira, um processo preocupante para a humanidade. Conclui CHANONA que a xenofobia:

"(...) significa la marginación de millones de seres humanos pertenecientes a minorías nacionales o étnicas, religiosas y lingüísticas, quienes ante la imposibilidad de poder disfrutar plenamente de su propia cultura, a profesar y practicar su propia religión, y a utilizar su propio idioma, en privado y en público, libremente y sin injerencia ni discriminación de ningún tipo, se ven impulsados a luchar por sus derechos, provocando conflictos nacionales y/o internacionales". (16)

Nesse diapasão, vale salientar que o sentimento de rejeição por parte dos estrangeiros oprimidos pode se transformar em futuros e eventuais conflitos. É desnecessário, inclusive, ressaltarmos que uma das principais causas do terrorismo no globo hodiernamente é concretizada exatamente pela facilidade de se incitar o ódio em indivíduos que se sentem à margem.

O excluído social, inserido em um patamar de miséria e pobreza, é facilmente aliciado por fanáticos religiosos ou não, e as conseqüências desse processo são obviedades ululantes. Como é sabido, não se fazem necessários grandes artifícios para se incitar a indignação em islâmicos inconformados com a política externa perpetrada pelo texano BUSH, chechenos separatistas contrários ao Governo Putin ou palestinos inconformados com os desmandos de Sharon.

Nesse contexto de conflitos desencadeados por motivações religiosas, preconiza o insigne jusfilósofo GUSTAV RADBRUCH:

"Uma tal contenda pode arrastar consigo, é certo, importantes conseqüências culturais, mas não propriamente, ela, uma significação cultural. Por isso só duma última fonte a apologia da guerra poderá ainda aguardar justificação; precisamente aquela de que brota para todo o ser, em última análise, uma consagração e um valor: a Religião. (....) Para além da ciência e da filosofia, procura, porém, a Religião ver em toda guerra um valor mais alto, mesmo ainda na mais injusta de todas elas. É um dos traços mais paradoxais da natureza humana o ser esta capaz de fazer brotar de si mesma o mais metafísico dos optimismos, qual é o da posição religiosa, ainda quando a contemplação empírica do mundo lhe impõe o mais formal e angustioso dos pessimismos". (17)

Todavia, surge uma terceira possibilidade concernente à problemática em tela: a mera consecução do princípio da igualdade entre nacionais e estrangeiros.

Nesse sentido, podemos evidenciar os ensinamentos do ilustre Hans Kelsen (18), que definiu perfeitamente a situação jurídica do estrangeiro em terra alheia. O Estado não teria, em tese, obrigação de admitir estrangeiros em seu território. Entretanto, uma vez admitidos, devem ter direito a uma posição de igualdade com os cidadãos, com um mínimo de prerrogativas. Nesse diapasão, o código de Bustamante (19), que, em seu artigo 1º, preconiza que "os estrangeiros que pertençam a qualquer dos Estados contratantes gozam, no território dos demais, dos mesmos direitos civis que se concedem aos nacionais".

Ainda nesse contexto, a Convenção de Havana sobre Direitos dos Estrangeiros (20), de 1928, que determina em seu art. 5º a obrigação dos Estados "concederem aos estrangeiros domiciliados ou de passagem em seu território todas as garantias individuais que concedem a seus próprios nacionais e o gozo dos direitos civis essenciais".

De fato, Dolinger (21) preceitua que a igualdade dos estrangeiros e nacionais encontra-se prevista em diversos diplomas internacionais, destacando-se: o artigo 2º do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Nova York, 19-12-1966; os artigos 2º e 26 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, Nova York, 19-12-1966 (ambos patrocinados pela Organização das Nações Unidas-ONU); e, por fim, o artigo 1º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de São José da Costa Rica, 22-11-1969.

Porém, emerge da igualdade entre estrangeiros e nacionais o maior conflito da problemática em tela: o estrangeiro não pode pretender mais proteção ou prerrogativas do que o tratamento dispensado aos nacionais, sob pena de desrespeito ao princípio da igualdade. Entretanto, possui a liberdade religiosa enquanto direito inexpugnável à essência humana, universalmente reconhecido.

Podemos afirmar, ainda, que a questão em pauta suscita, de fato, diversos argumentos contrários, não havendo consenso sobre a questão. Não podemos prescindir, contudo, em relação à consecução dos preceitos consagrados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, sob o pretexto de que existe um simples conflito principiológico (laicismo x liberdade religiosa) no contexto francês.

Em última instância, emerge o antigo dilema de como atribuir binding power (caráter cogente) às normas de direitos humanos, com o intuito precípuo de conferir-lhes a efetividade necessária.

Nesse sentido, a preciosa lição de Terry Collingsworth, em artigo publicado no Jornal de Direitos Humanos da Universidade de Harvard:

"Se há algum consolo para o insucesso em se alcançar um acordo na Conferência Mundial das Nações Unidas Contra o Racismo, ocorrida em Duban, África do Sul, é o de que qualquer modelo alcançado teria sido acumulado a convenções e resoluções de direitos humanos bem intencionadas que permanecem basicamente sem caráter cogente. (...) A adesão às normas de direitos humanos internacionalmente reconhecidas continua geralmente voluntária. (…) A Declaração Universal dos Direitos do Homem é muito bem redigida e compreensível. Encontra-se em vigor desde 1948, e ainda estamos longe da realização dos seus objetivos, pois os seus signatários podem e realmente ignoram as suas disposições". (22)

O Estado francês não pode se eximir em relação ao cumprimento de disposições consagradas universalmente, devendo evitar, a todo custo, qualquer expressão de intolerância, racismo ou xenofobia, sob pena de caminhar contra os avanços normativos alcançados. Apesar do aparente conflito principiológico, não podem incorrer em uma postura paradoxal. Afinal, a liberdade em todas as suas expressões e, sobretudo, a fraternidade - assim como o laicismo – são alicerces sobre os quais, teoricamente, erigiu-se a Revolução Francesa.

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Sobre o autor
Andrew Patrício Cavalcanti

bacharelando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTI, Andrew Patrício. Direitos humanos e liberdade religiosa. O caso da proibição do uso do hijab pelas muçulmanas estrangeiras nas escolas públicas francesas.: Evidente violação às normas de direitos humanos ou mera consecução dos princípios da reciprocidade e igualdade?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 521, 10 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6036. Acesso em: 28 mar. 2024.

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