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União homoafetiva e regime de bens

01/11/2002 às 00:00
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Sumário:1.Introdução; 2. Ausência de Legislação Específica no Brasil; 3. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e da Sociedade de Fato; 4. Instrução Normativa 25/2000 (INSS); 5. Projeto de Lei; 6. Conclusão; 7. Bibliografia


1. Introdução

Tornou-se comum no Brasil a figura da sociedade de fato caracterizada pela convivência entre pessoas com o ânimo de formar família. A evolução conceitual (e legislativa) sobre o tema foi bastante lenta. Nunca foi crime o "concubinato", mas a nossa legislação costumava desprezá-lo. O ordenamento jurídico pátrio não reconhecia (hipocritamente) a família havida fora do casamento

A Constituição Federal de 1988 veio a sepultar de uma vez essa celeuma, reconhecendo como entidade familiar, passível de proteção estatal a união estável entre homem e mulher. (art. 226 art. § 3.º) A matéria foi regulamentada pela Lei n.º 8971, de 29 de dezembro de 1994 e pela Lei n.º 9278, de 10 de maio de 1996.

Sob esse mesmo prisma, é fundamental também, entender que a diversidade de sexos não é "conditio sine qua non" para a percepção conceitual da família. O principal fator de formação familiar é a afetividade. E a própria interpretação histórica nos prova isso. Vale lembrar-nos do clássico helênico Édipo Rei, onde o protagonista, Édipo, mata seu próprio pai, Laio, desconhecendo a relação de parentesco; e, em seguida, casa-se com Jocasta (sua mãe), ignorando também esses laços. Mais ainda; notório era na Roma Antiga a filiação afetiva evidenciada na escolha do sucessor do imperador pelo próprio CÆSAR através de uma adoção ficta. Observa-se, no primeiro exemplo, que a paternidade biológica não define necessariamente a relação familiar. Por outro lado, no segundo exemplo, o afeto e a confiança, determinavam porém, o direito e poder sucessórios. A desembargadora do TJ-RS, Maria Berenice Dias sustenta opinião conceitual semelhante afirmando que:

"A família não se define exclusivamente em razão do vínculo entre um homem e uma mulher ou da convivência dos ascendentes com seus descendentes. Também pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes, ligadas por laços afetivos, sem conotação sexual, merecem ser reconhecidas como entidades familiares. Assim, a prole ou a capacidade procriativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção legal, descabendo deixar fora do conceito de família as relações homoafetivas. Presentes os requisitos de vida em comum, coabitação, mútua assistência, é de se concederem os mesmos direitos e se imporem iguais obrigações a todos os vínculos de afeto que tenham idênticas características." (Dias; 2001. p. 102)

Assim, torna-se louvável o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ao entender a competência da Vara de Família para julgar ações que envolvem união entre pessoas do mesmo sexo. Nesse sentido, torna-se bastante ilustrativo a decisão da Oitava Câmara Cível transcrita abaixo:

"Ementa: Relações homossexuais. Competência para julgamento de separação de sociedade de fato dos casais formados por pessoas do mesmo sexo. Em se tratando de situações que envolvem relações de afeto, mostra-se competente para o julgamento da causa uma das Varas de Família (grifos nossos), a semelhança das separações ocorridas entre casais heterossexuais. Agravo provido. (Agravo de Instrumento nº 599075496, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Breno Moreira Mussi, julgado em 17/06/99)"

Ora, a partir da interpretação da jurisprudência acima transcrita, parece-nos claro que o principal elemento de constituição da família não são laços de parentescos de natureza biológica ou civil, mas sim a afetividade. Mais do que isso. Uma vez que foi reconhecida a competência da Vara de Família para julgar a separação da sociedade de fato formada por pessoas do mesmo sexo, parece-nos cristalino o reconhecimento dessa referida sociedade como um ente familiar. Entretanto, parece que continuam a ser ignorados pelo legislador brasileiro o relacionamento e a convivência entre pessoas do mesmo sexo. É notória a discriminação velada feita à pessoa homossexual (homem ou mulher) através de muitos setores do meio social. Influenciada de valores das tradições judaico-cristãs, a sociedade passou a repudiar a atração por pessoas do mesmo sexo. A própria Bíblia entende como pecaminoso e impuro a atração física por pessoas do mesmo sexo.

"Com homem não te deitarás como se fosse mulher: é abominação." (Levítico 18:22)

" Pelo que Deus os abandonou às paixões infames. Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural, no contrário à natureza.

E, semelhantemente, também os varões, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, varão com varão, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a recompensa eu convinha ao seu erro." (Romanos 1:26-27)

O saudoso mestre Orlando Gomes, em seu magistério, ressalta a forte influência das religiões cristãs na composição legislativa de proteção à instituição familiar e, por conseqüência, na instituição do Direito de Família:

"Afinal, é todo o direito de família, que revela, em suas principais regras, a influência do cristianismo, seja a do direito canônico, seja a do direito protestante, seja ainda, para a área mais limitada, a do direito canônico da Igreja ortodoxa" (Gomes, 2000. p.41)

O homossexualismo até mesmo a ser considerado doença (Código Internacional de Doenças – CID, art. 302), somente o deixando de ser no ano de 1985. Com efeito, Maria Berenice Dias, de maneira muito feliz salienta que: "Na última revisão, de 1995, o sufixo "ismo", que significa doença, foi substituído pelo sufixo "dade", que significa modo de ser." (Dias, 2002)

O fato é que a Carta Política de 1988 reafirmou como laico o Estado brasileiro, separado da Igreja Católica desde a Proclamação da República em 1891. Mas a lacuna legislativa permanece, contrariando o preceito constitucional da dignidade da pessoa humana, consagrado no art. 1.º, IIIe tem colocado muitas pessoas, que mantêm com outrem do mesmo sexo uma relação, não só de afetividade, mas também de vida comum, numa situação de total desamparo, configurando assim, uma veemente injustiça.


2. Ausência de Legislação Específica no Brasil

A falta de dispositivo legal sobre a matéria tem tornado cada vez mais importante a atuação do operador do direito a fim de solucionar, com eqüidade, tais questionamentos. Dessa forma, é vital o entendimento do "fenômeno social jurídico" em epígrafe. A fria exegese legal não deve ser confundida pelo jurista como aplicação do Direito. Este deve ser, primeiramente, entendido como fato social; produto da atuação dos atores sociais em seu meio. Assim, é imprescindível a inteligência de Pontes de Miranda sobre o tema:

"Diante das convicções da ciência, que tanto nos mostram e comprovam explicação extrínseca dos fatos (isto é, dos fatos sociais por fatos sociais, objetivamente), o que se não pode pretender é reduzir o direito a simples produto do Estado. O direito é produto dos círculos sociais, é fórmula da coexistência dentro deles. Qualquer círculo, e não só os políticos, no sentido estrito, tem o direito que lhe corresponde." (Miranda, 1955 p.170)

Nesse contexto, faz-se mister a releitura do entendimento do art. 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil, a qual transcrevemos in verbis:

"Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito."

Ora, claro nos parece que, dentro do corte epistemológico na sociedade brasileira contemporânea, o fenômeno da união estável homossexual está claramente evidenciado e aceito. Cabe então, aos magistrados, advogados e doutrinadores, o entendimento desse fenômeno como parte do meio social para a utilização dos princípios e métodos adequados à defesa dos interesses dessas pessoas.


3. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e Sociedade de Fato

Independentemente de reconhecer ou não a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, faz-se necessário a discussão sobre possíveis soluções jurídicas a serem propostas para fins patrimoniais. Embora, o Estado não reconheça legalmente a união homoafetiva, é notório que, diversas vezes, esse tipo de relacionamento acaba por gerar um patrimônio comum construídos pelos companheiros.

A Constituição Federal, consagra, em seu artigo 1.º, inciso III, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Esse princípio de direito natural, positivado em nosso ordenamento jurídico, ressalta a necessidade do respeito ao ser humano, independente da sua posição social ou dos atributos que possam a ele ser imputados pela sociedade. Sempre é válido citar o comentário do prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho sobre o tema:

"Dignidade da pessoa humana.

Está aqui o reconhecimento de que, para o direito constitucional brasileiro, a pessoa humana tem uma dignidade própria e constitui um valor em si mesmo, que não pode ser sacrificado a qualquer interesse coletivo." (Ferreira Filho, 2000. p. 19)

O professor Alexandre de Moraes dispõe de maneira semelhante:

"O princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da pessoa humana apresenta-se em dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever de tratamento igualitário dos próprios semelhantes (grifos nossos)".

Este dever configura-se pela exigência de o indivíduo respeitar a dignidade de seu semelhante tal qual a Constituição federal exige que lhe respeitem a própria. A concepção dessa noção de dever fundamental resume-se a três princípios do Direito Romano: honestere vivere (viver honestamente), alterum non laedere (não prejudicar ninguém) e suum cuique tribuere (dê a cada um o que lhe é devido) (grifos nossos)". (Moraes, 2002. p. 129)

Ora, se o ser humano constitui por si próprio um valor, que deve ser respeitado e preservado, é fundamental que o qualquer tipo de relacionamento de seres humanos, desde que lícito, deve ser reconhecido pelo ente estatal, uma vez que os valores humanos fazem parte de seu próprio substrato emocional e intelectual. Essencial relembrar o grande Ortega Y Gasset em sua máxima: "Eu sou eu e minhas circunstâncias; se não as salvo, não me salvo."

Como corolário desse princípio, a nossa Carta Magna também outorga, em seu art. 5.º, inciso I, a isonomia legal entre homens e mulheres. Isso significa que a lei não pode instituir tratamento desigual entre pessoas que se encontrem em mesma situação fática e/ou jurídica. Partindo desse entendimento, indispensável reconhecer a coragem e a lucidez da oitava câmara cível do egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ao reconhecer a união homossexual a partir da inteligência do dispositivo constitucional.

"EMENTA: Homossexuais. União Estável. Possibilidade jurídica do pedido. É possível o processamento e o reconhecimento de união estável entre homossexuais, ante princípios fundamentais insculpidos na Constituição Federal que vedam qualquer discriminação, inclusive quanto ao sexo, sendo descabida discriminação quanto à união homossexual.(grifos nossos) E é justamente agora, quando uma onda renovadora se estende pelo mundo, com reflexos acentuados em nosso país, destruindo preceitos arcaicos, modificando conceitos e impondo a serenidade científica da modernidade no trato das relações humanas, que as posições devem ser marcadas e amadurecidas, para que os avanços não sofram retrocesso e para que as individualidades e coletividades, possam andar seguras na tão almejada busca da felicidade, direito fundamental de todos. (grifos nossos) Sentença desconstituída para que seja instruído o feito. Apelação provida.. (9 FL S) (Apelação Cível Nº 598362655, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des José Ataídes Siqueira Trindade., Julgado em 01/03/00)"

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Apesar desse tipo de decisão ser exceção na jurisprudência do país, muitos magistrados têm interpretado a união homoafetiva como uma sociedade de fato, uma vez que há um esforço dos companheiros destinados a um fim comum. Dessa forma, têm-se multiplicado as sentenças fundamentadas na Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal, transcrita a seguir:

"Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum."

Nesse sentido, os tribunais têm entendido válida a partilha de bens após a dissolução da união homossexual. Nesse sentido já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, em acórdão que transcrevemos abaixo:

"Ementa: Apelação Cível. Ação de Reconhecimento de Dissolução de Sociedade de Fato cumulada com partilha. Demanda julgada procedente. Recurso improvido".

Aplicando-se analogicamente a Lei 9278/96 (grifos nossos), a recorrente e sua companheira têm direito assegurado de partilhar os bens adquiridos durante a convivência, ainda que dissolvida a união estável. O Judiciário não deve distanciar-se de questões pulsantes, revestidas de preconceitos só porque desprovidas de norma legal.(grifos nossos). A relação homossexual deve ter a mesma atenção dispensada às outras ações. Comprovado o esforço comum para a ampliação ao patrimônio das conviventes, os bens devem ser partilhados. Recurso Improvido" (Tribunal de Justiça da Bahia. Apelação Cível n.º 16313-9/99. Terceira Câmara Cível. Relator: Des. Mário Albiani. Julgado em 04/04/2001).

Acreditamos muito lúcida essa decisão através da utilização da analogia da Lei 9278/96 e da Súmula 380 do STF. De fato, é indiscutível a existência da sociedade de fato. Entretanto, a maioria dos tribunais ainda não reconhece à união estável homoafetiva no tocante à concessão de alimentos, sendo omissa no reconhecimento de outros aspectos de caráter não-patrimonial. Muitas prestações que são fornecidas pelo(s) companheiro(s) não são passíveis de apreciação pecuniária. São prestações de caráter doméstico, afetivo ou emocional que não se incorporam ao patrimônio, mas são INDISPENSÁVEIS à convivência harmoniosa e pacífica de pessoas que possuem vida comum e à própria constituição do patrimônio.

Tendo como base esse entendimento, criticamos o acórdão proferido pela Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que negou a prestação de alimentos a uma mulher por sua ex-companheira com base, unicamente, pela natureza homossexual do relacionamento.

"Ementa: Agravo de Instrumento. O relacionamento homossexual não está amparado pela Lei 8971 de 21 de dezembro de 1994, e Lei 9278, de 10 de maio de 1996, o que impede a concessão de alimentos para uma das partes, pois o envolvimento amoroso de duas mulheres não se constitui em união estável, e semelhante convivência traduz uma sociedade de fato. Voto vencido. (21 fls) (Agravo de Instrumento nº 70000535542, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Antônio Carlos Stangler Pereira, Julgado em 13/04/00)".

Data maxima venia, discordamos em absoluto com esse entendimento. Ora, se o mesmo Tribunal reconheceu competência das Varas de Família o julgamento de questões relativas às uniões homoafetivas, (entendendo, por conseguinte, essa instituição como familiar) e mais; se o Tribunal entendeu válida a aplicação analógica da Lei 9278/96 (que regula o regime de bens da união estável heterossexual), torna-se incoerente a não-aplicação analógica do dispositivo referido para a concessão de alimentos a ex-companheiros do mesmo sexo.


4. A Instrução Normativa 25/2000 (INSS)

O Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) já admite a possibilidade de concessão de benefício às pessoas que convivem em relação homoafetiva. A Instrução Normativa n.º 25, de 07 de Junho de 2000 veio a disciplinar a matéria, fundamentada na Ação Civil Pública n.º 2000.71.00.009347-0.

O art. 2.º do referido dispositivo legal assegura a equiparação entre as uniões homossexuais e heterossexuais, regulando ambas pelo mesmo dispositivo normativo (Instrução Normativa n.º 20/2000).

"As pensões requeridas por companheiro ou companheira homossexual, reger-se-ão pelas rotinas disciplinadas no Capítulo XII da IN INSS/DC n° 20, de 18.05.2000, relativas à pensão por morte."

Parece-nos claro o reconhecimento da união estável homossexual pelo Estado brasileiro, através do referido instrumento normativo. Nota-se a preocupação estatal em assegurar o amparo necessário à subsistência dos conviventes, independentemente da natureza da relação afetiva entre eles. Tendo a pensão por morte natureza alimentar e, sendo já claramente admitida pela Previdência Social, parece-nos evidente a necessidade dos Tribunais reconsiderarem as suas decisões no tocante a concessão de alimentos a ex-companheiros do mesmo sexo.


5. Projeto de Lei

Já existem iniciativas de positivar em nosso ordenamento jurídico, a união civil entre pessoas do mesmo sexo. O Projeto de Lei 1151/95, de iniciativa da então deputada federal Marta Suplicy é um deles. O seu texto traz dispositivos que regulamentam a matéria patrimonial garantindo inclusive, o direito de proposição de ação de cobrança de alimentos por parte por algum dos ex-conviventes. O projeto sofreu algumas alterações e substitutivo está em fase de votação no Congresso Nacional. Nele, está assegurado, em seu art. 1.º, o registro civil da parceria de pessoas do mesmo sexo, bem como a lavratura desse registro no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais.

"Art. 1º. É assegurado a duas pessoas do mesmo sexo o reconhecimento de sua parceria civil registrada, visando à proteção dos direitos à propriedade, à sucessão e aos demais regulados nesta Lei.

Art. 2º. A parceria civil registrada constitui-se mediante escritura pública e respectivo registro em livro próprio, nos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais na forma que segue.

(...)

§ 2º. Após a lavratura do contrato a parceria civil deve ser registrada em livro próprio no Registro Civil de Pessoas Naturais.

§ 3º. O estado civil dos contratantes não poderá ser alterado na vigência do contrato de parceria civil registrada."

Entendemos ser inconstitucional esse projeto de lei. Não pelo registro da parceria civil da parceria entre pessoas do mesmo sexo, mas pela alteração do seu estado civil. Compreendemos que esse tipo de registro nada mais é que a desnaturação do instituto do casamento, uma vez que a lei não apenas reconhece a união estável entre pessoas do mesmo sexo, como também garante a elas o direito de realizar um tipo de união civil sem previsão constitucional. Ademais, fica a dúvida de tamanha incoerência: qual seria o estado civil daqueles que realizassem esse tipo de registro? Segismundo Gontijo também tece críticas a respeito, afirmando que esse tipo de registro de parceria ofereceria espaço para simulações de natureza patrimonial.

"Critico é a iliquidez da estranha figura da parceria civil registrada, erigida naquele Projeto sem ter como condição qualquer tipo de convivência homossexual, muito menos uma união com um prazo mínimo de duração, nem soma de esforços dos parceiros, impedimentos por parentesco, ou deveres específicos. Mesmo conferindo uma série de direitos aos que denomina parceiros, em nenhum ponto dá a entender se aplicar a casais homossexuais contratantes da própria convivência. Por isso, quaisquer duplas, masculinas ou femininas, se encaixarão no texto para gozar, pela fraude, os importantes direitos que prodigaliza. Usarão dessa parceria para satisfazer interesses subalternos e não como retribuição natural e legal da própria dedicação, ou como reciprocidade compensadora de longo e continuado suprimento de carências afetivas e sexuais numa convivência solidária, como se acreditava ser o escopo da matéria em discussão. Bastará aos simuladores - que jamais foram gays ou pretenderam conviver - se autodenominem parceiros civis e assim se registrem, aproveitando da redação simplista: "é assegurado a duas pessoas do mesmo sexo, o reconhecimento de sua parceria civil registrada, visando à proteção dos direitos à propriedade, à sucessão e aos demais regulados nesta Lei". Seus requisitos se limitam a serem os parceiros maiores de 21 anos, solteiros, viúvos ou divorciados, constituir-se a parceria por escritura pública em Cartório de Notas, levada ao Registro Civil - e, se com disposições patrimoniais, ao Registro de Imóveis para valer contra terceiros." (Gontijo. COAD Informativo. Boletim Semanal n.º 19, maio 1997, p. 242)

Ives Gandra Martins também não poupou críticas ao referido projeto. Em sua opinião, o projeto de lei é inconstitucional, uma vez que fere o § 3.º da Constituição Federal, uma vez que equipara, segundo o autor, a união homossexual a entidade familiar. Sobre isso, duramente afirma:

"À luz do referido dispositivo, parece-me de manifesta a inconstitucionalidade o projeto de lei da (então) Deputada Marta Suplicy, pretendendo dar ares de entidade familiar à união de pederastas e de lésbicas, visto que tal tipo de entidade não é reconhecido pela Constituição, não representa a formação de uma entidade familiar e agride, inclusive, o conceito de família hospedado na Lei Suprema.

Aqueles que entendem que a união pretendida pela parlamentar é apenas para garantia patrimonial das pessoas que têm atração sexual contrárias às leis da natureza, com manifesta distorção do uso de seu aparelho genital, desconhecem que tal garantia patrimonial lésbicas e pederastas se podem auto-outorgar, através de contratos inominados de caráter civil, com o que, para tais fins, o direito já lhes oferta uma segurança adequada.

O projeto, todavia, não pretende apenas a segurança patrimonial entre os que não têm atração pelo sexo oposto, mas lhes dar ares de entidade familiar, e, nesse aspecto, a inconstitucionalidade é manifesta, vale dizer, fere o disposto no § 3.º do art. 226." (Martins, 2000 págs 1021/1022)

Entendemos infeliz a crítica desse grande jurista em dois aspectos. Um deles é que não existem provas de que a homossexualidade seja algum tipo de disfunção de natureza psíquica ou biológica. A Organização Mundial de Saúde (OMS) inclusive não entende mais a homossexualismo como doença. O outro é que, apesar no projeto de lei ser notoriamente mal feito, em nenhum momento, menciona expressamente como família a parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo. Assim sendo, torna-se leviana tal afirmação.

Há também um esboço de projeto de lei sobre o mesmo tema. O texto redigido em abril de 2002, pelos juristas e professores Fernando Malheiros Filho (RS); Paulo Lins e Silva (RJ); Roberto Rodrigues Alves (DF); Segismundo Gontijo (MG) e Sérgio Marques da Cruz Filho (SP), a pedido da Deputada Laura Carneiro, Presidente da Comissão de Família e Seguridade Social, da Câmara Federal, como substitutivo de outros projetos sobre a matéria, em tramitação na Casa. O texto apresenta uma propriedade técnica muitíssimo superior ao primeiro e, não atribui caráter familiar a uniões homossexuais, mas apenas de união civil, atribuindo competência às Varas Cíveis para o julgamento de matérias relativas a estas. Dispõe também sobre a união estável heterossexual, seu regime de bens e sua conversão e casamento, revogando, expressamente, as leis referentes à união estável. Equipara a união homoafetiva à união estável em todos os direitos e obrigações inclusive no que se refere a cobrança judicial de alimentos (art. 8.º). Transcrevemos a seguir trechos do esboço do projeto de lei, para uma análise mais depurada.

CAPÍTULO III:DO REGIME DE BENS

SEÇÃO I : DO REGIME LEGAL

Art. 4º.

Salvo estipulação diversa, os bens móveis e imóveis adquiridos onerosamente por qualquer dos conviventes, na constância da união familiar estável, regem-se pelas disposições sobre o regime da comunhão parcial de bens estabelecidas na legislação civil, abrangendo direitos, deveres e responsabilidades.

Parágrafo único. Observados idênticos impedimentos desta liberalidade entre cônjuges, as doações feitas por um dos conviventes ao outro serão computadas como adiantamentos da respectiva meação, caso não haja convenção em contrário.

(...)

CAPÍTULO VI: DOS ALIMENTOS

Art. 8º. Conforme previsão legal que rege o instituto, o convivente pode pedir ao outro os alimentos de que necessite, deferindo-os o juiz provisionalmente depois de audiência prévia de justificação.

(...)

SUBTÍTULO II: DA UNIÃO CIVIL HOMOAFETIVA

CAPÍTULO VIII: DO CONCEITO

Art. 10. Duas pessoas do mesmo sexo poderão constituir união civil nos mesmos termos, condições, direitos e obrigações desta lei, excetuado o que se refere a filhos comuns e à conversão em casamento.

Parágrafo único.

Aplica-se, no que couber, aos companheiros homossexuais a disposição desta lei relativa ao supérstite de união familiar estável na sucessão hereditária.

CAPÍTULO IX: DAS DISPOSIÇÕES GERAIS E TRANSITÓRIAS

Art. 11. Os direitos sucessórios dos conviventes reger-se-ão na conformidade do disposto na legislação civil para a sucessão entre cônjuges.

Art. 12. Assegurado o segredo de justiça em todos os casos a matéria relativa à união familiar estável é de competência do juízo da Vara de Família e é do juízo da Vara Cível a da união civil homoafetiva..

(...)

Art. 15. Ficam revogadas as Leis nºs 8.971, de 29 de dezembro de 1994 e 9.278 de 10 de maio de 1996 e as disposições em contrário às desta lei. (texto disponível em http://www.gontijo-familia.adv.br)

Aplaudimos os redatores do texto do referido projeto de lei pela lucidez e ousadia do texto. Notória é a convivência fática entre pessoas do mesmo sexo ou de sexo oposto. E o texto em epígrafe, habilmente, estabeleceu a isonomia entre os dois tipos de uniões de fato no tocante ao regime de bens e obrigações entre os conviventes. Manteve a discriminação entretanto, ao não conferir à união homoafetiva caráter familiar, mas apenas civil, respeitando assim o § 3.º do art. 226 da Constituição Federal.


6. Conclusão

A partir da análise dos argumentos no presente trabalho, é possível concluir que a existe a necessidade de se reavaliar determinados conceitos em Direito de Família. Mais ainda; é preciso destituir-nos do moralismo que circunda o meio jurídico e encarar o fato da existência da união entre pessoas do mesmo sexo e da necessidade desse tipo de união receber amparo legislativo, e não ficar entregue apenas ao entendimento judicial.

É preciso que o operador do Direito esteja cada vez mais atento às transformações que ocorrem em nossa sociedade, a fim de que venha ele, efetivamente, ser um instrumento de transformação social e não apenas um técnico em legislação. É este o único modo de reduzirmos os abismos que separam o cidadão do Estado a fim de alcançarmos uma sociedade mais igualitária e justa para todos.


7. Bibliografia

DIAS, Maria Berenice. INSS inaugura no direito positivo a união estável homossexual. Boletim do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFam, nº 4. Ano 1. Julho/Agosto 2000.

DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. Disponível na Internet, em http://www.gontijo-familia.adv.br

DIAS, Maria Berenice. União Homossexual. O Preconceito & A Justiça. Livraria do Advogado Editora; 2.ª Edição. Porto Alegre. 2001.

FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Ed. Saraiva. 3.ª Edição. São Paulo. 2000.

GOMES, Orlando. Direito de Família. Ed. Forense. 12ª Edição. Rio de Janeiro, 2000.

GONTIJO, Segismundo. A Parceria dita Gay. COAD Informativo. Boletim Semanal n.º 19, maio 1997, p. 242. Disponível na Internet, em http://www.gontijo-familia.adv.br

MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil Volume 8. 2.ª Edição. Saraiva. 2000

MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Volume 7. Editor Borsoi. Rio de Janeiro. 1955.

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. Ed. Atlas S.A. São Paulo. 2002. ]

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Sobre o autor
Tiago Batista Freitas

acadêmico de direito da Universidade Federal da Bahia, em Salvador (BA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Tiago Batista. União homoafetiva e regime de bens. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3441. Acesso em: 19 abr. 2024.

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