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Constitucionalização do Direito Civil

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01/07/1999 às 00:00
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9. Fontes constitucionais da propriedade

A propriedade é o grande foco de tensão entre as correntes ideológicas do liberalismo e do igualitarismo. O direito de propriedade, no Estado democrático e social de direito, como o da Constituição brasileira de 1988, termina por refletir esse conflito. No artigo 5º, dois incisos estabelecem regras que constituem uma antinomia, se lidos isoladamente: o XXII (XXII – é garantido o direito de propriedade) é a clássica garantia da propriedade privada, do Estado liberal; o XXIII (XXIII – a propriedade atenderá a sua função social) é a dimensão coletiva e intervencionista, própria do Estado social. A antinomia é reproduzida no artigo 170, que trata da atividade econômica. Em um, dominante é o interesse individual; em outro, é o interesse social. Mais que uma solução de compromisso, houve uma acomodação do conflito.

O caminho indicado para a superação do impasse é a utilização do critério hermenêutico do princípio da proporcionalidade, largamente adotado pelos teóricos da interpretação constitucional e pelas cortes constitucionais, nomeadamente o do balanceamento ou da ponderação de direitos e interesses em conflito (11). Veda-se a interpretação isolada de cada regra, ou a hegemonia de uma sobre outra, devendo-se encontrar o sentido harmônico de ambas pois têm igual dignidade constitucional.

A função social é incompatível com a noção de direito absoluto, oponível a todos, em que se admite apenas a limitação externa, negativa. A função social importa limitação interna, positiva, condicionando o exercício e o próprio direito. Lícito é o interesse individual quando realiza, igualmente, o interesse social. O exercício do direito individual da propriedade deve ser feito no sentido da utilidade, não somente para si, mas para todos. Daí ser incompatível com a inércia, com a inutilidade, com a especulação.

Para determinadas situações, a Constituição estabelece o conteúdo da função social, como se lê no artigo 182, § 2º, relativamente à propriedade urbana, e no art. 186, relativamente à propriedade rural. Neles, evidentemente, não se esgota seu alcance. A desapropriação por interesse social arma o Poder Público de poderoso instrumento para alcançá-la, pois não se trata de expropriação tradicional, que transfere o bem particular para o domínio público, mas de transferência de bem particular, que não realizou a função social, para o domínio ou posse de destinatários particulares, que presumivelmente a realizarão. No caso da propriedade urbana, outros mecanismos de intervenção estatal estão previstos: o parcelamento ou a edificação compulsórios e o imposto progressivo no tempo. O conflito entre a concepção individualista da propriedade e a concepção social emerge na reação que se nota nos tribunais à implementação, pelos municípios, do imposto progressivo sobre terrenos urbanos desocupados, apenas utilizados para fins especulativos.

Depreende-se da Constituição que a utilidade e a ocupação efetivas são determinantes, prevalecendo sobre o título de domínio, que transformava o proprietário em senhor soberano, dentro de seus limites, permitido como estava a usar, gozar e dispor de seus domínios como lhe aprouvesse, segundo conhecida formulação da legislação civil tradicional. O direito à habitação entrou na cogitação dos juristas, competindo com o direito de propriedade.

O direito de propriedade deve ser compatível com a preservação do meio-ambiente, que foi elevado a macrolimite constitucional insuperável (artigo 225 da Constituição), no sentido da construção in fieri do desenvolvimento ecologicamente sustentável. O meio-ambiente é bem de uso comum do povo e prevalece sobre qualquer direito individual de propriedade, não podendo ser afastado até mesmo quando se deparar com exigências de desenvolvimento econômico (salvo quando ecologicamente sustentável). É oponível a todos e exigível por todos. A preservação de espaços territoriais protegidos veda qualquer utilização, inclusive para fins de reforma agrária, salvo mediante lei.

A concepção de propriedade, que se desprende da Constituição, é mais ampla que o tradicional domínio sobre coisas corpóreas, principalmente imóveis, que os códigos civis ainda alimentam. Coenvolve a própria atividade econômica, abrangendo o controle empresarial, o domínio sobre ativos mobiliários, a propriedade de marcas, patentes, franquias, biotecnologias e outras propriedades intelectuais. Os direitos autorais de software transformaram seus titulares em megamilionários. As riquezas são transferidas em rápidas transações de bolsas de valores, transitando de país a país, em investimentos voláteis. Todas essas dimensões de propriedade estão sujeitas ao mandamento constitucional da função social.


10. Fontes constitucionais do contrato

A ordem econômica se realiza mediante contratos. A atividade econômica é um complexo de atos contratuais direcionados a fins de produção e distribuição dos bens e serviços que atendem às necessidades humanas e sociais. É na ordem econômica que emerge o Estado social e se cristaliza a ideologia constitucionalmente estabelecida.

Os princípios gerais da atividade econômica, contidos nos artigos 170 e seguintes da Constituição brasileira de 1988, estão a demonstrar que o paradigma de contrato neles contidos e o do Código Civil não são os mesmos. O Código contempla o contrato entre indivíduos autônomos e formalmente iguais, realizando uma função individual. Refiro-me ao contrato estruturado no esquema clássico da oferta e da aceitação, do consentimento livre e da igualdade formal das partes. O contrato assim gerado passa a ser lei entre as partes, na conhecida diccção dos Códigos Civis francês e italiano, ou então sintetizado na fórmula pacta sunt servanda. O contrato encobre-se de inviolabilidade, inclusive em face do Estado ou da coletividade. Vincula-se o contratante ética e juridicamente; vínculo que tanto é mais legítimo quanto fruto de sua liberdade e autonomia. Esta visão idílica da plena realização da justiça comutativa, que não admitia qualquer interferência do Estado-juiz ou legislador, pode ser retratada na expressiva petição de princípio da época: quem diz contratual, diz justo.

A Constituição apenas admite o contrato que realiza a função social, a ela condicionando os interesses individuais, e que considera a desigualdade material das partes. Com efeito, a ordem econômica tem por finalidade "assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" (art. 170). A justiça social importa "reduzir as desigualdades sociais e regionais" (art. 3º e inciso VII do art. 170). São, portanto, incompatíveis com a Constituição as políticas econômicas públicas e privadas denominadas neoliberais, pois pressupõem um Estado mínimo e total liberdade ao mercado, dispensando a regulamentação da ordem econômica, que só faz sentido por perseguir a função social e a tutela jurídica dos mais fracos e por supor a intervenção estatal permanente (legislativa, governamental e judicial).

Uma das mais importantes realizações legislativas dos princípios constitucionais da atividade econômica é o Código do Consumidor, que regulamenta a relação contratual de consumo. Seu âmbito de abrangência é enorme, pois alcança todas as relações havidas entre os destinatários finais dos produtos e serviços lançados no mercado de consumo por todos aqueles que a lei considera fornecedores, vale dizer, dos que desenvolvem atividade organizada e permanente de produção e distribuição desses bens. Assim, o Código do Consumidor subtraiu da regência do Código Civil a quase totalidade dos contratos em que se inserem as pessoas, em seu cotidiano de satisfação de necessidades e desejos econômicos e vitais.

Talvez uma das maiores características do contrato, na atualidade, seja o crescimento do princípio da equivalência material das prestações, que perpassa todos os fundamentos constitucionais a ele aplicáveis. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias pudessem ser previsíveis. O que interessa não é mais a exigência cega de cumprimento do contrato, da forma como foi assinado ou celebrado, mas se sua execução não acarreta vantagem excessiva para uma das partes e desvantagem excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo as regras da experiência ordinária. O princípio é espécie do macroprincípio da justiça contratual, que por sua vez abrange a boa fé objetiva, a revisão contratual, o princípio venire contra factum proprio, o princípio da lesão nos contratos, a cláusula rebus sic stantibus, a invalidade das cláusulas abusivas, a regra interpretatio contra stipulatorem.

Outro interessante campo de transformação da função dos contratos é o dos contratos, negociações ou convenções coletivas, já amplamente utilizadas no meio trabalhista. À medida que a sociedade civil se organiza, o contrato coletivo se apresenta como um poderoso instrumento de solução e regulação normativa dos conflitos transindividuais. O Código do Consumidor, por exemplo, prevê a convenção coletiva para regular os interesses dos consumidores e fornecedores, através de entidades representativas.

Na perspectiva do pluralismo jurídico, acordos são firmados estabelecendo regras de convivência comunitária, desfrutando de uma legitimidade que desafia a da ordem estatal.

Na economia oligopolizada existente em nossas sociedades atuais, o contrato, em seu modelo tradicional, converte-se em instrumento de exercício de poder, que rivaliza com o monopólio legislativo do Estado. As condições gerais dos contratos, verdadeiros códigos normativos privados, são predispostos pela empresa a todos os adquirentes e utentes de bens e serviços, constituindo em muitos países o modo quase exclusivo das relações negociais. A legislação contratual clássica é incapaz de enfrentar adequadamente estes problemas, o que tem levado todos os países organizados, inclusive os mais ricos, a editarem legislações rígidas voltadas à proteção do contratante mais fraco, apesar da retórica neoliberal.


11. À guisa de conclusão

A constitucionalização do direito civil, entendida como inserção constitucional dos fundamentos de validade jurídica das relações civis, é mais do que um critério hermenêutico formal. Constitui a etapa mais importante do processo de transformação, ou de mudanças de paradigmas, por que passou o direito civil, no trânsito do Estado liberal para o Estado social.

O conteúdo conceptual, a natureza, as finalidades dos institutos básicos do direito civil, nomeadamente a família, a propriedade e o contrato, não são mais os mesmos que vieram do individualismo jurídico e da ideologia liberal oitocentista, cujos traços marcantes persistem na legislação civil. As funções do Código esmaeceram-se, tornando-o obstáculo à compreensão do direito civil atual e de seu real destinatário; sai de cena o indivíduo proprietário para revelar, em todas suas vicissitudes, a pessoa humana. Despontam a afetividade, como valor essencial da família; a função social, como conteúdo e não penas como limite, da propriedade, nas dimensões variadas; o princípio da equivalência material e a tutela do contratante mais fraco, no contrato.

Assim, os valores decorrentes da mudança da realidade social, convertidos em princípios e regras constitucionais, devem direcionar a realização do direito civil, em seus variados planos.

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Quando a legislação civil for claramente incompatível com os princípios e regras constitucionais, deve ser considerada revogada, se anterior à Constituição, ou inconstitucional, se posterior à ela. Quando for possível o aproveitamento, observar-se-á a interpretação conforme a Constituição. Em nenhuma hipótese, deverá ser adotada a disfarçada resistência conservadora, na conduta freqüente de se ler a Constituição a partir do Código Civil.

A perspectiva da Constituição, crisol das transformações sociais, tem contribuído para a renovação dos estudos do direito civil, que se nota, de modo alvissareiro, nos trabalhos produzidos pelos civilistas da atualidade, no sentido de reconduzi-lo ao destino histórico de direito de todas as pessoas humanas.


Notas

  1. Cf. Ricardo Luis Lorenzetti, Fundamentos do Direito Privado, trad. Vera Maria Jacob de Fradera, São Paulo, Ed. Ver. dos Tribunais, 1998, p. 253.

  2. Para os antigos, livre é quem pode exercer a ação política, quem pode participar do autogoverno da cidade; os demais são escravos. Neste sentido, a liberdade é positiva, enquanto a dos modernos é negativa. É conhecido o elogio da liberdade dos modernos, no famoso discurso de Benjamin Constant, alguns anos após a Revolução Francesa (De la liberté des anciens comparé a celle des modernes, Paris, 1819), entendida como a desempedida fruição dos bens privados. Na antiga Roma os escravos exerciam a atividade econômica (eram "livres" para exercê-la); alguns eriqueceram, mas a cidadania era-lhes vedada. Entre os modernos, ocorreu a inversão: livre é o que detém a livre iniciativa econômica, pouco importando que seja submetido a uma autocracia política: o exemplo frisante foram as ditaduras militares que exasperaram o liberalismo econômico.

  3. Cf. Paulo Luiz Netto Lôbo, O Contrato – Exigências e Concepões Atuais, São Paulo, Saraiva, 1986, p.11. Hannah Arendt (Entre o Passado e o Futuro, São Paulo, 1979, p. 188-220) sublinhou que o liberalismo, não obstante o nome, colaborou para a a eliminação da noção de liberdade no âmbito político.

  4. A Descodificação do Direito Civil Brasileiro, Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Brasília, 8(4) 545-657, out./dez. 1996, passim.

  5. Neste sentido, Francesco Galgano, Il Diritto Privato fra Codice e Costituzione, Bologna, Zanichelli, 1988, p. 20.

  6. Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito (São Paulo, Martins Fontes, 1987, nota 25, p. 183) demonstra como é muito significativa, nesse aspecto, a filosofia jurídica de Hegel, para quem a esfera exterior da liberdade é a propriedade: "(...) aquilo que nós chamamos pessoa, quer dizer, o sujeito que é livre, livre para si e se dá nas coisas uma existência"; "Só na propriedade a pessoa é como razão".

  7. A Teoria Geral da Relação Jurídica, Coimbra, Ed. Centelha, 1981, p. 90-2.

  8. Desde a Adin nº 2, rel. Min. Paulo Brossard, de 06.02.92, predominou a tese de não haver inconstitucionalidade formal superveniente. Enquanto à inconstitucionalidade material, firmou-se a orientação de que a antinomia da norma antiga com a Constituição superveniente resolve-se na mera revogação da primeira, a cuja declaração não se presta a ação direta, embora caiba recurso extraordinário e não recurso especial (neste último sentido, v. R. Esp. nº 68.410 do STJ).

  9. Especialmente Nestor Duarte, A Ordem Privada e a Organização Política Nacional, Brasília, Ministério da Justiça, 1966/1997; Gilberto Freire, Casa Grande e Senzala, Rio de Janeiro, Record, 1994; Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro, São Paulo, Cia. das Letras, 1995.

  10. In O Direito de Família e a Constituição de 1988, Carlos Alberto Bittar (org.), São Paulo, Ed. Saraiva, 1989.

  11. Cf. J. J. Gomes Canotilho, Proteção do Ambiente e Direito de Propriedade, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 83.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela USP. Professor Emérito da UFAL. Foi Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Membro fundador do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Constitucionalização do Direito Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. -1462, 1 jul. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/507. Acesso em: 24 abr. 2024.

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