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Eutanásia

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V - EUTANÁSIA E SEUS DIVERSOS ASPECTOS

Como já foi dito anteriormente, a eutanásia é tema extremamente complexo, uma vez que envolve aspectos os mais variados. Torna-se necessário analisarmos tais aspectos antes de partirmos para o confronto entre partidários e contrários à eutanásia.

O primeiro desses aspectos é a VIDA. A eutanásia põe em jogo o bem maior que tem o homem e que é a VIDA. Mas o que é a VIDA?

São incontáveis os conceitos de vida; todos os ramos do conhecimento humano já deram a sua contribuição para constituir esse conceito. A Medicina crê que enquanto funcionarem os sistemas nervoso e circulatório há vida. Galeno dizia: viver é respirar. Não são pacíficos os conceitos de vida.

É de se indagar se a vida é um bem individual ou social. Aqueles que entendem ser um bem individual, geralmente partidários da eutanásia, afirmam que o homem tem o direito de dispor de sua própria vida, sendo legal, portanto, o pedido a outrem para que a extermine. Outros, ao contrário, asseveram que a vida é bem social, e por isso mesmo indisponível. Usam tal contra-argumento para respaldar suas teses de que o consentimento do doente não pode constituir uma causa justificativa.

Demais aspectos inerentes ao conceito de eutanásia e que não se constituem pontos precisos, como a dor, a incurabilidade da doença e a inevitabilidade da morte, abordaremos a seguir ao analisarmos o entrosamento da Medicina com a questão em tela.

1. Eutanásia e Medicina

A eutanásia é principalmente um problema médico, tendo em vista envolver temas centrais da dor humana, da incurabilidade da doença ou da inevitabilidade da morte, exigindo a necessidade de certeza do diagnóstico.

Questão da dor é muito argüida por aqueles que são contrários à eutanásia, isto porque a dor, segundo Asúa, é um fato psicológico eminentemente subjetivo. Não há instrumento nem teste que possa medir ou mesmo atestar o estágio de dor pelo qual uma pessoa passa. Além disso, há pessoas que, tendo conseguido um forte autocontrole da mente, suportam dores as mais atrozes, enquanto enfermos leves clamam aos gritos alegando sofrimentos que, geralmente, são tolerados sem grandes esforços.

Como se observa, a questão da dor é bastante relativa, variando de pessoa a pessoa, e impossível de se precisar com exatidão. É oportuno lembrar que a medicina, de tempo em tempo, nos apresenta os mais modernos recursos e as mais recentes descobertas capazes de atenuar o sofrimento de pacientes desesperados.

A incurabilidade da moléstia é um dos conceitos mais duvidosos. O homem alcançou um grau tão elevado de desenvolvimento científico que é quase impossível crer-se na incurabilidade de uma doença. Lembremos de épocas passadas em que inúmeras pessoas foram dizimadas por doenças como difteria, tifo, tuberculose, entre outras, e logo depois cientistas descobriram a cura dessas doenças. Hoje, para muitos tipos de câncer os médicos têm aplicado tratamentos satisfatórios.

Genival Veloso de França, médico legista, num trabalho sobre a eutanásia, citou como exemplo o caso (ocorrido na Idade Média) de um médico que vendo a filha de cinco anos acometida de difteria, sofrendo dores atrozes e já tendo ele percorrido as maiores autoridades médicas sem nenhum resultado, ministrou-lhe uma substância que a matou durante o sono. No dia seguinte, esse médico recebeu um telegrama de outro médico amigo comunicando-lhe que ROUX descobrira naquela manhã uma vacina contra a difteria.

Afirma Asúa que todos estamos condenados à morte em prazo desconhecido, porém certo. Prolongar a vida é vivê-la. Então, por que renunciar a um período de existência prolongada, que a medicina pode proporcionar? Tais argumentos o ilustre penalista espanhol contrapõe aos partidários da eutanásia.

Grande parte dos médicos e cientistas ligados à medicina é contrária à eutanásia, alegando o compromisso da medicina com a VIDA, sendo, portanto, incompatível a prática da eutanásia.

O Vaticano criticou a legalização da eutanásia na Holanda e, para o representante do Papa, "essa lei contradiz a declaração de Genebra de 1948 da associação mundial de médicos, assim como os princípios éticos médicos aprovados por 12 países da Comunidade Européia em 1987".

O porta-voz do Vaticano, Joaquim Navarro Valls, prevê que "o primeiro problema que gera a legalização da eutanásia tem a ver com a consciência dos médicos".

2. Eutanásia e Direito

Em relação ao aspecto jurídico do problema, convém fazer-se uma breve retrospectiva a fim de examinarmos o tratamento que a lei tem dado à eutanásia, em alguns países e em determinadas épocas.

1903 - Na Alemanha tentou-se legitimar a eutanásia no Parlamento da Saxônia, que a repudiou.

1922 - Num Comitê Municipal da Inglaterra foi apresentada uma moção propondo que o Parlamento aprovasse um projeto de lei que criaria um tribunal médico com autoridade e poder para apressar o fim rápido e calmo daqueles que sofriam de mal incurável.

1925 - O projeto tcheco de Código Penal preceituava a eutanásia atribuindo ao Tribunal a faculdade de atenuar excepcionalmente a pena ou eximir o castigo.

1992 – No caso de doença incurável ou de grave acidente, os dinamarqueses podem fazer um "testamento médico".

1993 e 1994 – A Justiça da Grã-Bretanha autorizou médicos a abreviarem a vida de doentes mantidos artificialmente.

1994 – O Estado do Oregon (USA) autoriza a eutanásia para doentes declarados em fase terminal e que fazem o pedido formalmente a um tribunal do Estado. Mas nunca foi aplicado.

1996 – O tribunal federal de apelações de New York, que tem competência em Vermont e Connecticut, autorizou a eutanásia médica.

1996 – Na Escócia, pela primeira vez, uma paciente foi autorizada a morrer.

1997 – A Corte Constitucional da Colômbia admitiu a prática da eutanásia para doentes em fase terminal.

1998 – O governo da China autorizou os hospitais a praticarem a eutanásia em pacientes terminais de doença incurável.

2000 – A Holanda é o primeiro país a autorizar oficialmente a prática da eutanásia. A nova legislação permite aos médicos recorrerem à eutanásia em condições muito restritas. O enfermo deve estar sem qualquer esperança de sobrevivência e desejar pôr fim a sua vida.

Algumas leis penais contemplaram com a impunidade a prática da eutanásia. São exemplos:

a) o Código Penal Soviético (1922), que isenta de pena o homicídio cometido por compaixão, a pedido de quem é morto.

b) o Código Penal Peruano (1942) estabelece que, sendo o homicídio guiado por móvel altruísta e de compaixão, a penalidade não recai sobre o autor.

Em geral, as leis penais têm-se ocupado da questão, quer estabelecendo a impunidade do autor do fato, quer atenuando-lhe a pena, quer fixando o perdão judicial.

No Brasil, o legislador não se referiu diretamente à eutanásia. Porém, o §1º do art. 121 do Código Penal atribui ao juiz a faculdade de diante do caso concreto atenuar a pena se o crime for cometido por motivo de relevante valor moral (homicídio privilegiado). Figura ainda no rol das circunstâncias que atenuam a pena (art. 65, inciso III, alínea "a").

Para o PAPA JOÃO PAULO II "nenhuma lei poderia jamais tornar lícito um ato intrinsecamente ilícito. Estas leis carecem de autêntica validade jurídica".


VI - DEBATE DOUTINÁRIO

Em verdade, há um medo coletivo da morte, associado à idéia da dor que comumente antecede os últimos instantes da vida. Todos consideram preferível a morte súbita, imprevista, a morte sem dor, sem sofrimento.

Uma das questões mais palpitantes é a de indagar-se se existe o direito de matar: será lícito alguém dispor da vida de outrem, pondo fim à existência deste? O direito penal admite a legítima defesa, o estado de necessidade e em alguns países, a pena de morte.

No rol dos que admitem o direito de matar incluem-se os partidários da eutanásia, que se apresenta, nos últimos tempos, um tema dos mais discutidos, empolgando, à luz de casos concretos e livros preciosos, a humanidade culta.

A eutanásia considerada como "direito de morrer sem dor" não deve ser confundida, juridicamente, com o verdadeiro direito de morrer, que constitui o suicídio. Neste, o sujeito do direito não pode ser punido, uma vez que deixa de existir, enquanto que, na eutanásia, ainda quando a pedido da vítima, é o seu autor perfeitamente punível.

O poder humano de dispor da própria vida tem sido contestado por juristas e filósofos eminentes.

Não é de hoje que a questão da eutanásia vem sendo debatida. Já vimos alguns dos seus principais aspectos, restando-nos agora verificar o enfoque da doutrina.

ENRICO MORSELLI publicou em 1923 um livro intitulado "A Morte Piedosa". Nele, Morselli acha duvidoso e inseguro o conceito de incurabilidade, considerando de pouco valor psicológico e jurídico o consentimento e a piedade. Repudia a eutanásia, dizendo: "uma humanidade verdadeiramente superior pensará em prevenir o delito e a enfermidade, não em reprimi-lo com sangue, nem em curar a dor com a morte".

GIUSEPPE DEL VECCHIO escreveu um artigo, em 1926, sustentando o consentimento para justificar o homicídio piedoso e, em 1928, publicou o livro "Morte Benéfica" (sob os aspectos éticos, religiosos, sociais e jurídicos), circunscrevendo os limites da eutanásia como "faculdade" do "agente eutanalista", diante dos casos sem cura e mediante "reiterado e indubitável pedido do agonizante" concluindo: "que aquele que, sob o pedido do moribundo, abrevia a este os sofrimentos de uma agonia física e psíquica atroz, executa uma ação que não constitui crime".

NÓVOA SANTOS, professor espanhol, publicou o livro "O Instinto da Morte", onde afirma, referindo-se à morte, que "o poder de desejá-la algum dia é o único tesouro que nos distancia do resto dos animais, porque, graças a ela, nos alegramos em toda grandeza que nos envolve e penetramos mais além das fronteiras de nossa existência individual. O homem é o único animal capaz de desejar a morte".

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ARIOSTO LICURZI defendeu calorosamente a eutanásia com argumentos lógicos, em seu livro "O Direito de Matar (Da Eutanásia à Pena de Morte)". Demonstra claramente seu ponto de vista nestas palavras: "a última vitória da Medicina - frente a sua impotência científica - quando é impossível triunfar sobre o mal incurável, será adormecer o agonizante na tranqüila sonolência medicamentosa que leva ao letargo e à morte total, suavemente. Será uma bem triste vitória, em verdade, porém, por seu conteúdo de altruísmo, sua profunda generosidade humana, chega a adquirir o valor das vitórias espirituais de uma religião".

JIMENEZ DE ASÚA, numa das mais importantes análises sobre o assunto, em sua obra "Libertad de Amar Y Derecho a Morir", refuta a impunidade da eutanásia, concordando, entretanto, com o perdão judicial.

BENTO DE FARIA não aceitava o homicídio eutanásico e já o dissera ao comentar o induzimento ao suicídio, após se pôr contra a eutanásia e eugenia: "seria absurdo e ilógico admitir o direito de matar quando a vida é protegida pela lei".

ANIBAL BRUNO, tecendo considerações acerca do consentimento do ofendido, afirma: "realmente se a lei incrimina o auxílio ao suicídio, com melhor razão punirá o matador, mesmo quando atua com o consentimento da vítima".

MAGALHÃES NORONHA, outro penalista brasileiro, também se manifesta contrário à eutanásia, aduzindo que não existe direito de matar, nem o de morrer, pois a vida tem função social. A missão da ciência, segundo o douto penalista, não é exterminar, mas lutar contra o extermínio.

ROBERTO LYRA, nos seus "Comentários ao Código Penal", mostra-se adversário da eutanásia argumentando ironicamente: "amanhã, ao lado do homicídio piedoso, viriam o contrabando piedoso, o rapto piedoso, o furto piedoso. Não dizem já os ladrões que aliviam suas vítimas? "

EVANDRO CORREA DE MENEZES em seu livro "Direito de Matar" coloca-se em posição favorável à eutanásia, defendendo a isenção de pena daquele que mata sob os auspícios da piedade ou consentimento. Discorda de Asúa, afirmando: "não nos basta o perdão judicial; queremos que a lei declare expressamente a admissão da eutanásia, que não seria um crime, mas, pelo contrário, um dever de humanidade".

NELSON HUNGRIA, talvez o mais fervoroso dentre os adversários da eutanásia no Brasil, prefaciando o livro "Direito de Matar" de Evandro Correa de Menezes, manifesta-se, de maneira brilhante, radicalmente contra a prática eutanásica. Afirma ele que o problema não suscita discussões jurídicas, devendo ser tratado, exclusivamente, como tema próprio dos estudos relativos à morbidez ou inferiorização do psiquismo, ou seja, na órbita da psicologia anormal. Refere-se o penalista à monografia "El Respecto A La Vida", publicada por Garcia Pintos, no qual repudiava a permissão da eutanásia, consagrada no Código Penal Uruguaio. Segundo Garcia Pintos, cuja opinião é ratificada por Nelson Hungria, o homicida eutanásico não tem por móvel, conforme se proclama, a piedade ou compaixão, mas o propósito, morbida ou anormalmente egoístico, de poupar-se ao pungente drama da dor alheia. Afirma Hungria: "a verdadeira, autêntica piedade, sentimento de equilibrado altruísmo, não mata jamais. O que arma o braço do executor da morte boa é o seu psiquismo anômalo". Seria o que Hungria chama de angústia paroxística, segundo o qual somente as pessoas sujeitas a estados superagudos de angústia são capazes do gesto eutanásico, que os alivia do próprio sofrimento diante do sofrimento de outrem. Hungria diz ainda que, analisado este aspecto, torna-se clara a falsidade da eutanásia "que, de elegante questão jurídica, reduz-se a um assunto de psiquiatras".

FERRI observa que o Estado não proíbe ao indivíduo dispor de sua própria pessoa, quando este elege uma profissão perigosa, como a de aviador, pára-quedista, mineiro, domador de feras, equilibrista, acrobata, etc.

IHERING fez a seguinte observação: "se a soma do mal físico ou moral que a vida traz supera a soma de suas alegrias ou de seus gozos, ela deixa de ser um bem e não é senão um fardo, e da mesma sorte que um homem larga um fardo tornado muito pesado para transportar, o egoísta se desembaraça da vida. O suicídio então se torna a inevitável conclusão do egoísmo".

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Sobre a autora
Sônia Maria Teixeira da Silva

advogada, consultora jurídica do Estado do Pará, professora de Direito Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Sônia Maria Teixeira. Eutanásia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 48, 1 dez. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1863. Acesso em: 24 abr. 2024.

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