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Voto secreto

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01/10/2001 às 00:00
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A OPINIÃO DE PONTES DE MIRANDA

Para Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967, Tomo II, pp. 577 e seguintes):

"... O sigilo nas votações, se por um lado atende à liberdade de não emitir o pensamento, a despeito da ‘emissão para efeito de contagem’, por outro lado evita que temperamentos menos corajosos se abstenham de votar, ou temperamentos exibicionistas tomem atitudes escandalosas ou insinceras. No regime pluripartidário, em Constituição que mandou atender-se à representação dos partidos nas comissões e adotou outras medidas de responsabilização, seria difícil explicar-se o receio da votação aberta. O eleitor é que deve votar secretamente (há razões de técnica para isso); não, o eleito.

As votações secretas, sob a Constituição de 1946, eram nulas: e o controle judicial era permitido, para decretação da inconstitucionalidade. Procurou-se interpretar o art. 43 da Constituição de 1946 como se ele apenas exigisse que, nos casos apontados, o voto fosse secreto, deixando-se à elaboração de regras jurídicas regimentais o estabelecerem outras espécies em que podia ser secreta a deliberação de qualquer das câmaras. Segundo tal opinião, portanto, os regimentos poderiam ser acordes em fazer secretas as suas respectivas votações, ou um as fazer e outro não, ou em deixarem, ou um só deixar, que se pudesse pedir, em cada caso, que a votação fosse secreta. Tal interpretação desatendia à tradição brasileira, que é a da publicidade das votações em qualquer das câmaras. Outrossim, se não existisse, no sistema jurídico constitucional brasileiro, regra jurídica, implícita, que diz: "As votações de qualquer das câmaras serão públicas", poderiam os regimentos ou um deles estatuir que todas as votações fossem secretas. Ora, o absurdo ressaltava. É certo que os regimentos poderiam ser observados, a despeito da inconstitucionalidade, e teríamos as votações das leis sem a incidência do princípio da publicidade das votações, mas seria de esperar-se que a apreciação judiciária repeliria tal prática e tal regra jurídica regimental.

O voto secreto sob a Constituição de 1946 era excepcional. Nenhum dos corpos legislativos podia deliberar que a votação fosse secreta: podia, no entanto, fazer secreta a apresentação e discussão dos projetos, em resolução ‘in casu’".

A SITUAÇÃO ATUAL

Hoje as coisas mudaram drasticamente, porque muitos de nossos legisladores pretendem seguir o conselho do senador José Roberto Arruda, envolvido na violação do painel eletrônico do Senado Federal. Diversas assembléias estaduais e câmaras municipais já estão providenciando a extinção do voto secreto, através de normas a meu ver inconstitucionais, porque vulneram o princípio da unidade ou homogeneidade do direito federal. A Constituição Federal é o Estatuto da Federação, e existe um conjunto de princípios mínimos que devem ser observados pelas unidades federadas, e que limitam a sua autonomia. Dentre esses princípios, estão os pertinentes ao processo de elaboração legislativa estabelecido na Constituição Federal, que são obrigatórios para os Estados e para os Municípios.


UM EXEMPLO DO AUTORITARISMO DO GOVERNO MILITAR

A Constituição de 1.967, com a redação da Emenda Constitucional no1, de 17.10.69, que foi outorgada pelo Governo Militar, estabelecia expressamente que:

"Art. 13- Os Estados organizar-se-ão e reger-se-ão pelas Constituições e leis que adotarem, respeitados, dentre outros princípios estabelecidos nesta Constituição, os seguintes:

III- o processo legislativo...."

O processo legislativo, ao qual essa norma se referia, estava representado pelos arts. 46 a 59, pertencentes à Seção V (Do Processo Legislativo) do Capítulo VI (Do Poder Legislativo). Para ilustrar a importância do voto secreto, vou citar apenas uma norma, constante do § 3o do art. 59 dessa Constituição:

"§ 3o - Comunicado o veto ao Presidente do Senado Federal, este convocará as duas Câmaras para, em sessão conjunta, dele conhecerem, considerando-se aprovado o projeto que, dentro de quarenta e cinco dias, em votação pública (grifei), obtiver o voto de dois terços dos membros de cada uma das Casas. Nesse caso, será o projeto enviado, para promulgação, ao Presidente da República."

Evidentemente, essa norma, outorgada pela Revolução, impondo a votação pública nas deliberações do Congresso Nacional a respeito do veto presidencial, se destinava a impedir que o Poder Legislativo exercesse a sua competência de rejeitar o veto presidencial, que seria normal em um regime democrático, caracterizado pela independência e harmonia dos poderes, e pelo sistema de freios e contrapesos. Sendo a votação pública, nenhum congressista se atreveria a rejeitar um veto do General-Presidente.

Hoje, quando não temos um General-Presidente, mas temos um Presidente que legisla muito mais do que o próprio Congresso Nacional, através de uma enxurrada de medidas provisórias, freqüentemente inconstitucionais, causando um verdadeiro desequilíbrio entre os Poderes Constituídos, o mais absurdo é que são os próprios legisladores que pretendem abdicar do pouco, ou do resto, de independência que talvez ainda possuam, extinguindo o voto secreto, conforme preconizado pelo senador Arruda.


A GARANTIA DO VOTO SECRETO

É claro, portanto, que em certos casos, embora contrariando a opinião de Michel Temer, o voto secreto é uma garantia de independência do órgão legislativo, como nessa hipótese que acabei de citar, referente às deliberações do Congresso Nacional sobre o veto do Presidente da República, matéria hoje disciplinada no § 4o do art. 66, verbis:

"§ 4o - O veto será apreciado em sessão conjunta, dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo ser rejeitado pelo voto da maioria absoluta dos deputados e senadores, em escrutínio secreto." (grifamos)

Se a Constituição de 1988 impõe o voto secreto, para as deliberações do Congresso Nacional a respeito do veto presidencial, ao contrário do que ocorria sob a vigência das normas autoritárias do regime de 1964, isso ocorre exatamente para garantir que os congressistas poderão decidir de acordo com sua consciência, sem temer represálias por parte do Executivo. Essa norma existe, portanto, como uma forma de garantir o funcionamento do sistema de freios e contrapesos, indispensável para o equilíbrio entre os Poderes. A supressão desse dispositivo poderá anular a "independência e harmonia" dos Poderes Constituídos e assim prejudicar irremediavelmente o funcionamento do regime democrático.


A INCONSTITUCIONALIDADE DA EMENDA ESTADUAL

Ora, uma das Emendas Constitucionais acima referidas, aprovadas pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, extinguiu exatamente o voto secreto para as deliberações a respeito do veto do Executivo. Da mesma forma como ocorre no processo legislativo federal, o projeto de lei, aprovado pela Assembléia, depende da sanção (aprovação) do Governador. Se este não concordar com o projeto, poderá veta-lo, total ou parcialmente e neste caso, o projeto será devolvido à Assembléia, que poderá aprova-lo, por maioria qualificada. O voto, para que a Assembléia decida a respeito do veto do Governador, seria secreto, conforme acontece, também, no Congresso Nacional, em relação à rejeição do veto do Presidente da República (art. 66, § 4o, acima transcrito).

A experiência mostra que, se o voto for aberto, nessa hipótese, o Governador poderá pressionar os deputados, através das lideranças, através do partido político, para que não rejeitem o seu veto, sob a ameaça, por exemplo, do corte de verbas, ou de que não serão liberados os recursos para os deputados que votarem contra a sua vontade. Em conseqüência, com a extinção do voto secreto, será inevitável um fortalecimento ainda maior dos poderes do Executivo, e os parlamentos serão órgãos meramente decorativos, "para inglês ver", e pensar que nós temos um regime democrático. Essa extinção servirá apenas para agravar mais um pouco os problemas crônicos de nossa democracia meramente formal.

A Emenda Constitucional do Estado do Rio de Janeiro é assim no meu entendimento perfeitamente inconstitucional, e não apenas porque atenta contra a unidade do direito federal, mas porque a extinção do voto secreto vulnera também outros dos princípios básicos de nosso ordenamento constitucional, como o da independência e harmonia dos poderes constituídos e o princípio democrático. Na minha opinião, nem mesmo o Congresso Nacional poderia extinguir o voto secreto, em relação à deliberação sobre o veto presidencial (art. 66, § 4o, da Constituição Federal), porque estaria atentando contra uma das cláusulas pétreas enumeradas no § 4o do art. 60 da Constituição Federal, segundo a qual nenhuma proposta de emenda constitucional poderia abolir, nem poderia ser, ao menos, tendente a abolir, a separação dos Poderes. Em meu entendimento, a extinção do voto secreto, especialmente na hipótese sob comento, seria na verdade tendente a abolir a separação dos Poderes, porque conforme já demonstrado, seria de grande valia para que o Executivo assumisse, de uma vez por todas, o controle das deliberações do Legislativo.

Nem se diga, também, que a possibilidade aventada, de que o Executivo se valha da circunstância de ser o guardião da chave do cofre, para atentar contra a independência do Legislativo, é assim tão remota, porque O Liberal de hoje (19 de maio) noticiou que o Presidente FHC está sendo acusado da prática de crime de responsabilidade, em decorrência da liberação de verbas orçamentárias, para evitar a instalação da CPI da Corrupção no Congresso. Ou seja: o Presidente teria conseguido, mediante a oferta de vantagens patrimoniais, que vinte deputados retirassem suas assinaturas no requerimento da CPI. Isso não poderia acontecer, é claro, em questões semelhantes, em qualquer deliberação do Congresso, com o voto secreto, a não ser que houvesse a violação do painel, mais uma vez.


LIMITAÇÕES AO PODER CONSTITUINTE DECORRENTE

De qualquer maneira, a Emenda Constitucional do Rio de Janeiro, que tomei como paradigma para a defesa de minha tese, é inconstitucional, porque o poder constituinte decorrente, do Estado-membro, ou seja, o poder de reformar a Constituição Estadual, é um poder limitado, exatamente porque está sujeito a limites jurídicos, impostos pela Constituição Federal. Os Estados-membros são autônomos, mas não podem contrariar a Constituição Federal. De acordo com a norma da Constituição alemã, o direito federal rompe, ou prevalece sobre o direito estadual: "Bundesrecht brichts Landesrecht"

Na lúcida lição de Ana Cândida da Cunha Ferraz (Poder Constituinte do Estado-membro):

"Esse controle da ação do Poder Constituinte estadual é da essência do regime federativo. A Federação é um sistema de coexistência. De fato, tudo podem os Estados-membros, contanto que não infrinjam os princípios que limitam sua autonomia, e tudo pode a União, desde que respeite os direitos dos Estados. Essa coexistência é afirmada e garantida na Constituição Federal; o Estado Federal é um Estado constitucionalmente descentralizado, isto é, um Estado onde há divisão entre poderes central e locais."

Mais adiante, a respeito do princípio da supremacia constitucional, leciona a mesma autora:

"O fenômeno jurídico do controle da constitucionalidade, existente em qualquer tipo de Estado, repousa essencialmente na idéia de que a Constituição – obra de um Poder Constituinte Originário – é uma Lei Superior, fonte do direito interno, à qual conseqüentemente, hão de adequar-se todos os atos jurídicos praticados no âmbito do Estado; repousa, pois, na idéia da supremacia das regras constitucionais. Daí Manoel Gonçalves Ferreira Filho ensinar que o controle de constitucionalidade é a ‘verificação da adequação de um ato jurídico à Constituição’.

Ponto importante desse controle, no Estado Federal, é a supremacia da Constituição Federal – obra do Poder Constituinte Originário – sobre todo o sistema jurídico interno do Estado Federal, inclusive, pois, sobre as Constituições Estaduais dadas pelo Poder Constituinte Decorrente." (grifamos)

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OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA UNIÃO

Nossa primeira Constituição Republicana (e federativa), a Constituição de 1.891, já previa, em seu art. 63, que cada Estado seria regido pela Constituição e pelas leis que adotasse, "respeitados os princípios constitucionais da União".

Na vigente Constituição, a matéria consta do art. 25, verbis:

"Art. 25 – Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição."

As Constituições e leis estaduais devem portanto concretizar o ordenamento constitucional da Federação, somente podendo diversificar após a observância daquele conjunto de princípios mínimos, obrigatórios para todas as unidades federativas, e que limitam a sua autonomia. A inobservância desses princípios poderá acarretar, conforme a hipótese, a possibilidade da decretação da intervenção federal no Estado (art. 34, inciso VII), ou mesmo a simples inconstitucionalidade da norma estadual, em relação à inobservância de outros princípios constitucionais, e a sua conseqüente retirada da ordem jurídica, para que a Constituição Federal, como Estatuto da Federação, possa atuar como o padrão, ou o estalão, da homogeneidade de nosso ordenamento jurídico.

Se o Estado-membro vulnerar, em sua organização, um dos princípios constitucionais enumerados no inciso VII do art. 34 da Constituição Federal, poderá sofrer a sanção drástica da intervenção federal. Evidentemente, o Presidente da República somente poderá decretar a intervenção nas hipóteses taxativamente enumeradas no art. 34, mas concretizando-se uma dessas hipóteses, a decretação da intervenção não será obrigatória nem automática, se houver possibilidade de que se restaure a normalidade federativa sem o recurso a esse remédio drástico.

Esses princípios, cuja inobservância pelas unidades federadas enseja a decretação da intervenção federal, podem ser considerados o Eixo da Federação Brasileira, porque foram erigidos, pelo Constituinte, na mais alta das posições hierárquicas. São eles a forma republicana, o sistema representativo e o regime democrático (art. 34, VII, ‘a’); os direitos da pessoa humana (art. 34, VII, ‘b’); a autonomia municipal (art. 34, VII, ‘c’); a prestação de contas da administração pública, direta e indireta (art. 34, VII, ‘d’); e a aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino (art. 34, VII, ‘e’).

Mas o art. 25 da Constituição Federal, acima transcrito, dispõe que os Estados-membros deverão "observar os princípios desta Constituição", e não apenas os enumerados no inciso VII do art. 34, cuja inobservância enseja a decretação da intervenção federal. Dentre esses princípios, estão os referentes ao processo de elaboração legislativa, e assim o Estado-membro não poderá extinguir o voto secreto, nem muito menos o Município poderá fazê-lo, porque caberá ao Poder Judiciário a decretação da inconstitucionalidade dessa norma, tendo em vista as limitações pertinentes ao exercício do Poder Constituinte Decorrente. A Constituição Federal é suprema, é o Estatuto da Federação, e deverá portanto prevalecer sobre todo o sistema jurídico interno do Estado Federal, conforme já dito anteriormente, limitando através de seus princípios fundamentais toda a normatividade federal, estadual e municipal.

CONCLUSÕES

Em regra, as deliberações das Casas legislativas, federais, estaduais ou municipais, devem ser abertas, exatamente para que o eleitorado possa acompanhar a atuação de seus mandatários, e para que possa, legitimamente, exercer a pressão necessária para o correto funcionamento do regime democrático, que deve expressar a vontade da maioria.

Em certos casos, no entanto, é impossível prescindir do voto secreto, como forma de evitar outros tipos de pressão, espúria, sobre a atuação dos parlamentos.

A Constituição Federal estabelece diversas hipóteses, nas quais as deliberações do Congresso Nacional serão obrigatoriamente obtidas através de votação secreta.

Essa enumeração é taxativa, não podendo ser ampliada por qualquer norma infra-constitucional, tendo em vista a excepcionalidade das hipóteses de votação secreta e a aplicação do princípio constitucional da publicidade.

Admitir que essa enumeração pudesse ser livremente ampliada poderia levar ao absurdo da adoção generalizada do voto secreto nas deliberações de nossas casas legislativas.

Evidentemente, também, essa enumeração não poderá ser alterada através de disposições infra-constitucionais, para que seja suprimida alguma das hipóteses permissivas de votação secreta. Com maior razão, também não poderá ser extinto o voto secreto, conforme se pretende.

Somente o Poder Constituinte Derivado, ou Poder Reformador, poderá alterar, no âmbito federal, as normas constitucionais pertinentes às hipóteses em que o voto deverá ser secreto. Através de uma Emenda Constitucional, o Congresso poderá acrescentar, alterar ou até mesmo suprimir algumas dessas hipóteses, previstas na Constituição Federal. Não poderá fazê-lo, contudo, se essa Emenda atentar contra as cláusulas pétreas, imutáveis, constantes do § 4o do art. 60 da Constituição Federal.

As normas constantes da Constituição Federal, referentes ao voto secreto, são obrigatórias para os Estados e para os Municípios. Não poderão ser portanto criadas outras hipóteses, quer através das Constituições e das Leis Orgânicas, quer através de disposições regimentais.

Conseqüentemente, serão também inconstitucionais quaisquer normas estaduais ou municipais, sejam elas de que nível forem, constitucionais, regimentais ou constantes das leis orgânicas municipais, que sejam de qualquer forma tendentes à abolição do voto secreto.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Fernando. Voto secreto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2035. Acesso em: 19 abr. 2024.

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