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Detenção e prisão disciplinar cautelar nas Forças Armadas

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13/06/2011 às 09:16
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1 INTRODUÇÃO

Inúmeros são os aspectos penais, processuais e administrativos que compõem o chamado Direito Militar e que tangenciam e transitam nas premissas da ordem constitucional vigente. Nesse contexto o tema "Novas tendências do Direito Constitucional Militar e do Direito Disciplinar Militar", ganha a cada dia mais destaque, sendo, por esse motivo, escolhido para ser objeto do presente estudo.

Dentre as abordagens do tema, apresenta substancial importância a possibilidade existente, no direito disciplinar militar, de o militar das Forças Armadas ser detido ou preso como medida cautelar, quando isso se tornar necessário para preservação da disciplina, bem como em outros casos que exigirem pronta intervenção.

A Carta Magna de 1988 inaugurou nova etapa na realidade jurídica e política do País. Dessa pedra angular, insurge uma democracia mais humanista e voltada a assegurar direitos fundamentais. A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LIV estabelece que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal." No inciso LV, o mesmo diploma prevê que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".

Inobstante tais garantias constitucionais, a Carta Magna também prescreve no incido LXI, do mesmo artigo, que "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei" (grifo nosso).

Da leitura do inciso LXI, se depreende pela possibilidade de prisão por transgressão militar sem ordem fundamentada de autoridade judiciária. A norma constitucional parece possibilitar que tal punição possa se dar de forma cautelar, sem defesa prévia, ou seja, sem que seja estabelecido um processo anterior. Esse entendimento parece ter sido o adotado pela normatização infraconstitucional, a qual regula a disciplina no âmbito das Forças Armadas, como se verificará no presente trabalho.

Como se pode observar, apesar de surgir do aparente conflito de normas constitucionais, o tema não fica restringido apenas ao âmbito do Direito Constitucional. Incide, também, na área de conhecimento do Direito Administrativo Disciplinar Militar, por meio da legislação infraconstitucional. Parece surgir aí o impasse de um aparente conflito de normas, objeto de estudo deste trabalho.

Diante dessa situação, surge o problema quanto à possibilidade ou não de prisão cautelar por transgressão disciplinar militar. Ou seja, é possível o superior hierárquico prender militar das Forças Armadas, como medida cautelar, quando isso se tornar necessário para preservação da disciplina, bem como em outros casos que exigirem pronta intervenção?

O presente trabalho tem por desiderato estudar a detenção e a prisão aplicadas em medida cautelar por transgressão disciplinar no âmbito das Forças Armadas, concluindo sobre sua admissibilidade e viabilidade em face das normas e princípios constitucionais.

Para se atingir esse objetivo principal, este trabalho tem como meta os seguintes objetivos intermediários:

- discorrer sobre as particularidades da carreira das armas;

- definir transgressão disciplinar militar e crime militar distinguindo tais institutos;

- analisar as sanções disciplinares;

- definir prisão provisória e discorrer sobre os princípios que regem esse instituto;

- verificar a possibilidade de aplicação da detenção e prisão provisória por transgressão disciplinar, consoante aos princípios do direito constitucional e do direito administrativo.

O tema escolhido trata-se, inegavelmente, de questão deveras controvertida em face da ordem jurídica inaugurada pela Constituição Cidadã.

Ao eleger o tema "Prisão Disciplinar Cautelar nas Forças Armadas", buscou-se conciliar o cumprimento da imposição curricular da especialização latu sensu em Direito Militar, que prevê a realização de dissertação monográfica como condição sine qua non para conclusão do Curso, e o interesse relacionado a minha experiência profissional, nos mais de vinte anos de serviço prestado ao Exército Brasileiro, consolidando-se, desta feita, os conhecimentos jurídicos do citado curso.

Para o desenvolvimento do tema, acernar-se-ão, preliminarmente, alguns conceitos básicos, bem como algumas peculiaridades a despeito da carreira das Armas, que distingue tal profissão das demais. Tal explanação inicial faz-se fundamental, a fim de adaptar o operador do direito à terminologia e certos distintivos próprios das lides castrenses. Após, discorrer-se-á sobre as transgressões disciplinares militares e crime militar distinguindo tais institutos, bem como as sanções disciplinares militares decorrentes dos ilícitos administrativos. Nesse ponto, identificar-se-á na Constituição disposições que dizem respeito, mediata e imediatamente, aos Direitos e Garantias Fundamentais, especialmente quanto ao devido processo legal. Ao final, analisar-se-á admissibilidade e viabilidade da ordem de detenção/prisão em medida cautelar por transgressão disciplinar no âmbito das Forças Armadas, em face das normas e princípios estudados.


2 A PROFISSÃO MILITAR

Preliminarmente, faz-se necessário entender a dinâmica e as particularidades da vida na caserna, a fim de que se possa transitar com desenvoltura adequada no caminho da inquietação jurídica proposta.

A natureza jurídica dos militares é peculiar, em decorrência da destinação constitucional das Forças Armadas, consoante se pode observar no art. 142, caput, in verbis:

As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

O §3º do mesmo artigo constitucional consignou que "os membros das Forças Armadas são denominados militares", fixando-lhes garantias e deveres, restringindo-lhes direitos e estabelecendo que lei disporá sobre situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra. A lei referida no dispositivo Constitucional é a Lei nº 6.880/80, também conhecida como Estatuto do Militares.

Mercê da índole das atribuições conferidas às Forças Armadas no País, alguns direitos políticos e fundamentais foram negados aos militares da União.

A "condição militar", internacionalmente reconhecida, em países desenvolvidos ou não, submete o profissional a exigências muito peculiares, que não são impostas, na sua totalidade, a nenhum outro profissional. Dentre essas exigências vale lembrar: risco de vida permanente; sujeição a preceitos rígidos de disciplina e hierarquia; dedicação exclusiva; disponibilidade permanente; mobilidade geográfica; vigor físico; proibição de participar de atividades políticas; proibição de sindicalizar-se e de participação em greves ou em qualquer movimento reivindicatório; restrições a direitos sociais; vínculo com a profissão mesmo na inatividade; sujeição a regulamentos disciplinares e códigos penais militares.

Os princípios de "disciplina" e "hierarquia" constituem a base institucional das Forças Armadas e são seus alicerces sociais e estruturais. A hierarquia e a disciplina não são princípios exclusivos das Forças Armadas, mas, por certo, é nesta seara que tais princípios são petencializados numa acepção muito peculiar. O artigo 142 da Magna Carta resguarda, em sede constitucional, os valores da hierarquia e disciplina como pedras angulares dessas instituições permanentes.

A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antiguidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à seqüência de autoridade.

FAGUNDES (2003, p. 203) comenta que se a obediência hierárquica não fosse nascida de uma superioridade jurídica imposta pela força do direito, as Forças Armadas não passariam de um bando armado, em que a superioridade é imposta pelo direito da força. Coloca o autor que uma Força Armada, na qual o subordinado pudesse livremente discutir a ordem do seu superior hierárquico, resultaria em um perigo para a tranqüilidade do Estado, ao invés de ser a garantia de sua existência.

Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo.

Faz-se importante citar a lição de VALLA apud ASSIS (2007, p. 69):

A organização militar é baseada em princípios simples, claros e que existem há muito tempo, a exemplos da disciplina e da hierarquia. Como se tratam dos valores centrais das instituições militares é necessário conhecer alguns atributos que revestem a relação do profissional com estes dois ditames basilares da investidura militar, manifestados pelo dever de obediência e subordinação, cujas particularidades não encontram similitudes na vida civil. (grifos no original)

Conforme preceitos de MARTINS (1996, p. 23-24), percebe-se que, para os militares, a hierarquia e a disciplina têm significados diferentes do que possuem para os funcionários civis, pois, para aqueles, funcionam como um código de honra que todos seguem e respeitam de maneira incontestável. E ainda continua:

A disciplina militar, por sua vez é o que se pode denominar de "disciplina qualificada", se tomada em relação à disciplina exigida de servidores não militares, já que detentora de institutos próprios, como a imposição de comportamentos absolutamente afinados aos imperativos da autoridade, do serviço e dos deveres militares, o que em regra não se exige do servidor público civil.

A permanência desses princípios, que são internacionalmente reconhecidos, é essencial para viabilizar tal carreira para o fim maior a que se destina: servir como a última instância, o derradeiro recurso na defesa dos interesses públicos da nação.

A disciplina e hierarquia foram e são consideradas inseparáveis para as grandes conquistas bélicas. Tendo uma disciplina a ser obedecida é porque há uma hierarquia a ser seguida. Ambas fundam de alicerce, sustentação, homogeneização, solidificação e perenidade das Forças Armadas.

O Ministro do Superior Tribunal Militar, Gen Ex CONFORTO (2005, p. 9), leciona que:

Só a disciplina mantém a coesão, possibilita a vitória sobre o medo. Só o respeito à hierarquia impede que alguém armado se transforme em uma besta-fera ou em um covarde ao ver companheiros caindo, explosões se sucedendo, gritos, desespero.

São antigos os códigos legais relativos aos militares. Desde há muito tornou-se imprescindível que houvesse leis especiais que punam com rigor a deslealdade, a covardia, a rebelião, o medo.

FAGUNDES (2003, p. 79-80) ensina que:

A formação militar, quer pela disciplina rigorosa, quer pelos deveres que são impostos ao militares, cria no indivíduo uma personalidade própria que os distingue dos civis, não só pelas atitudes, mas também pelo conteúdo da consciência resultante do espírito militar. Voltadas para defesa da Pátria e a salues populi, as Forças Armadas hão de exigir dos seus soldados rigorosa disciplina material e intelectual, comportamento uniforme, orientados pelo comando, e conceitos próprios, sobre tudo aquilo que concorre para formação do soldado. Assim, a covardia, muitas vezes desculpável no civil, é imperdoável no militar. A bravura, facultativa no civil, é essencial no militar. A desobediência, a teimosia que representa, muitas vezes, uma personalidade marcante no civil – olhada, em alguns casos, até com simpatia – constitui crime militar. Por esses poucos exemplos, já podemos sentir que, acertadamente, não poderia o militar ser julgado apenas por juízes civis, possuidores de conceitos diferentes sobre alguns delitos. Daí decorre a imperiosa necessidade de um direito especial, com sensibilidade própria.

Pode-se inferir, também, a peculiaridade da carreira das armas, ao analisar o Direito Penal Castrense. A norma penal militar vai proteger o Estado, depois a autoridade e a disciplina militar, o serviço militar e por fim a vida. E mais, no Direito Penal comum, o servidor público pode se negar a cumprir ordem manifestamente ilegal. Já no Direito Penal Militar não se faz um juízo de legalidade, mas de crime. O militar somente pode recusar obediência à ordem manifestamente criminosa.

Outro traço importante da vida militar é a submissão das Forças Armadas à autoridade suprema do Presidente da República.

O Art. 32 do Estatuto dos Militares (Lei Nr 6880/80) estabelece que todo cidadão, após ingressar em uma das Forças Armadas mediante incorporação, matrícula ou nomeação, prestará compromisso de honra, no qual afirmará a sua aceitação consciente das obrigações e dos deveres militares e manifestará a sua firme disposição de bem cumpri-los.

Incorporando-me ao Exército Brasileiro, prometo cumprir rigorosamente as ordens das autoridades a que estiver subordinado, respeitar os superiores hierárquicos, tratar com afeição os irmãos de armas e com bondade os subordinados e dedicar-me inteiramente ao serviço da pátria, cuja honra, integridade e instituições defenderei com o sacrifício da própria vida.

(grifos nossos)

Em verdade, o profissional das armas experimenta em determinadas liberdades e direitos, verdadeira capitis diminutio, justificáveis pela natureza de sua destinação constitucional. As Forças Armadas existem por uma única razão: a guerra. A guerra é atividade anormal do militar que exige que o cidadão seja colocado em segundo plano e exigindo-lhe sacrifícios tão graves quanto o da própria vida.

O Brasil também adotou um sistema baseado na hierarquia e na disciplina para policiais e bombeiros. Entretanto, policiais e bombeiros não são militares na visão clássica.

PORTO (2009, p. 50) ao questionar se os policiais e os bombeiros podem ser considerados militares, afirma não ser esta resposta tão simples. O citado professor conclui pela negativa desse questionamento, argumentando:

Policiais e bombeiros têm inimigo? Têm o dever legal de matar? Podem ser condenados por covardia e tantos outros crimes previstos no CPM para o militar clássico?

A resposta é negativa.

Nesse sentido corrobora a seguinte jurisprudência:

COMPETÊNCIA - HOMICÍDIO - AGENTE: MILITAR DA RESERVA - VÍTIMA: POLICIAL MILITAR EM SERVIÇO. Ainda que em serviço a vítima - policial militar, e não militar propriamente dito - a competência é da Justiça Comum. Interpretação sistemática e teleológica dos preceitos constitucionais e legais regedores da espécie. HC n° 72.022-6/PR, Rel. p/ acórdão Min. Marco Aurélio. DJ 28/04/95, RTJ 160/589. (grifos nossos)

A carta de MONIZ BARRETO a El-Rei de Portugal, datada de 1893, parece bastante atual e resume perfeitamente a profissão militar:

Senhor, umas casas existem, no vosso reino onde homens vivem em comum, comendo do mesmo alimento, dormindo em leitos iguais. De manhã, a um toque de corneta, se levantam para obedecer. De noite, a outro toque de corneta, se deitam obedecendo. Da vontade fizeram renúncia como da vida. Seu nome é sacrifício. Por ofício desprezam a morte e o sofrimento físico. Seus pecados mesmo são generosos, facilmente esplêndidos. A beleza de suas ações é tão grande que os poetas não se cansam de a celebrar. Quando eles passam juntos, fazendo barulho, os corações mais cansados sentem estremecer alguma coisa dentro de si. A gente conhece-os por militares...

Corações mesquinhos lançam-lhes em rosto o pão que comem; como se os cobres do pré pudessem pagar a liberdade e a vida. Publicistas de vista curta acham-nos caros demais, como se alguma coisa houvesse mais cara que a servidão. Eles, porém, calados, continuam guardando a Nação do estrangeiro e de si mesma. Pelo preço de sua sujeição, eles compram a liberdade para todos e os defendem da invasão estranha e do jugo das paixões. Se a força das coisas os impede agora de fazer em rigor tudo isto, algum dia o fizeram, algum dia o farão. E, desde hoje, é como se o fizessem. Porque, por definição, o homem da guerra é nobre. E quando ele se põe em marcha, à sua esquerda vai coragem, e à sua direita a disciplina.

Faz-se necessário esclarecer que a dissertação concentra-se na análise da prisão cautelar no âmbito das Forças Armadas, haja vista que a Marinha, o Exército e a Aeronáutica e as Forças Auxiliares (Polícias Militares Estaduais e Bombeiros Militares) regem-se por regulamentos próprios e distintos entre si, tendo as Forças Armadas tratamento próprio e específico, conforme se pôde verificar.


3 TRANSGRESSÃO DISCIPLINAR MILITAR E PUNIÇÃO DISCIPLINAR MILITAR

Ainda no caminho imaginado para deixar o leitor mais familiarizado com a vida militar, especialmente nas práticas relacionadas com o tema em análise, cumpre aprofundar mais nos institutos que, apesar de não serem exclusivos dos militares, no dia-a-dia dos quartéis ganham feição particularizada. Dessa forma se intenciona aclarar até mesmo aquele operador do direito que tenha pouco, ou nenhum, trato com a lide castrense.

Na esfera do Direito Administrativo, quando o agente público viola qualquer dever típico de sua condição, mormente relacionado com a hierarquia, diz-se que há um ato indisciplinar. Como resultado lógico da prática de falta ou infração disciplinar, há imperiosa necessidade da concretização de ato disciplinar, visando manter a boa ordem do serviço.

A possibilidade de punição administrativa por transgressões disciplinares está prevista no Estatuto dos Militares, regulamentada pela normatização disciplinar de cada Força Singular, com o fim de preservar a hierarquia e a disciplina nas Forças Armadas.

3.1 TRANSGRESSÃO DISCIPLINAR

Transgressão, do verbo transgredir, é a desobediência, o descumprimento, a infração, a violação de regra de conduta pré-estabelecida.

Como já foi dito, o militar das Forças Armadas deve se pautar pela observância da hierarquia e da disciplina. A inobservância desses preceitos e das normas que regem cada uma das Forças Singulares poderá configurar a prática de faltas administrativas denominadas transgressões disciplinares. Transgressão disciplinar é um atentado ao regulamento disciplinar de qualquer das três Forças Armadas. Ou seja, a transgressão disciplinar implica a violação de um dever funcional. Note-se que a transgressão disciplinar é instituto próprio e privativo da vida militar, o qual, entretanto, guarda semelhanças com a infração estatutária do servidor civil, pois ambos são espécie do gênero ato administrativo.

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O elenco de transgressões disciplinares está definido nos Regulamentos Disciplinares Militares, conforme a exigência do artigo 47 do Estatuto dos Militares:

Os regulamentos disciplinares das Forças Armadas especificarão e classificarão as contravenções ou transgressões disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude e aplicação das penas militares, à classificação do comportamento militar e à interposição de recursos contra as penas disciplinares.

E, cada força singular tem o seu respectivo regulamento, onde se delineiam as diferentes sanções disciplinares e modos de aplicação.

O Regulamento Disciplinar do Exército (RDE), aprovado Decreto nº 4.326, de 26 de agosto de 2002, que revogou o decreto nº 90.608, de 04 de dezembro de 1984 (antigo RDE), conceitua transgressão disciplinar como "toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensiva à ética, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou, ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe" (art. 14), desde que a conduta praticada não esteja tipificada em lei como crime ou contravenção penal, casos em que não se caracterizará transgressão disciplinar (§ 1º). E acrescenta no seu art. 15: "São transgressões disciplinares todas as ações especificadas no anexo I desse regulamento".

O Regulamento Disciplinar da Marinha (RDMAR), baixado pelo Decreto nº 88.545, de 26 de julho de 1983, com alterações inseridas pelo Decreto nº 1.011/93, chama a transgressão disciplinar de "Contravenção Disciplinar", definindo-a como: "Toda ação ou omissão contrária às obrigações ou deveres militares estatuídos nas leis, nos regulamentos, nas normas e nas disposições em vigor que fundamentam a organização militar, desde que não incidindo no que é capitulado pelo Código Penal Militar como crime" (art.6º).

O Regulamento Disciplinar da Aeronáutica (RDAER), aprovado pelo Decreto nº 76.322, de 22 de setembro de 1975, denomina transgressão disciplinar "toda ação ou omissão contrária ao dever militar, e como tal classificado nos termos do presente Regulamento. Distingue-se do crime militar que é ofensa mais grave a esse mesmo dever, segundo o preceituado na legislação penal militar." (Art. 8º).

Tais regulamentos trazem uma relação do que consideram transgressão disciplinar: o RDE com 113, o RDMAR com 121 e o RDAER com 100. Todavia, o RDAER (no Art. 10, parágrafo único) e o RDMAR (do Art. 7, parágrafo único) acrescentam que também consideram transgressão (ou contravenção) disciplinar militar:

... todas as ações ou omissões, não especificadas na relação, nem qualificadas como crime nas leis penais brasileiras, que afetam a honra pessoal, o pundonor militar, o decoro da classe e outras prescrições estabelecidas no Estatuto dos Militares, leis e regulamentos, bem como aquelas praticadas contra normas e ordens de serviços, emanadas de autoridade competente.

O Decreto nº 90.608, de 04 de dezembro de 1984 (antigo RDE) trazia, no item 2 do art. 13, a mesma previsão acima transcrita. O novo texto regulamentar manteve, no caput do art. 14, mutatis mutantis, o mesmo espírito da norma anterior, embora com nova roupagem, por não mais contar, em sua previsão, as ações negativas (omissões). São as chamadas transgressões disciplinares atípicas ou inespecíficadas. Ou seja, aquelas que não permitem ao destinatário compreender a exata descrição das condutas transgressionais. Nessas infrações, o conteúdo do ilícito acaba por ser preenchido pelo aplicador da norma.

Na opinião de ROSA (2001, p. 35) "As normas desta espécie previstas nos regulamentos disciplinares castrenses são inconstitucionais, pois permitem a existência do livre arbítrio, que pode levar ao abuso e excesso de poder" (grifos no original). Esse entendimento é partilhado por PAIXÃO (2001, p. 27) uma vez que "Tais dispositivos são incompatíveis com o disposto no caput do art. 37 da Constituição Federal". No mesmo sentido entende MARTINS (1996, p. 74):

Definir a transgressão disciplinar consiste, portanto, no imperativo de estruturar com clareza as condutas transgressionais de sorte que possam ser, de imediato, compreendidas por seus destinatários, evitando-se assim, a combinação de limites transgressionais demasiadamente dilatados. Desse modo, não se concebe que o administrador seja transformado em legislador, criando figuras típicas segundo seu prazer ou ódio, deixando em insegurança jurídica o administrado que a qualquer momento Pode ser punido pelo mero capricho do detentor do direito disciplinar.

No caso específico da Administração Militar, as ditas transgressões disciplinares atípicas referem-se a regramento que busca preservar, em última instância, a moralidade, princípio resguardado pelo art 37 da Constituição Federal. Também protegem os pilares das Forças Armadas (hierarquia e disciplina), princípios igualmente ancorados na Carta Magna (art 142), pois identificam como transgressão os atos que:

a) "afetam a honra pessoal, o pundonor militar, o decoro da classe"; e

b) afetam ou vão de encontro a outras prescrições, normas e ordens emanadas de autoridade competente, quer sejam estabelecidas no Estatuto dos Militares, leis e regulamentos, ou por outra forma, desde que prescrita ou não defesa em lei.

Afirmar-se que a norma disciplinar atípica se constitui em oportunidade para arbitrariedades é negar a necessidade e a utilidade dos atos administrativos discricionários. Além do mais, nos atos discricionários a conduta de quem os pratica há de ser legítima, isto é, conforme as opções permitidas em lei e as exigências do bem comum. Infringindo as normas legais, ou relegando os princípios básicos da Administração, ou ultrapassando a competência, ou se desviando da finalidade institucional, o agente público vicia o ato de ilegitimidade e o expõe a anulação pela própria Administração ou pelo Judiciário. No entender de NETO (1993, p. 26):

... o ilícito disciplinar, não está sujeito ao princípio da legalidade, pois seus dispositivos são até imprecisos, flexíveis, permitindo à autoridade militar maior discricionarismo no apreciar o comportamento do subordinado, a fim de melhor atender os princípios de oportunidade e conveniência da sanção a ser aplicada inspirada não só no interesse da disciplina, como também administrativo.

Interessante verificar que a corrente majoritária, constituída por doutrinadores "de peso", entende que mesmo no sistema punitivo administrativo dos Agentes da Administração civis, na descrição das condutas reprovadas, não se faz necessária a adoção de um maior grau de precisão, típico das normas penais. As normas que caracterizam as condutas ensejadoras dos ilícitos administrativos podem ser atípicas. São os ensinamentos do douto jurista CARVALHO FILHO (2003, p. 582-583):

... o sistema punitivo na esfera administrativa é bem diferente do que existe no plano criminal. Neste, as condutas são tipificadas, de modo que a lei cominará uma sanção específica para a conduta que a ela estiver vinculada. Assim, o crime de lesões corporais simples enseja uma sanção especifica: a de detenção de três meses a um ano (art. 129, CP). Na esfera administrativa, o regime é diverso, pois que as condutas não têm a precisa definição que ocorre no campo penal, como bem adverte MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO. Os estatutos funcionais apresentam um elenco de deveres e vedações para os servidores, e o ilícito administrativo vai configurar-se exatamente quando tais deveres e vedações são inobservados. Além do mais, os estatutos relacionam as penalidades administrativas, sem, contudo, fixar qualquer elo de ligação a priori com a conduta. Deflui dessa circunstância que o sistema punitivo na Administração deverá atender a princípios específicos para a regular aplicação das sanções. Um deles é o princípio da adequação punitiva (ou da proporcionalidade), pelo qual se incumbe certa margem de discricionariedade para compatibilizar a conduta e a sanção.

Nesse sentido, traz-se, à guisa de exemplo, a Lei nº 8.112/90, a qual enumera os deveres do Agente da Administração no art. 116, as proibições no art. 117 e as penalidades no art. 127. As condutas infracionais, entretanto, não têm estrita precisão como se pode constatar:

Art. 116. São deveres do servidor:

I - exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo;

II - ser leal às instituições a que servir;

III - observar as normas legais e regulamentares;

IV - cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais;

V - atender com presteza:

a) ao público em geral, prestando as informações requeridas, ressalvadas as protegidas por sigilo;

b) à expedição de certidões requeridas para defesa de direito ou esclarecimento de situações de interesse pessoal;

c) às requisições para a defesa da Fazenda Pública.

VI - levar ao conhecimento da autoridade superior as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo;

VII - zelar pela economia do material e a conservação do patrimônio público;

VIII - guardar sigilo sobre assunto da repartição;

IX - manter conduta compatível com a moralidade administrativa;

X - ser assíduo e pontual ao serviço;

XI - tratar com urbanidade as pessoas;

XII - representar contra ilegalidade, omissão ou abuso de poder.

Conclui-se, portanto, ser o melhor entendimento o de que: "Não se aplica ao poder disciplinar o princípio da pena específica que a domina inteiramente o Direito Criminal comum, ao afirmar a inexistência da infração sem prévia lei que a defina e apena: ´nullum criemen, nulla poena sine lege’. Esse princípio não vigora em matéria disciplinar", conforme ensina peremptoriamente MEIRELLES (1996, p.109).

3.2 CONSTITUCIONALIDADE DOS REGULAMENTOS DISCIPLINARES MILITARES

Nesse ponto, parece importante e sensato abrir parênteses para alertar sobre acalorada discussão, entre nos estudiosos do Direito Disciplinar Militar, em torno da constitucionalidade dos regulamentos disciplinares militares.

Alega-se que tais normas ferem o princípio da reserva legal, opondo-se violentamente ao disposto no inciso LXI do artigo 5º da Carta Magna: "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei" (grifos nossos).

Os que clamam pela inconstitucionalidade dos regulamentos disciplinares afirmam que não há como prosperar, o argumento que entende a expressão definidos em lei como forma genérica, de maneira a abranger outros instrumentos legiferantes. Conforme vaticina José Afonso da Silva (1999, p. 423):

é absoluta a reserva constitucional de lei quando a disciplina da matéria é reservada pela Constituição à lei, com exclusão, portanto, de qualquer outra fonte infralegal, o que ocorre quando ela emprega fórmulas como: a lei regulará, a lei disporá, a lei complementar organizará, a lei criará, a lei definirá, etc. (grifos nossos)

Operou-se, na hipótese levantada por essa corrente, a não recepção do artigo 47 da Lei nº 6.880/80, quando da entrada em vigor da Constituição Cidadã. Porquanto, ao possibilitar a definição, através de decreto regulamentar, dos casos de medidas restritivas de liberdade de ir e vir, como punição administrativa por transgressão militar, não restou o citado dispositivo legal recepcionado pelo novo ordenamento constitucional, pois que incompatível com o disposto em seu artigo 5º, LXI. Nesse sentido colecionamos a seguinte jurisprudência:

PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. UNIÃO. ILEGITIMIDADE RECURSAL. SANÇÃO DISCIPLINAR MILITAR. CF, ART. 142, § 2º. CABIMENTO DO WRIT PARA A ANÁLISE DA LEGALIDADE DA PUNIÇÃO ADMINISTRATIVA. DEFINIÇÃO DAS HIPÓTESES DE PRISÃO E DETENÇÃO DISCIPLINARES. RESERVA LEGAL. CF, ART. 5º, XLI. NÃO-RECEPÇÃO DO ART. 47 DA LEI Nº 6.880/80. ILEGALIDADE DO ART. 24, IV E V, DO DECRETO Nº 4.346/02.

1. A União carece de legitimidade para interpor recurso contra sentença concessiva de ordem de habeas corpus, porquanto, em matéria penal e processual penal, o interesse público é resguardado através da atuação do Ministério Público Federal. Precedentes.

2. As sanções de detenção e prisão disciplinares, por restringirem o direito de locomoção do militar, somente podem ser validamente definidas através de lei stricto sensu (CF, art. 5º, LXI), consistindo a adoção da reserva legal em uma garantia para o castrense, na medida que impede o abuso e o arbítrio da Administração Pública na imposição de tais reprimendas.

3. Ao possibilitar a definição dos casos de prisão e detenção disciplinares por transgressão militar através de decreto regulamentar a ser expedido pelo Chefe do Poder Executivo, o art. 47 da Lei nº 6.880/80 restou revogado pelo novo ordenamento constitucional, pois que incompatível com o disposto no art. 5º, LXI. Conseqüentemente, o fato de o Presidente da República ter promulgado o Decreto nº 4.346/02 (Regulamento Disciplinar do Exército) com fundamento em norma legal não-recepcionada pela Carta Cidadã viciou o plano da validade de toda e qualquer disposição regulamentar contida no mesmo pertinente à aplicação das referidas penalidades, notadamente os incisos IV e V de seu art. 24. Inocorrência de repristinação dos preceitos do Decreto nº 90.604/84 (ADCT, art. 25). (Recurso Criminal em Sentido Estrito nº 2004.71.02.008512-4/RS. RELATOR : Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz. Acórdão Publicado no D.J.U. de 23/08/2006) – (grifos nossos)

Uma segunda corrente entende que os regulamentos disciplinares das Forças Armadas foram recepcionados pela Carta Magna. Nessa hipótese, a nova Ordem Constitucional deu força de lei aos regulamentos disciplinares consoante ensinamento de TEMER (1993, p. 38):

A ordem constitucional nova, é incompatível com a ordem constitucional antiga. Aquela revoga esta.

Entretanto, não há necessidade de nova produção legislativa infraconstitucional.

A Constituição nova recebe a ordem normativa que surgiu sob o império de Constituições anteriores se com ela forem compatíveis.

É o fenômeno da recepção, que se destina a a dar continuidade às relações sociais sem a necessidade de nova, custosa, difícil e quase impossível manifestação legislativa ordinária. Ressalte-se, porém, que a nova ordem constitucional recepciona os instrumentos normativos anteriores dando-lhes novo fundamento de validade e, muitas vezes, nova roupagem.

Explica-se com o advento da nova Constituição, a ordem normativa anterior, comum, perde seu antigo fundamento de validade para, em face da recepção, ganhar novo suporte. Da mesma forma, aquela legislação, ao ser recebida, ganha a natureza que a Constituição nova atribuiu a atos regentes de certas matérias. Assim, leis anteriores tidas por ordinárias podem passar a complementares; decretos-leis podem passar a ter a natureza de leis ordinárias; decretos podem obter características de leis ordinárias. (grifos nossos)

A questão é mais bem explicada pelo Parquet Federal ao analisar o habeas corpus 2003.510900972-0 da Vara Federal de Resende/RJ, que questiona a inconstitucionalidade de prisão disciplinar tendo por base o Regulamento Disciplinar do Exército (RDE):

Havendo sintonia no plano material, a recepção se dá, mas a norma recebida somente pode ser alterada pela via admitida na nova Constituição. Examine-se, por exemplo, o famoso caso do Código Tributário Nacional. Materialmente compatível com a Constituição de 1988, ao menos numa análise global, foi por ela recebido. Entretanto, como o artigo 146 da Carta Magna deixou claro que as normas gerais de direito tributário devem ser produzidas pela via da lei complementar, aquele Código, embora originariamente editado como lei ordinária, ganhou força de lei complementar, na medida em que somente por ela pode ser alterado.

Na supracitada ação penal, o suplicante do remédio heróico requer o reconhecimento incidental da inconstitucionalidade do Regulamento disciplinar do Exército. Conclui o habeas corpus já citado (tratando do Decreto Federal 4.346/02 que autorizou o novo RDE):

"...recepcionado pela Constituição de 1988, não poderia jamais ter sido revogado pelo Decreto nº 4.346/02 na parte relativa à prisão e à detenção disciplinares, por ter sido a previsão de tais medidas limitada à estrita reserva da lei. Tudo isso fica ainda muito mais evidente quando se atenta para o disposto no artigo 25 do novo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:

Art. 25. Ficam revogados,a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a Órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a:

I – ação normativa;

Portanto, segundo essa corrente, os regulamentos disciplinares das Forças Armadas foram recepcionados pela Constituição de 1988, tendo sido alçados à condição de lei ordinária, só podendo ser modificados por outra lei ordinária. Como o Regulamento Disciplinar do Exército foi modificado por Decreto Presidencial (Decreto Federal 4.346/02) seria inconstitucional. Manter-se-ia a constitucionalidade dos regulamentos disciplinares das outras duas Forças Singulares, que não foram modificados após 1988.

Muito embora não seja tema deste trabalho e a contenda passar ao largo de nosso assunto, não sendo objeto de estudo aprofundado, entende-se, como melhor exegese, que não há que se falar em inconstitucionalidade dos regulamentos disciplinares militares, nem de não-receptividade da Lei nº 6.880/80 pela Constituição Federal de 1988. Consoante o Superior Tribunal de Justiça já decidiu, por meio de sua 7ª Turma, "As sanções de cunho disciplinar aplicáveis aos servidores públicos militares estão definidas na Lei nº 6.880/80, a qual foi recepcionada pela atual Constituição (art. 5º, inc. LXI), tendo o Decreto nº 4.346/02 tão-somente se limitado a especificá-las" (grifos nossos) (RCCR nº 2004.71.03.003370-4/RS, Relatora Desembargadora Federal Maria de Fátima Freitas Labarrère, DJU, ed. 10-08-2005). Tal posicionamento foi igualmente adotado em julgados de outros Tribunais Regionais Federais, a conferir:

CONSTITUCIONAL. MILITAR. HABEAS CORPUS. TRANSGRESSÃO MILITAR. PENSÃO. LEGALIDADE.

(...) - As sanções previstas para a transgressão disciplinar estão definidas na Lei nº 6.880, a teor do artigo 5º, LXI, da Constituição Federal, limitando-se o Decreto nº 4.346/2002 somente a especificá-las.

- A rigorosa disciplina e observância à hierarquia militar, tuteladas pela própria Constituição Federal, impõem que se aplique o regulamento disciplinar existente, sob pena de se desestruturar o sistema organizacional das Forças Armadas. (RCHC nº 2003.51.09.0011611/RJ, TRF-2ª Região, rel. Des. Federal Paulo do Espírito Santo, DJU, ed. 26-10-2004, p. 153)

PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. MILITAR. PUNIÇÃO DISCIPLINAR. DECRETO Nº 4.346/02. CONSTITUCIONALIDADE.

I - Não é inconstitucional o Decreto 4.346/02 que embasou punição disciplinar aplicada a militar. Precedentes do STF e do STJ.

II - Recurso provido. (REOHC nº 2004.31.000012792, TRF-1ª Região, rel. Des. Federal Cândido Ribeiro, DJU, ed. 29-04-2005, p. 16)

O Ministro Marco Aurélio em seu voto na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3340-9, a qual buscava a declaração de inconstitucionalidade, pelo controle concentrado, do Regulamento Disciplinar do Exército e seu Anexo I, adotou idêntica posição:

EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o Decreto no 4.346/2002 e seu Anexo I, que estabelecem o Regulamento Disciplinar do Exército Brasileiro e versam sobre as transgressões disciplinares. 2. Alegada violação ao art. 5o, LXI, da Constituição Federal. 3. Voto vencido (Rel. Min. Marco Aurélio): a expressão ("definidos em lei") contida no art. 5º, LXI, refere-se propriamente a crimes militares. 4. A Lei no 6.880/1980 que dispõe sobre o Estatuto dos Militares, no seu art. 47, delegou ao Chefe do Poder Executivo a competência para regulamentar transgressões militares. Lei recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Improcedência da presente ação. 5. Voto vencedor (divergência iniciada pelo Min. Gilmar Mendes): cabe ao requerente demonstrar, no mérito, cada um dos casos de violação. Incabível a análise tão-somente do vício formal alegado a partir da formulação vaga contida na ADI. 6. Ausência de exatidão na formulação da ADI quanto às disposições e normas violadoras deste regime de reserva legal estrita. 7. Dada a ausência de indicação pelo decreto e, sobretudo, pelo Anexo, penalidade específica para as transgressões (a serem graduadas, no caso concreto) não é possível cotejar eventuais vícios de constitucionalidade com relação a cada uma de suas disposições. Ainda que as infrações estivessem enunciadas na lei, estas deveriam ser devidamente atacadas na inicial. 8. Não conhecimento da ADI na forma do artigo 3º da Lei no 9.868/1999. 9. Ação Direta de Inconstitucionalidade não-conhecida. (grifos nossos)

Como se viu, os decretos que editam os regulamentos disciplinares das Forças Armadas regulamentam dispositivo de uma lei específica: o Estatuto dos Militares, que é lei stricto sensu, como comanda a Lei Maior, mais especificamente em seu art. 47. Os regulamentos disciplinares militares somente especificam e regulamentam o art. 47 do Estatuto dos Militares. Tais decretos de execução (os regulamentos disciplinares), não foram alçados à condição de lei ordinária e são editados pelo Comandante Supremo das Forças Armadas, o Presidente da República, com fulcro no art. 84, inciso VI, letra a, c/c o inciso XIII da Constituição Federal.

Evidentemente, a prática de ato incompatível com a função militar pode implicar a aplicação de punição administrativa militar. Por certo, a declaração de nulidade dos regulamentos disciplinares militares resultaria grave ameaça a disciplina e a hierarquia das Forças Armadas. Fulminaria de morte e de forma irreversível todo o sistema existente. ASSIS (2009, p. 108) corrobora esse pensamento, ao afirmar que:

Um dos instrumentos para salvaguardar as instituições militares e zelar pela regularidade de suas importantes funções constitucionais é, sem sombra de dúvida o regulamento disciplinar, o qual, se declarar inconstitucional, deixará a Força Militar desarmada, sem ter como manter a disciplina e a hierarquia (princípios constitucionais). Aliás, os defensores da inconstitucionalidade do atual Regulamento Disciplinar do Exército não aludem qual seria a maneira de se manter a disciplina e a hierarquia sem o indispensável regulamento disciplinar.

A prevalência do interesse público, para garantir e preservar a segurança das relações jurídicas e sociais impõe, como melhor exegese jurídica, a recepção constitucional dos regulamentos disciplinares militares.

Por fim, frise-se que o desvio de percurso seguido, pareceu apropriado para o momento, pois a se prosperar a tese da inconstitucionalidade dos regulamentos disciplinares militares em face do ordenamento jurídico pátrio inaugurado pela Carta de 1988, padeceria o presente estudo pela perda de seu objeto. No mais, alguns dos pontos de vista apostos aqui, serão resgatados em momento oportuno.

3.3 DIFERENÇA ENTRE CRIME E TRANSGRESSÃO DISCIPLINAR

É custoso aos operadores do direito que têm pouco, ou nenhum, conhecimento da vida na caserna, entenderem a diferença entre as transgressões disciplinares militares e os crimes militares. Isso ocorre pois, ambos institutos são decorrentes de conduta humana ilícita pelo descumprimento de norma dos ordenamentos jurídicos próprios dos militares, transgredindo regras de hierarquia e disciplina. Mesmo os mais experientes, por vezes, se embatem em dúvidas e posições antagônicas ao interpretar o caso concreto.

O Estatuto dos Militares, em seu artigo 42, ao dispõe que "a violação das obrigações ou dos deveres militares constituirá crime, contravenção ou transgressão disciplinar, conforme dispuser a legislação ou regulamentação específicas".

A conceituação da transgressão disciplinar militar encontra-se nos regulamentos disciplinares das Forças Armadas, consoante foi visto em Seção anterior deste trabalho.

Já para se estabelecer o que são crimes militares faz-se necessário dissecar o artigo 9º do Código Penal Militar, conforme estabelece o art. 46. do Estatuto dos Militares: "O Código Penal Militar relaciona e classifica os crimes militares, em tempo de paz e em tempo de guerra, e dispõe sobre a aplicação aos militares das penas correspondentes aos crimes por eles cometidos". Trata-se do dispositivo legal que vai determinar se o crime é ou não militar. O Direito brasileiro adotou o critério legal ou ratione legis para determinar o que seriam crimes militares, submetendo esses à Justiça Militar. É o que determina o artigo 124 da Constituição da República: "À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei".

Para saber se a conduta é crime militar ou não, se faz necessária uma "dupla adequação". Em um primeiro momento deve-se realizar subsunção da conduta em um dos tipos penais previstos na Parte Especial do Código Penal Militar. Encontrado na Parte Especial do Código Penal Militar um tipo penal em que a conduta venha a se adequar perfeitamente, será necessário, no segundo momento, verificar se o caso concreto se amolda a uma das hipóteses contidas no artigo 9º do Código Penal Militar.

Na opinião de MARTINS (1996, p. 67), a distinção entre transgressão disciplinar militar e crime militar reside nas espécies de penas aplicadas a cada categoria e na importância do bem jurídico que se pretende tutelar, pois, ontologicamente, crime militar e transgressão disciplinar encerram violação do ordenamento jurídico.

CORRÊA (1991, p. 99) considera transgressão disciplinar militar e crime militar "violação dos preceitos da ética, dos deveres e das obrigações militares, aquela na sua manifestação elementar e simples, e este, na sua expressão complexa e acentuadamente anormal, definido e previsto em legislação penal militar". O autor também aponta diferenças entre os dois institutos:

a) O crime militar pressupõe a violação de uma norma legal, a transgressão disciplinar militar pode constituir-se pela inobservância de disposição regulamentar ou de ordem superior de caráter geral.

b) na transgressão disciplinar não se cogita de reserva legal, assim como ocorre com o crime militar.

c) Só os militares podem cometer transgressão disciplinar, ao passo que qualquer cidadão pode perpetrar um crime militar.

ROMEIRO (1994, p. 10) também busca estabelecer critérios objetivos de distinção entre o crime militar e a transgressão disciplinar militar:

a) O crime militar é previsto em lei como fato típico, com pena específica e irrevogável, a transgressão disciplinar o é genericamente, quer quanto ao fato [...], quer quanto à sanção, revogável e eleita discricionariamente pelos chefes militares dentro de um elenco delas.

b) Só jurisdicionalmente, isto é, através de decisão dos tribunais da justiça militar, com trânsito em julgado, pode ser punido o crime militar, cuja prática não é exclusiva dos militares; enquanto a falta disciplinar militar é privativa deles e sancionada pelo poder disciplinar dos chefes militares.

c) O crime militar resulta exclusivamente da lei federal, a falta disciplinar também de Decretos e Regulamentos do Poder Executivo.

Em virtude da já assinalada cambiante linha divisória entre o crime militar e a transgressão disciplinar, não há cumulação das respectivas sanções, em se tratando de um mesmo fato. É o que dispõe, adotando o princípio ne bis in idem nas relações do direito penal e disciplinar castrenses, o § 2º do art. 42 do Estatuto dos Militares (Lei n. 6.880/80, de 9/12/1980).

Em certos casos, poderá ocorrer a determinação dos dois institutos, coincidentemente, devido ao mesmo ato infracional praticado. Como se viu, anteriormente, uma conduta para ser considerada como crime militar deve estar definida no Código Penal Militar e, no mesmo entendimento, para ser considerada transgressão disciplinar deve estar prevista em Regulamento Disciplinar próprio. Nesses casos, somente poderá ser determinado se uma conduta infratora do dever militar configurou-se em transgressão disciplinar ou crime militar, de acordo com o caso concreto. A diferença entre o crime militar e a transgressão disciplinar estará gravada na intensidade do fato delituoso ocorrido, devendo ser observado que a punição da transgressão é de caráter preventivo, tendo assim a intenção de prevenir o acontecimento do crime militar.

Caso a interpretação ab initio seja considerar o ilícito como crime militar, a absolvição ou condenação no crime militar não determinará as conseqüências na esfera disciplinar militar, salvo se ficar provado que fato imputado ao réu não existiu, ou se o réu não é o seu autor do delito. Essa é a exegese que se faz da Súmula de nº 18 do Supremo Tribunal Federal, a qual estabelece que: "Pela falta residual não compreendida na absolvição criminal, é admissível a punição administrativa do servidor público".

De acordo com o entendimento externado nessa súmula, que evidentemente também se aplica ao Direito Penal Militar e às transgressões disciplinares militares, o fato que foi objeto de uma absolvição no juízo castrense pode, evidentemente, apresentar contornos que não ofendam o bem jurídico tutelado pela lei penal militar, mas que ofendem os preceitos da ética profissional dos militares, violando assim princípios da esfera administrativa militar. Nesse sentido:

EMENTA: Insubordinação - Delito previsto no art. 163 do CPM. - Não configuração do delito em face da ação incompatível do superior hierárquico em tratar mal subordinado e com rigor desnecessário. - A ação do réu subordinado, limitou-se a sair do recinto sem autorização do superior. - Tratamento ríspido, com injusta desconfiança de militar com histórico exemplar e portador de doença que o incapacitou definitivamente para o serviço. - Ausência de elemento subjetivo (dolo) configurador do delito de desobediência. - Matéria que não ultrapassa os limites da transgressão disciplinar, se for o caso. - Nega-se provimento ao recurso da acusação e mantém-se a sentença absolutória de primeira instância. - Decisão unânime. (Apelação FO nº 2003.01.049364-6-DF, STM, DJ 27/02/2004. Ministro Relator Carlos Alberto Marques Soares) (grifos nosos)

3.4 PUNIÇÃO DISCIPLINAR

Identificada a transgressão disciplinar fica o militar sujeito à correspondente sanção.

O ato disciplinar, também denominado, por alguns estudiosos, como ato punitivo, ato administrativo disciplinar ou ato administrativo punitivo, segundo MEIRELLES (1996, p. 170) "são os que contêm uma sanção imposta pela Administração àqueles que infringem disposições legais, regulamentares ou ordinárias dos bens ou serviços públicos". Mais à frente, o autor acrescenta que tais atos "Visam punir e reprimir as infrações administrativas ou a conduta irregular dos agentes públicos ou dos particulares perante a Administração".

A punição disciplinar, enquanto ato administrativo possuirá vigência, validade e eficácia quando contiver: outorga de autoridade competente, conteúdo, forma prescrita, finalidade e motivo.

A conceituação dos requisitos da punição disciplinar pode ser assim resumidos:

a) Competência - CARVALHO FILHO (2004, p. 86-89) define competência como sendo um "círculo, definido por lei, dentro do qual os agentes podem exercer livremente sua atividade". Assevera, ainda que a competência é inderrogável e improrrogável, entretanto pode ser objeto de delegação (transferência de funções, originariamente conferidas de um sujeito para outro, normalmente de plano hierarquicamente inferior, como ocorre, à guisa de exemplo, na previsão constitucional do art. 84, parágrafo único, da Carta Maior) ou avocação (órgão superior atrai para si a competência para cumprir determinado ato atribuído a outro inferior), consoante se aduz na análise do artigo 11 da Lei 9.784/99 (Lei do Procedimento Administrativo Federal): "a competência é irrenunciável e se exerce pelos órgãos administrativos a que foi atribuída como própria, salvo os casos de delegação e avocação legalmente admitidos". As autoridades competentes para impor penas disciplinares estão enumeradas de forma taxativa (numerus clausus) nos art. 19 do Regulamento Disciplinar da Marinha (RDMar), art. 42 do Regulamento Disciplinar da Aeronáutica (RDAER) e art. 10 do Regulamento Disciplinar do Exército (R-4 ou RDE).

b) Objeto - Segundo CARVALHO FILHO (2004, p. 90) o objeto, também chamado de conteúdo, "é a alteração no mundo jurídico que o ato administrativo se propõe realizar". O objeto deve ser lícito (de acordo com a lei), possível (realizável no mundo fático e jurídico), certo (definido quanto ao destinatário, aos efeitos, ao lugar e ao tempo) e moral (correspondente aos padrões comuns de comportamento aceitos como corretos, justos e éticos). O objeto do ato disciplinar se confunde com a pena administrativa imposta. As sanções (punições) que podem ser aplicadas em contrapartida de transgressão disciplinar constam nos art. 14 do Regulamento Disciplinar da Marinha (RDMar), art. 15 e 25 do Regulamento Disciplinar da Aeronáutica (RDAER) e art. 23 do Regulamento Disciplinar do Exército (R-4 ou RDE). Merece registro e reflexão a forma diferenciada como a três Forças adotam as sanções privativas da liberdade aplicáveis aos seus respectivos militares. Enquanto no Exército e na Aeronáutica as punições disciplinares de detenção e prisão não podem ultrapassar trinta dias e a de impedimento disciplinar (apenas no RDE) dez dias (parágrafo único do art. 24), na Marinha a forma de cerceamento da liberdade fica limitada a 10 (dez) dias, seja para prisão simples ou rigorosa, e o impedimento pode chegar a 30 (trinta) dias.

c) Forma - Como anotado por CARVALHO FILHO (2004, p. 91), forma "é o meio pelo qual se exterioriza a vontade administrativa". Para ser válida, a forma do ato deve compatibilizar-se com o que, expressamente, dispõe a lei (ou ato jurídico equivalente). O regulamento disciplinar de cada Força Singular traz as formalidades de processamento da apuração da transgressão e da aplicação da sanção disciplinar. Em regra, a forma é escrita, porém a Lei 9.784/99, consagra, em seu art. 22, o informalismo do ato administrativo.

d) Finalidade - A finalidade do ato, por sua vez, é sempre atender ao interesse público, conforme definido em lei, sendo ilícito ao Administrador Público desviar a finalidade do ato para alcançar interesses distintos daqueles inerentes ao ato que se pratica. A finalidade é o resultado que a Administração quer alcançar com a prática do ato. Conforme Marcos José da Costa apud ASSIS (2009, p. 127), na sanção disciplinar militar

... há um escopo de cunho retributivo ao sujeito ativo do ato transgressional; outro de caráter preventivo individual, visando coibir que o sujeito ativo não mais cometa tal ilícito administrativo; preventivo coletivo (interna corporis), com o intuito de evitar a sensação de impunidade aos demais, coibindo a prática de atos ilícitos por outros militares, e, por fim, o princípio maior (finalístico) a reeducação. (grifos nossos)

e) Motivo - Para DI PIETRO (2005, p. 203), o motivo é o pressuposto de direito (dispositivo legal em que se baseia o ato) e o de fato (corresponde ao conjunto de circunstâncias, de acontecimentos, de situações que levam a administração a praticar o ato) e que serve de fundamento ao ato administrativo. A ausência de motivo, ou a indicação de motivo falso, invalidam o ato administrativo. No ato de punição de militar, o motivo é a infração prevista em lei que ele praticou, ou seja, são as razões de fato e de direito que ensejam a aplicação da punição disciplinar.

A punição disciplinar, assim como todo ato administrativo, tem presunção de legalidade e legitimidade. Legal e legítimo não são as mesmas coisas, não expressam o mesmo significado. Os dois são de extrema importância para o Direito Administrativo, pois dá ao ato administrativo essa presunção de ser lícito e legitimo, de atender o direito positivo e o interesse coletivo. É presunção iuris tantun, ou seja, até provem o contrário. Presume-se que o que vem do Poder Público, respeitou a lei.

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Sobre o autor
Márcio Dantas Avelino Leite

Oficial de Artilharia do Exército Brasileiro, Graduado na Academia Militar das Agulhas Negras , Bacharel em Direito pela Universidade Tuiuti do Paraná , Mestre em Operações Militares pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais do Exército (2003), Especialista em Coordenação Pedagogica pelo Centro de Estudos de Pessoal do Exército , Especialista em Direito Militar pela Universidade Castelo Branco.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Márcio Dantas Avelino. Detenção e prisão disciplinar cautelar nas Forças Armadas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2903, 13 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19363. Acesso em: 18 abr. 2024.

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Orientador: Professor João Rodrigues Arruda

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