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Levando a escassez a sério: a relação entre o orçamento público e o direito à saúde

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02/09/2011 às 09:28
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Estuda-se a dialética relação existente entre o direito à saúde e as escolhas orçamentárias, quando da aplicação dos recursos escassos.

SUMÁRIO: 1. Introdução;2. O Orçamento Público;2.1. O Desenvolvimento Histórico do Orçamento;2.2. O Orçamento Público no Brasil;2.3. A Natureza Jurídica do Orçamento;3. O Ativismo Judicial;3.1. O Desenvolvimento do Ativismo Judicial; 3.2. O Ativismo Judicial e a Judicialização das Políticas Públicas de Saúde;4. A Judicialização do SUS;4.1. O Jusdicializador na Questão do SUS;4.2. O Judicializado na Questão do SUS;5. Conclusão.Fontes de Pesquisa.

Resumo

O artigo presente tem por objetivo estudar a dialética relação existente entre o Direito à Saúde e as Escolhas Orçamentárias, quando da aplicação dos recursos escassos.

Abstract

The present article aims to study the dialectical relationship between the Right to Health and Budgetary Choices, in the application of scarce resources.

Palavras-Chaves: Direito, Orçamento e Saúde.

Key-Words: Right, Budget and Health.


Introdução

No alvorecer do novo século, o XXI, o tema da judicialização do orçamento público destinado às políticas públicas de saúde é de conhecimento bastante difundido devido à grande produção doutrinária e jurisprudencial acerca desse mote [01]. Isso ocorreu porque, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro passou a ser cobrado pela efetividade de suas prestações sociais decorrente da dialética relação entre necessidades da sociedade civil e das possibilidades da Administração Pública.

Esse tema será o do presente trabalho, a judicialização do orçamento público, mais especificamente a judicialização das políticas públicas de saúde, a qual, devido à amplitude do Sistema Único de Saúde, poderia ser considerada a Judicialização do SUS. Em tal estudo, objetivaremos: a) adquirir as noções básicas relativas ao orçamento público; e b) compreender como o Poder Judiciário tem lidado com a efetividade dos direitos sociais.

Para tanto, além da análise da Magna Carta que positiva em seu art. 196 [02] que "a saúde é um direito de todos e um dever do Estado" [03], apreciaremos casos colhidos na jurisprudência nacional, mormente a exarada pelos Tribunais superiores. Nesse estudo, faremos uma revisão bibliográfica do tema com base em distintos autores.

Assim sendo, com o intuito de responder questão de como tem configurado-se a judicialização do orçamento público destinado ao SUS, elaboraremos 3 (três) Capítulos: no Primeiro, adquiriremos as noções gerais de como o orçamento foi parar nas mãos da Justiça; no Segundo, tematizaremos a relação entre o ativismo judicial e a judicialização da saúde; no Terceiro, realizaremos a análise crítica no caso brasileiro com a propositura de medidas que visem a legitimar o sistema.


1. O Orçamento Público

O orçamento público tem sua gênese nas importantes proclamações de direitos que varreram o mundo a partir da baixa Idade Média, as quais objetivavam impedir a confusão patrimonial entre os bens do Estado e os de seu administrador. Com tal desenvolvimento, o orçamento adquiriu os aspectos político, econômico, técnico e jurídico. Quanto ao jurídico, no Brasil, tem sido desconsiderada, pelo STF, a concretude das leis orçamentárias que impediriam sua judicialização pelo controle de constitucionalidade.

1.1.O Desenvolvimento Histórico do Orçamento

O orçamento público, enquanto sendo uma dialética relação entre as receitas [04] e as despesas [05] públicas com o objetivo de maximizar os ganhos para a Administração Pública e, por conseguinte, para o contribuinte, tem sua gênese na idéia novidadeira de que o patrimônio do Estado deve ser separado dos bens de que, por ventura, administre aquela entidade, seja esse, por exemplo, rei (quando a forma de governo for monarquia), presidente ou primeiro-ministro (quando aquela for de república).

Essa necessidade de segregar os patrimônios do Estado adveio do fato de que, diante da compulsão da máquina estatal para instituir tributos que muitas vezes enchiam os cofres de seus administradores, controlou-se a arrecadação para que não mais ocorressem excessos por parte da Administração Pública. De tal sorte, podemos afirmar que o orçamento público não tem origem em preocupações técnicas com o mister de racionalizar a relação entre receitas e despesas, como atualmente, mas, sim, decorreu de uma grande luta política que intentava limitar as forças do Estado na tributação.

Com efeito, conquanto possam alguns historiadores do Direito tentar remontá-lo à Antiguidade, em conformidade com Marcus Abraham, em seu livro Direito Financeiro Brasileiro, não podemos tratar de orçamento público na Idade Antiga, porquanto, naquele tempo, havia a nefasta confusão patrimonial entre bens do Estado e de seu administrador. Ademais, também não havia a necessidade técnico-administrativa de racionalização dos gastos e de demonstração ao povo contribuinte tanto da origem do dinheiro despendido quando do destino desse, em qual despesa fora aplicada, uma vez que o povo não era participante da formação da vontade do Estado.

Já na Idade Média, os acontecimentos eram bastante semelhantes ao período anterior. Todavia, em conformidade com Aliomar Baleeiro, em sua obra Uma Introdução à Ciência das Finanças, podemos encontrar o ponto de partida da história do orçamento público no final da baixa medievalidade, quando enceta o processo de controle da atividade financeira, a despeito de esse controle ser muito mais voltado para a limitação das receitas do que para a fiscalização da despesa, para ABRAHAM.

De tal modo, a história do orçamento público inicia-se "quando as instituições feudais, fracionado o poder real, ou imperial, confundiram receitas privadas do domínio do príncipe, – o maior latifundiário da época, com receitas autoritárias, das quais obtinham imunidade os senhores poderosos vinculados à coroa por pactos de lealdade contra inimigos comuns. Os reis, na Europa medieval, viviam de rendimentos dominiais de suas terras e de direitos regalianos, limitada a tributação a formas suaves e tradicionais" [06], as quais estavam sendo controlada pelo contrapeso político exercido pelos vassalos.

O orçamento público nasce, então, conjuntamente aos demais direitos fundamentais, no contexto de controle do Estado autoritário, que manda alicerçado na força, e irresponsável, que não responde pelos seus atos, tendo em vista que o rei não erraria. Nessa direção, faz sentido asseverar que há um dispositivo, o artigo XII [07], da Magna Carta de 1215, documento prestigiado com um dos fundamentos do constitucionalismo contemporâneo, que condiciona a arrecadação de tributos, no Reino da Inglaterra, à sua previa aprovação na Câmara dos Comuns, o que limitou o poder do rei de impor a cobrança de tributos arbitrariamente, sem o consentimento dos representantes do povo.

Tanto o é, que, para BALEEIRO, "esses estilos provam que desde a baixa Idade Média, no seio de vários povos da Europa encontravam dificuldades em criar impostos novos e majorar os antigos, ou levar empréstimos forçados, sem consentimento de certos órgãos colegiados, que pretendiam falar em nome dos contribuintes" [08]. O povo, enquanto contribuinte, foi ganhando, então, cada vez mais voz e vez no estabelecimento da vontade político-econômica do Estado que financiavam.

Por sua vez, na Idade Moderna, o orçamento público como controle do Estado é uma idéia desenvolvida dentro do constitucionalismo, uma vez que um dos direitos fundamentais, mais precisamente individuais do cidadão, é o de não ser espoliado por um déspota estatal. Nessa época, as mais diferentes declarações de direito continham normas de limitação ao poder de tributar, como por exemplo: a Bill os Rights da Revolução Inglesa de 1689; a Constituição estadunidense da Revolução de 1776; as Declarações de Direitos da Revolução francesa de 1789.

Nasce, assim, o Estado moderno, com sua faceta de Estado orçamentário que, para Ricardo Lobo Torres, em seu Curso de Direito Financeiro e Tributário, é "a particular dimensão do Estado de Direito apoiada nas receitas, especialmente a tributária, como instrumento de realização das despesas. O Estado orçamentário surge com o próprio Estado moderno" [09]. O constitucionalismo, portanto, dentro de seu discurso propugnador da existência de direitos considerados fundamentais, alcançou o campo dos "Direitos Financeiros, Econômicos e Tributários" conhecidos e nele operou um cambio paradigmático, ao levar a legitimidade democrática ao seu fundamento.

1.2.O Orçamento Público no Brasil

Conhecedores do conceito [10] de orçamento público e de seu desenvolvimento histórico, passemos, presentemente, à análise daquele instrumento no Brasil. O orçamento público realizado em nosso país é o que está, em grande parte, disciplinado pela Constituição Federal de 1988, a qual trouxe bastantes mudanças para o orçamento brasileiro, contemplando, dentro do Capítulo próprio das Finanças Públicas, uma seção exclusiva para o orçamento público (arts. 165 a 169).

Sendo o orçamento público o instrumento de planejamento do Estado que permite estabelecer a previsão de receitas públicas e a estimativa das despesas públicas, num determinado período, esse adquiriu, pela sua própria normatividade constitucional, distintos aspectos que caracterizam sua execução. Tais aspectos presentes no orçamento público seriam os seguintes: o político; o econômico; o técnico; e o jurídico. Cada um dos díspares aspectos do orçamento constitui caráter fundamental no estudo daquele instrumento contábil de planejamento, para BALEEIRO.

O aspecto político diz respeito ao fato de o orçamento público expor as políticas públicas estatais, as quais envolvem decisões de caráter coletivo do país. Pelo lado político, "o orçamento revela com transparência em proveito de que grupos sociais e regiões ou para solução de que problemas e necessidades funcionará precipuamente a aparelhagem de serviços públicos. Por exemplo, se o custeio respectivo será suportado com mais sacrifícios por esses mesmos grupos sociais ou por outros; enfim, a maior ou menor liberdade de ação do Poder Executivo na determinação de todos esses fatos do ponto de vista de regiões, classes, partidos, interesses e aspirações etc." [11].

Já quanto ao aspecto econômico, a peça orçamentária relacionará as receitas às despesas, de modo a compatibilizar as pretensões com as possibilidades do respectivo Estado. Pela sua característica econômica, o Estado intentará agir com o objetivo de manter o orçamento público equilibrado, com o intuito de evitar déficit que no longo prazo podem vir a minar o potencial de investimento econômico do Estado na sua própria economia.

Por sua vez, a qualidade de técnica decorre do fato de que o orçamento público é elaborado através de normas de Contabilidade Pública, seguindo rígidas regras contábeis. Para BALEEIRO, o aspecto técnico consiste no "estabelecimento das regras práticas para a realização dos fins indicados nos itens anteriores e para classificação clara, metódica de despesas, processos estáticos para cálculo tão aproximado quanto possível duma e doutros, apresentação gráfica e contábil do documento orçamentário etc." [12].

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O jurídico, ao qual nos deteremos mais abaixo, diz respeito à natureza do ato orçamentário à luz do ordenamento jurídico com um todo culminado pela Constituição. Sendo o orçamento materializado por três leis (a Lei do Plano Plurianual – PPL, a Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO e a Lei Orçamentária Anual – LOA) e sendo elaborado pelo Poder Executivo e sujeito à aprovação pelo Poder Legislativo, as implicações decorrentes de qual a natureza daquele instituto serão enormes para a configuração das obrigações que o Poder Público deverá assumir quando do início da realização do ciclo orçamentário pela aprovação da "lei ordinária".

Como observado acima, o orçamento público pelo regime constitucional do Brasil, é de iniciativa do Poder Executivo, assim como ocorre na Inglaterra [13], mas deve ser votado e aprovado pelo Poder Legislativo que, além disso, controlará a execução do ciclo orçamentário com apoio do Tribunal de Contas da União (TCU). De tal sorte, apercebe-se que a Constituição de 1988, intentou aumentar a legitimidade democrática do orçamento público ao condicionar sua execução à aprovação pelos representantes do povo.

Sob a égide da Constituição anterior, de 1967 ou 1969, dependendo do fato de se considerar ou não a ementa constitucional que reformou todos os artigos da de 67 uma nova Constituição ou não – independentemente disso – não havia necessidade de o Poder Executivo possuidor da iniciativa de elaboração do orçamento submeter as propostas à análise por parte Poder Legislativo. Nem todas as peças orçamentárias, no regime de antanho, estavam sujeitas ao crivo da vontade do povo, uma vez que o Orçamento das Empresas Estatais (SEST) não participava daquele rito.

Ademais, há de se destacar que, além de não poder apreciar todas as peças, o Poder Legislativo não podia propor alterações que implicasse modificação das despesas, seja quando cambiasse seu valor, seja quando mudasse a sua espécie. De tal azo, assim como ocorria antes das proclamações de direitos das Idades Média (Magna Carta de 1225) e Moderna (Revoluções Inglesa, Americana e Francesa), o Estado brasileiro encontra-se arbitrário e irresponsável quando da elaboração do orçamento público, pelo menos em relação àquela parte que o Legislativo não podia analisar ou tinha de aprovar em bloco, sem emendas.

As restrições à participação dos representantes do povo davam-se no orçamento SEST, que, para o entendimento de Marcus Abraham, "abrangia as empresas públicas (que estavam em franca expansão), sociedades de economia mista, suas subsidiárias, autarquias e fundações. Era elaborado pela então Secretaria de Controle das Estatais e aprovado pelo Presidente da República, não tendo, portanto, qualquer participação do Legislativo" [14].

Atualmente, o Estado da República Federativa do Brasil encontra-se mais democrático, porquanto, com as peças orçamentárias da PPL, LDO e LOA sendo consideradas leis ordinárias, as duas casas do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado) podem vir a propor ementas ao orçamento, o que confere maior transparência ao Poder Público quando do gasto do dinheiro do contribuinte. Além disso, havendo uma maior transparência, o planejamento tende a ser, outrossim, melhor, conduzindo-nos a um equilíbrio fiscal.

1.3.A Natureza Jurídica do Orçamento

O orçamento público, como esperamos haver demonstrado acima, possui diferentes aspectos (o político, o econômico, o técnico e o jurídico), os quais caracterizam o ciclo orçamentário. O aspecto jurídico decorre do fato de o orçamento deve ser elaborado pelo Poder Executivo, que possui a iniciativa de propor o PPL, a LDO e a LOA votadas e aprovadas, democraticamente, pelo Legislativo. Quanto a esse aspecto ainda, uma das questões mais intrigantes seria a natureza jurídica do orçamento.

A questão da natureza jurídica do orçamento público ainda não é, de todo, pacífica, quer seja na doutrina, quer seja na jurisprudência dos Tribunais. Nesse campo, há os subseqüentes entendimentos: o orçamento seria uma lei formal; seria uma lei material; seria uma lei especial; seria mero ato administrativo. Ademais, há ainda os entendimentos conciliatórios que, ao considerar o orçamento como tendo natureza mista, acabam por mesclar diferentes doutrinas como, por exemplo, a que considera o orçamento como um ato administrativo revestido, externamente, por uma lei formal.

O orçamento público é considerado lei ordinária, tendo em vista: a) que seu documento nasce de um projeto de lei; b) que pode sofrer emendas parlamentares; c) que recebe parecer da comissão de orçamento; d) que é aprovado pela maioria simples [15]. No entanto, não obstante seja considerado lei ordinária, o orçamento público recebe um tratamento constitucional dessemelhante ao das leis genéricas no conteúdo e na forma, porquanto: a) o orçamento tem prazo próprio para ser encaminhado ao Congresso (art. 35, § 2º, do ADCT [16]); b) o orçamento tem conteúdo limitado a relacionar despesas às receitas (art. 165, § 8º, da CF/88) [17].

Ademais, há que se destacar ainda as conseqüentes características: c) o orçamento público não pode ser objeto nem de Lei Delegada nem de Medida Provisória, ressalvada a abertura de créditos extraordinários (art. 62, § 1º, da CF/88) [18]; d) as emendas ao orçamento são limitadas pela própria Constituição (art. 166, § 3º, da CF/88) [19]; e) o prazo de vigência é determinado, não havendo necessidade de revogação expressa. Tais são, em geral, as características peculiares do orçamento.

Sabedores disso, expliquemos, presentemente, os diferentes entendimentos arrolados. A menos difundida seria a que considera o orçamento uma lei especial por ser diferente das demais leis ordinária, como visto acima. A esse corrente filia-se Kiyoshi Harada que entende que "o orçamento público é uma lei ânua, de efeito concreto, estimando as receitas e fixando as despesas, necessárias à execução da política governamental" [20].

Por outro lado, a corrente que entende que o orçamento público é um mero ato administrativo, conforme José Marcos Domingues, autor citado por Marcus Abraham, encontrou um terreno muito fértil no Brasil, haja vista que somos uma nação de tradição autoritária, na qual nunca foi incomum que o Poder Executivo – beneficiado pela teoria do orçamento como mero ato administrativo – sobreponha-se ao Poder Legislativo, ao considerar o orçamento público um ato condição impassível de apreciação judicial quando do seu do seu possível descumprimento.

Comprovando o pensamento propugnado por DOMINGUES, na doutrina brasileira, há o entendimento de Hely Lopes Meirelles, jurista de público e notório conhecimento administrativo, mas que esboçou certo viés autoritário em seus posicionamentos, ao considerar que não importaria "que, impropriamente, se apelide o orçamento anual de lei orçamentária ou de lei de meios, porque sempre lhe faltará a força normativa e criadora da lei propriamente dita" [21]. Essa doutrina, a nosso ver, deve ter soado como música aos ouvidos da ditadura que, despoticamente, governou o Brasil de 1964 até 1985.

Todavia, conquanto haja essas vertentes, a da lei especial e a do ato administrativo, a grande questão estaria na dicotomia entre a da lei formal e a da lei material, tendo em vista que essas seriam as doutrinas majoritárias no coevo contexto nacional. Além disso, segundo ABRAHAM, o debate acerca da natureza jurídica do orçamento público envolve grandes discussões que vão muito além da mera disputatio teórica.

Para o inventariado jurista, "a importância de se definir a sua natureza está nos reflexos dali decorrentes, que influenciam duas relevantes questões, a saber: a) a obrigatoriedade ou não do cumprimento dos programas e a realização das despesas nele previstas pelo Poder Executivo; b) o surgimento ou não de direitos subjetivos para o cidadão, a ensejar a judicialização, não apenas dos programas e despesas previstas na lei orçamentária, mas também dos direitos fundamentais e dos direitos sociais constitucionalmente garantidos; c) possibilidade de controle constitucional" [22].

Assim sendo, analisemos, então, as doutrinas da lei formal e da material. Para a primeira, o orçamento público conteria apenas a previsão das receitas e das despesas, de modo a otimizar o exercício da Administração Pública, melhorando os gastos. Pela consideração do orçamento como lei formal, Alberto Deodato afirma, quanto às leis do orçamento, que "os atos orçamentários não têm as condições de generalidade, constância ou permanência que dão cunho à verdadeira lei; não encerram declaração de direito; não são mais do que medidas administrativas tomadas com a intervenção do aparelho estatal" [23].

Já para a corrente que considera o orçamento com sendo lei material – que perdeu um pouco de sua força com a não preservação do princípio da anualidade, com a mudança de constituição –, o orçamento público teria conteúdo normativo apto para considerá-lo lei, não sendo mero ato administrativo revestido no corpo de lei. De tal maneira, a aprovação do orçamento imporia ao Estado o dever obrigacional de implementá-lo, podendo o cidadão cobrar o que seria seu direito subjetivo.

Diante dessa querela, o Supremo Tribunal Federal (STF), para alguns juristas, vem, de certa forma, cambiando o paradigma que orientava a análise do orçamento. A priori, o STF entendia que, devido às escolhas políticas nele contidas, o orçamento seria um ato de efeito concreto, específico e de caráter individual. Àquele Tribunal, não havia generalidade, abstração e normatividade aptas para considerá-lo lei, de modo que, assim, era inviável seu debate por meio, por exemplo, do controle de constitucionalidade abstrato, vedando-se sua manifestação no caso.

Tal jurisprudência restou consignada na ADI 2.484, de relatoria do Ministro Carlos Veloso, em julgado ainda recente de dezembro de 2001, na qual se defendeu na ementa que: a) "leis com efeitos concretos, assim atos administrativos em sentido material: não se admite o seu controle em abstrato, ou no controle concentrado de constitucionalidade; b) Lei de diretrizes orçamentárias, que tem objeto determinado e destinatários certos, assim sem generalidade abstrata, é lei de efeitos concretos, que não está sujeita à fiscalização jurisdicional no controle concentrado" [24]. Esse entendimento foi, inclusive, exposto no informativo 255 daquele Tribunal, in verbis:

Não se conhece de ação direta de inconstitucionalidade contra atos normativos de efeitos concretos, ainda que estes sejam editados com força legislativa formal. Com esse entendimento, o Tribunal, por maioria, não conheceu de ação direta ajuizada pelo Partido Comunista do Brasil - PC do B contra dispositivos da Lei 10.266/2001 (art. 19, § 1º do art. 55 e art. 54), Lei de Diretrizes Orçamentárias, pela ausência de generalidade e abstração das normas atacadas.

Vencido o Min. Marco Aurélio, que conhecia da ação por considerar que as normas impugnadas caracterizam-se como comandos abstratos. ADIn 2.484-DF, rel. Min. Carlos Velloso, 19.12.2001.(ADI-2484) (grifo nosso). [25]

A posteriori, o STF mudou de paradigma quanto à possibilidade de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade das leis orçamentárias (PPL, LDO e LOA). Essa questão tem sido, de certo modo, o pano de fundo sobre o qual se desenvolve a problemática questão da judicialização das políticas públicas, principalmente das políticas públicas de saúde que tem sua execução dependente de receita orçamentária destinada a garantir a devida efetividade das normas que prevêem os direitos fundamentais sociais.

Mudado o paradigma, o nosso Tribunal maior tem admitido ser possível o controle abstrato e concentrado de constitucionalidade das leis orçamentárias. Nesse sentido, é de fundamental importância o conhecimento de acórdão que julgou a ADI 4.048, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, julgado em 14/05/2008, que entendeu que o STF "deve exercer sua função precípua de fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando houver um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato, independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto" [26].

EMENTA: MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA N° 405, DE 18.12.2007. ABERTURA DE CRÉDITO EXTRAORDINÁRIO. LIMITES CONSTITUCIONAIS À ATIVIDADE LEGISLATIVA EXCEPCIONAL DO PODER EXECUTIVO NA EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS. I. MEDIDA PROVISÓRIA E SUA CONVERSÃO EM LEI. Conversão da medida provisória na Lei n° 11.658/2008, sem alteração substancial. Aditamento ao pedido inicial. Inexistência de obstáculo processual ao prosseguimento do julgamento. A lei de conversão não convalida os vícios existentes na medida provisória. Precedentes. II. CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS ORÇAMENTÁRIAS. REVISÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O Supremo Tribunal Federal deve exercer sua função precípua de fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando houver um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato, independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto. Possibilidade de submissão das normas orçamentárias ao controle abstrato de constitucionalidade. III. LIMITES CONSTITUCIONAIS À ATIVIDADE LEGISLATIVA EXCEPCIONAL DO PODER EXECUTIVO NA EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS PARA ABERTURA DE CRÉDITO EXTRAORDINÁRIO. Interpretação do art. 167, § 3º c/c o art. 62, § 1º, inciso I, alínea "d", da Constituição. Além dos requisitos de relevância e urgência (art. 62), a Constituição exige que a abertura do crédito extraordinário seja feita apenas para atender a despesas imprevisíveis e urgentes. Ao contrário do que ocorre em relação aos requisitos de relevância e urgência (art. 62), que se submetem a uma ampla margem de discricionariedade por parte do Presidente da República, os requisitos de imprevisibilidade e urgência (art. 167, § 3º) recebem densificação normativa da Constituição. Os conteúdos semânticos das expressões "guerra", "comoção interna" e "calamidade pública" constituem vetores para a interpretação/aplicação do art. 167, § 3º c/c o art. 62, § 1º, inciso I, alínea "d", da Constituição. "Guerra", "comoção interna" e "calamidade pública" são conceitos que representam realidades ou situações fáticas de extrema gravidade e de conseqüências imprevisíveis para a ordem pública e a paz social, e que dessa forma requerem, com a devida urgência, a adoção de medidas singulares e extraordinárias. A leitura atenta e a análise interpretativa do texto e da exposição de motivos da MP n° 405/2007 demonstram que os créditos abertos são destinados a prover despesas correntes, que não estão qualificadas pela imprevisibilidade ou pela urgência. A edição da MP n° 405/2007 configurou um patente desvirtuamento dos parâmetros constitucionais que permitem a edição de medidas provisórias para a abertura de créditos extraordinários. IV. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. Suspensão da vigência da Lei n° 11.658/2008, desde a sua publicação, ocorrida em 22 de abril de 2008. [27]

Sendo assim, o Supremo Tribunal Federal tem seguindo na direção da possibilidade de apreciação do orçamento público quando do controle constitucional naquele Tribunal. De tal sorte, o STF tem abandonado uma postura anteriormente predominante no Poder Judiciário brasileiro, a da moderação judicial que pregava a não intervenção desse Poder em matérias consideradas interna corpuris como a impossibilidade de análise de lei concreta no controle constitucional do STF.

Como veremos a seguir, a moderação judicial e sua não intervenção em motes considerados internos vem sendo, paulatinamente, substituída pelo que se tem chamado de ativismo judicial, a qual vem, por exemplo, promovendo a judicialização das políticas públicas de saúde. Aquele ativismo vem não só promovendo aquele judicialização no STF, ao desconsiderar a característica de lei concreta das leis do orçamento – havendo, inclusive, uma proposta de Súmula Vinculante de iniciativa da Defensoria Pública no sentido da judicialização da Saúde –, mas também nos graus ordinários da Justiça.

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Sobre o autor
Nilson Dias de Assis Neto

Acadêmico do Curso de Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), aluno bolsista do VII Curso de Formação em Teoria Geral do Direito Público (TGDP) do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e estagiário remunerado do Gabinete da Ministra Fátima Nancy Andrighi do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ASSIS NETO, Nilson Dias. Levando a escassez a sério: a relação entre o orçamento público e o direito à saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2984, 2 set. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19920. Acesso em: 24 abr. 2024.

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