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Candidatos obesos, concursos públicos e o peso da justiça

07/02/2011 às 14:59
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No dia 02/02/2011, acompanhamos, com perplexidade, o caso envolvendo a eliminação de candidatos a professores da rede pública do Estado de São Paulo, ocorrida durante a realização dos exames de saúde, e motivada pela obesidade que os acomete. Em síntese, referidos candidatos denunciaram que, no momento da avaliação de saúde, foram vetados pelo setor de perícias médicas responsável pelos exames, ao argumento de que a obesidade é oficialmente uma doença, e por isso os portadores desse mal não estariam aptos a integrar o funcionalismo público, em que pese terem demonstrado estar clinicamente saudáveis, através dos resultados de outros exames.

A questão acende, então, fértil discussão acerca da constitucionalidade da eliminação de candidatos a esse tipo de função, por motivo de obesidade.

Analisando as implicações jurídicas envolvendo o tema, é possível extrair alguns fundamentos jurídicos que permitem concluir que, no caso dos professores eliminados do certame, tal ato por parte do Poder Público encontra-se totalmente divorciado das diretrizes traçadas pelo Estado Democrático de Direito.

Investigando as bases constitucionais pertinentes ao tema, dispõe o art. 37, incisos I e II, da Constituição Federal:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

Da leitura do dispositivo e seus incisos, verifica-se que a Constituição Federal conferiu à lei a tarefa de regular o acesso aos cargos e empregos públicos. Coube à Lei nº. 8112/90 disciplinar o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, sendo que os requisitos básicos para a investidura em cargo público estão dispostos no art. 5º, e incisos, do diploma legal supra citado, a saber:

Art. 5o São requisitos básicos para investidura em cargo público:

I - a nacionalidade brasileira;

II - o gozo dos direitos políticos;

III - a quitação com as obrigações militares e eleitorais;

IV - o nível de escolaridade exigido para o exercício do cargo;

V - a idade mínima de dezoito anos;

VI - aptidão física e mental.

Das exigências legais acima, extrai-se que o legislador ordinário, cumprindo o comando constitucional, estabeleceu critérios objetivos para o ingresso no funcionalismo público, sendo que, em relação à aptidão física e mental (inciso VI), em homenagem aos princípios que regem nosso ordenamento constitucional, tal requisito deve ser avaliado de acordo com cada caso específico, isto é, observando-se a natureza da função a ser exercida pelo candidato eventualmente aprovado, de modo que não haja distorções na aplicação desse critério e, consequentemente injustiças para os candidatos.

Um dos traços de maior destaque nos concursos públicos é a garantia de igualdade entre os participantes do certame, sendo que somente a lei pode estabelecer restrições de acesso a determinados cargos, e, mesmo assim, só nos casos em que determinadas características inerentes ao candidato forem incompatíveis com a natureza da função a ser desempenhada. Tal decorre do princípio da isonomia, o qual está explícito no art. 5º, "caput" e implícito no art. 3º, IV, ambos da Constituição Federal, e que proíbe, consoante esse último preceptivo quaisquer formas de discriminação (grifei), expressão essa que adverte-nos que o rol de elementos discriminatórios rechaçados pela Constituição Federal não é exaustivo, mas meramente exemplificativo.

Nesse passo, cabe registrar a irretocável lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, no sentido de que "os concursos públicos devem dispensar tratamento impessoal e igualitário aos interessados. Sem isto ficariam fraudadas suas finalidades. Logo, são inválidas disposições capazes de desvirtuar a objetividade ou o controle destes certames" (Curso de Direito Administrativo, 11ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999, pág. 194).

Sendo assim, encontramos um dos fundamentos jurídicos a coibir tal prática por parte do Poder Público, na medida em que, no caso dos professores tolhidos do certame, a alegação de que são obesos não pode servir de óbice para a aprovaçào no concurso, na medida em que a atividade a ser por eles desempenhada é, preponderantemente, intelectual. Portanto, a atitude do Poder Público, data maxima venia, extrapola a órbita do interesse público e foge aos critérios objetivos de avaliação do candidato.

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A obesidade, em suas diversas causas, consoante a Classificação Internacional de Doenças (CID), de fato é considerada uma doença. Entretanto, se esse mal for considerado um óbice à ocupação dos cargos de professor da rede pública de ensino, também deverão ser inadmitidos no serviço público tantos quantos forem os portadores de outras doenças, tais como os portadores de doenças visuais (miopia, astigmatismo, hipermetropia etc.), os diabéticos, enfim, os portadores de diversos outros males que também são internacionalmente classificados como doenças. Nesse sentido, inclusive, deverão ser inadmitidos no serviço público os portadores de necessidades especiais, que hoje, inclusive, são cotistas em concursos públicos, por expressa determinação constitucional, expressa no art. 37, VIII da CF/88.

Ora, seria absurdo!

Nesse caso, a obesidade nada guarda relação com o desempenho das funções para as quais os candidatos prejudicados se inscreveram. Seria diferente se, por exemplo, estivessem participando de uma seleção para policial militar, oficial das forças armadas, bombeiro, enfim, profissões em que o primor físico é indispensável para o desempenho das respectivas atribuições. Aliás, sobre esse tema é interessante abrir um breve parêntese, pois nem mesmo essas corporações estão livres da obesidade, uma vez que é comum vermos pelas ruas policiais muito gordos, e sem qualquer condição de empreender eventual perseguição a quem se colocar em fuga.

Continuando nessa trilha, basta ligarmos nossos televisores nos noticiários para vermos nosso Congresso Nacional e Assembléias Legislativas abarrotados de parlamentares obesos; basta darmos uma volta pelos fóruns e tribunais brasileiros para encontrar juízes, promotores, procuradores públicos e serventuários obesos; prefeitos, governadores... O funcionalismo público brasileiro, de um modo geral, é gordo! Ou algum leitor ousa dizer que a maioria de nossas lideranças políticas e demais integrantes do funcionalismo público é "saradinha"?

É óbvio que não!

Dessa forma, caso a eliminação dos professores "gordinhos" seja mantida, em homenagem ao já citado princípio da isonomia, os candidatos à magistratura, MP, AGU, agências reguladoras, bancos, estatais etc. deverão se cuidar a partir de agora, pois, como diz a máxima jurídica, "onde existe a mesma razão, existe o mesmo direito".

Nossos políticos também deverão abrir os olhos, já que as instâncias da Justiça Eleitoral deverão também indeferir a candidatura dos rechonchudos, e será dever do eleitor não votar naqueles que certamente conseguirão burlar até mesmo as balanças.

Cabe lembrar que a obesidade possui origens das mais variadas, que vão desde maus hábitos alimentares, sedentarismo, enfim, o desleixo com a própria saúde, até aquelas de origem genética, tendentes, conforme o caso, a jamais desaparecer. É preciso lembrar que existem pessoas obesas que podem jamais conseguir emagrecer ou, no máximo, não emagrecerão o suficiente para alcançar o patamar considerado ideal pelas autoridades em saúde. Todavia, do ponto de vista intelectual, pessoas obesas são plenamente capazes de exercer funções de professor e correlatas. Não é necessário ser magro para pensar!

Inteligência, raciocínio, criatividade, didática, assiduidade, pontualidade, comprometimento. Estes são, principalmente, os atributos desejados de um professor!

Ponderação e justiça. Estes são, necessariamente, deveres constitucionais do Estado.

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Sobre o autor
Vitor Guglinski

Advogado. Professor de Direito do Consumidor do curso de pós-graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (RJ). Professor do curso de pós-graduação em Direito do Consumidor na Era Digital do Meu Curso (SP). Professor do Curso de pós-graduação em Direito do Consumidor da Escola Superior da Advocacia da OAB. Especialista em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Ex-assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Autor colaborador da obra Código de Defesa do Consumidor - Doutrina e Jurisprudência para Utilização Profissional (Juspodivn). Coautor da obra Temas Actuales de Derecho del Consumidor (Normas Jurídicas - Peru). Coautor da obra Dano Temporal: O Tempo como Valor Jurídico (Empório do Direito). Coautor da obra Direito do Consumidor Contemporâneo (D'Plácido). Coautor de obras voltadas à preparação para concursos públicos (Juspodivn). Colaborador de diversos periódicos jurídicos. Colunista da Rádio Justiça do Supremo Tribunal Federal. Palestrante. Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4246450P6

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUGLINSKI, Vitor. Candidatos obesos, concursos públicos e o peso da justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2777, 7 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18432. Acesso em: 18 abr. 2024.

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