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Crime impossível.

Controvérsias acerca da ineficácia absoluta do meio

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22/12/2010 às 19:55
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Abordam-se controvérsias sobre dois crimes: o uso de documento falso e o furto na modalidade tentada.

1. INTRODUÇÃO; 2. CRIME IMPOSSÍVEL; 2.1. Breves considerações; 2.2. Um breve histórico acerca do crime impossível; 2.3. O Crime Impossível no ordenamento jurídico brasileiro; 2.4. Modalidades do Crime Impossível; 2.4.1. Por Ineficácia Absoluta do Meio; 2.4.2. Por Absoluta Impropriedade do Objeto; 2.5. Critérios de cotejamento da idoneidade; 2.6. Teorias inerentes ao crime impossível; 2.6.1. Teoria Sintomática; 2.6.2. Teoria Subjetiva; 2.6.3. Teoria Objetiva; 2.6.4. Teoria Objetiva Pura; 2.6.5. Teoria Objetiva Temperada; 2.7. Distinções Relevantes; 2.7.1. Crime Impossível x Tentativa Punível; 2.8. A Putatividade do crime; 2.9. A Putatividade do Crime por obra do Agente Provocador; 3. CONTROVÉRSIAS ACERCA DA INEFICÁCIA ABSOLUTA DO MEIO; 3.1. Breves Considerações; 3.2. A Relativização da Ineficácia do Meio; 3.2.1. Dos Crimes de Uso de Documento Falso; 3.2.2. Dos Crimes de Furtos em Lojas de Departamentos; 4. CONCLUSÃO; 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


RESUMO

Este trabalho monográfico trata do crime impossível e as controvérsias acerca da ineficácia absoluta do meio, que é uma das modalidades que ensejam a exclusão da tipicidade de um fato delituoso. O trabalho aborda duas controvérsias: A primeira diz respeito ao crime de uso de documento falso, previsto no artigo 304 do Código Penal Brasileiro; e o segundo trata do crime de Furto na modalidade tentada, previsto no artigo 155 c/c 14, inciso II, ambos do Código Penal Brasileiro. No crime de uso de documento falso a jurisprudência tem entendido que não há crime quando o agente público percebe a falsificação no primeiro contato visual, é a denominada falsificação grosseira. Nesta seara entendemos que não há falar em crime impossível, pois nem todos os agentes públicos são hábeis o suficiente para perceber a falsidade de determinado documento, dada a complexidade dos detalhes existentes, por exemplo, numa Carteira Nacional de Habilitação.

Já em relação ao crime de furto, este trabalho aborda os problemas surgidos em virtude de fatos semelhantes receberem tratamento diferenciado, dependendo da jurisdição. No Tribunal de Justiça do Distrito Federal, por exemplo, o infrator que for flagrado por equipamentos eletrônicos ou por seguranças armados, furtando em lojas de departamentos, responderá e provavelmente será condenado pelo crime de furto, ao menos na modalidade tentada. Já no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, pelo mesmo crime cometido, nas mesmas circunstâncias, dependendo de quem o julgar, o infrator não será condenado, ao contrário, será beneficiado pelo instituto do crime impossível, por absoluta ineficácia do meio empregado. Eis um paradoxo da justiça.

Palavras-chaves: Direito Penal, Processo Penal, Crime Impossível, Ineficácia, Meio, Absoluta.


ABSTRACT

This monograph is about the impossible crime and the controversies concerning the absolute ineffectiveness of the environment, which is one of the modalities that allows the exclusion of an illegal fact. The work approaches two controversies: The first concerns about the crime of using false document, foreseen in the article 304 of the Brazilian Penal code; and the second one is about the crime of Theft in the attempted modality, foreseen in the article 155 c/c 14, incise II, both of them in the Brazilian Penal code. Regarding the crime of using false document the jurisprudence has understood that there is no crime when the public agent notices the falsification in the first visual contact, which is called of a rude falsification. In this field we understand that there is no way of speaking in impossible crime, because many of the public agents are skilled enough to notice the falsehood of a certain document, given the complexity of the existent details, for instance, in a National Drive Licence.

However, in relation to the theft crime, this work approaches the situation of similar facts get a different treatment depending on the jurisprudence. In the Court of Justice of Distrito Federal ( Tribunal de Justiça do Distrito Federal), for instance, the offender that is caught by electronic equipments or by security guards stealing at department stores, he or she will be taken as responsible for the act and probably will be condemned by the theft crime, at least in the attempted modality. On the other hand, in the Court of Justice of the State of Rio Grande do Sul (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul), for the same committed crime, under the same circumstances, depending on who the judge, the offender will not be condemned, on the contrary, he or she will be benefited by the institute of the impossible crime, for absolute ineffectiveness of the means used. This is a paradox of justice.

Word-key: Criminal Right, Penal Process, Impossible Crime, Ineffectiveness, Means , Absolute.


1.INTRODUÇÃO

O tema crime impossível é bastante recorrente quando se trata de trabalhos científicos acerca do Direito Penal ou qualquer outro que aborde aspectos relacionados às ciências criminais. Não obstante ao exposto, procuramos abordar neste trabalho os aspectos jurídicos das controvérsias atuais que permeiam alguns tribunais a respeito deste tema. Esta monografia está composta por cinco capítulos, sendo este o primeiro.

No segundo capítulo abordou-se o Crime Impossível e seus principais aspectos, começando por um breve escorço histórico, para em seguida tratar da abordagem do crime impossível no ordenamento jurídico brasileiro. Ainda nesta seara trataremos do crime impossível sob a égide de suas modalidades, sendo a primeira a ineficácia absoluta do meio e a segunda a absoluta impropriedade do objeto, bem como as principais teorias inerentes ao tema.

No terceiro capítulo, intitulado "Controvérsias acerca da ineficácia absoluta do meio", trataremos da relativização da ineficácia do meio e, para tanto, no sentido de melhor exemplificarmos o tema, colacionamos ao presente trabalho a íntegra de dois acórdãos, sendo o primeiro do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e o segundo do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. O quarto capítulo trata da conclusão do trabalho e o quinto traz a bibliografia utilizada.


2.CRIME IMPOSSÍVEL

2.1.Breves considerações

Tentativa inidônea, não-crime, crime inútil, quase-crime, tentativa inadequada ou tentativa impossível, são algumas das denominações que se tem ou teve no ordenamento jurídico brasileiro acerca do crime impossível. Tem-se por inidôneo algo que não possui idoneidade, não é adequado ou conveniente à determinada concretização. O não-crime, como o próprio nome já exprime, é algo que se constitui crime, podendo, pois ser tudo, menos delito. Por crime inútil devemos ter em conta o que se entende pelo significado da palavra inútil, ou seja, tem-se algo ou alguma coisa que se revela imprestável, incapaz para realizar qualquer coisa. Bem próximo da definição de não-crime, o quase-crime não rompe a esfera do mundo do delito, apenas a tangencia, não chegando, assim, suas ações ou efeitos a constituir crime. Da mesma sorte, extrai-se de tentativa inadequada, algo que seja impróprio, que é inconveniente a proporcionar um determinado desfecho. Por fim, temos na tentativa impossível um entendimento de que seja algo que jamais poderá ser realizado, completamente concretizado.

Para o mestre Guilherme de Souza Nucci [01], crime impossível é a tentativa não punível, tendo em vista que o agente vale-se de instrumento ineficaz ou se volta contra objeto absolutamente impróprio, tornando inviável a consumação.

Dos diversos significados que se tem para a expressão "impossível", dois deles se amoldam perfeitamente à noção que desejamos imprimir no presente trabalho. Senão vejamos: Num primeiro momento temos que impossível é algo que não pode ser ou que não pode existir ou acontecer. Em outro, temos que o impossível é algo que não se coaduna com a realidade, portanto, é de boa monta asseverar que o impossível tangencia o círculo da realidade sem deixar de pertencer ao mundo metafísico das hipóteses.

2.2.Um breve histórico acerca do crime impossível

Já na época áurea dos romanos, os jurisconsultos debatiam a punibilidade ou não de determinados atos considerados delituosos, tinha-se, pois a figura da criminalidade da tentativa. Desde então legisladores e doutrinadores se esforçam para estabelecer critérios e princípios que norteassem de unanimidade suas teorias e pensamentos acerca de tão discutido tema sem, no entanto, chegar a algo que lhes proporcionassem consenso doutrinário. Portanto, esgotar o tema não é o que pretendemos. Não seremos nós e tampouco temos a pretensão de chegarmos a qualquer conclusão que anseie por unanimidade. Assim, ater-nos-emos a explicitações didáticas para, ao final, adentrarmos em discussões pertinentes à contemporaneidade jurisprudencial e, principalmente à aplicação dos princípios conhecidos a cerca da punibilidade ou não da tentativa impossível nos tribunais tupiniquins.

Em meados do século XIX os doutrinadores e a jurisprudência européia deram um grande salto nas concepções acerca da tentativa impossível. Feuerbach, na Alemanha, na 4ª. ed. do seu Tratado, já em 1808, emitiu algumas opiniões que impulsionaram as já desgastadas teorias até então utilizadas acerca da punibilidade do crime que ele chamava de frustrado. Segundo ele, só a tentativa perigosa devia ser punida, mas para tanto, exigia-se que o fato concreto considerado nas suas condições externas estivesse em relação causal com o resultado pretendido pelo agente. Nascia daí a necessidade da distinção entre o meio e o objeto da ação frustrada. As idéias de Feuerbach foram corroboradas por Mittermaier em 1816 que distinguiu a impossibilidade absoluta e a relativa do tocante ao meio e ao objeto. Apesar das dúvidas levantadas por tantos outros doutrinadores à época, tal doutrina persistiu e rapidamente se tornou dominante, sendo assim até os dias atuais. LISZT faz um resumo, onde afirma que a tentativa era absolutamente impossível, quando o ato, atentos os meios empregados e em relação ao objeto da agressão, em caso algum podia conduzir ao fim desejado (tentativa de morte com uma pistola descarregada ou contra um cadáver), e considerava-se a tentativa como relativamente impossível, quando o meio escolhido ou o objeto da agressão era em tese apropriado, mas no caso dado, apresentava-se inadequado, em razão de circunstâncias especiais (tentativa de morte com uma pistola que rebenta no momento da descarga, ou contra alguém que se acha protegido por uma cota de malhas). [02]

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Adeptos da doutrina dominante à época, alguns países, por intermédio da jurisprudência pátria divergiam em algumas opiniões acerca da punibilidade da tentativa impossível. Os países latinos, como a Prússia, Baviera e Áustria defendiam a punição da tentativa de crime que fosse relativamente impossível. Outros países como a Saxônia defendiam a punibilidade em sua plenitude, quer fosse ela relativa ou absolutamente impossível.

LISZT nos narra ainda que doutrinadores do século XIX, como von Bar, entendiam que a não idoneidade do meio não devia ser tratada do mesmo modo que a do objeto. Esta última opinião já se insurgia contra a distinção de Mittermaier, que começou então a ser criticada. Conclui afirmando que o caráter essencial da tentativa está na manifestação da vontade tendente a uma lesão, mas essa manifestação se encontra do mesmo modo na chamada tentativa impossível. E se toda tentativa assenta em um erro sobre a causalidade do ato, esse erro não pode servir de fundamento para que deixem de ser punidos certos casos de tentativa. Temos aí a pregação da punição em seu caráter subjetivo, ou seja, punia-se a intenção, conseguisse ou não o seu tento, o agente estava sujeito a ser punido. É o caso da tentativa de morte sobre uma criança que já nasceu morte. [03]

2.3.O Crime Impossível no ordenamento jurídico brasileiro

Diante das indagações acerca da configuração ou não de um crime, da eficácia ou ineficácia do meio empregado para cometimento de determinado delito, da propriedade ou impropriedade de um determinado objeto visado pelo suposto delinqüente, o legislador pátrio sempre reservou um lugar diferenciado para tais circunstâncias, tendo primeiramente denominado de tentativa inadequada a tentativa impossível (influência do Direito Penal Alemão). Nesse diapasão, já no Código de 1890, conhecido sob a denominação ora mencionada, o crime impossível era tratado como sendo fato jurídico-penal em que se transfunde uma atividade distinta a violar um bem jurídico, mas que não pode atingir a meta optada, ou por ineficácia absoluta do meio empregado nos atos executivos, ou por absoluta impropriedade do objeto que é visado pela conduta do agente [04].

No Brasil, não obstante o fato de a ineficácia absoluta do meio empregado nos atos executivos ou a absoluta impropriedade do objeto se fazerem presente quando da tipificação da conduta, tal prática atípica tinha contra o agente a aplicação de uma medida de segurança, caso fosse reconhecida neste, periculosidade ao meio social, tudo em conformidade com o antigo art. 94, No. III. A medida de segurança consistia numa espécie de liberdade vigiada. Tinha na prática a aplicação da teoria sintomática. Esta, conforme veremos mais adiante, pregava a punição do agente, caso este, embora não tivesse cometido crime algum, demonstrasse oferecer periculosidade ao meio social.

A tentativa impossível mencionada, cujo berço moderno é o Direito Alemão, encontra supedâneo no ordenamento jurídico pátrio no artigo 17 do Código Penal, sob a denominação de crime impossível, littheris:

Art. 17 - Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.

Citando Aníbal Bruno, NUCCI [05] observa que se trata de uma autêntica "carência de tipo". É o que ocorre quando o agente atira num cadáver, tentando matá-lo, ou seja, tentando fazer algo que é absolutamente impossível de ser feito: MATAR ALGUÉM QUE JÁ ESTÁ MORTO.

2.4.Modalidades do Crime Impossível

Lecionando acerca desta matéria o ilustre JOSÉ FREDERICO MARQUES no seu tratado de Direito Penal nos ensina que "O crime impossível não pode ter por sanção uma pena, porque nele não há conduta típica, nem lesão e um bem jurídico. O agente pratica um fato que não atinge ou põe em imediato perigo interesses que a ordem penal tutela. Daí não haver pena para o autor do delito impossível". [06]

No ordenamento jurídico brasileiro o crime impossível se consubstancia de duas maneiras, a saber: Por ineficácia absoluta do meio e por absoluta impropriedade do objeto.

2.4.1.Por Ineficácia Absoluta do Meio

Ocorre esta modalidade de crime impossível, quando o meio empregado pelo agente é de todo ineficaz para produzir o efeito delitivo do ato. Para DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS [07] ocorre crime impossível quando o meio empregado pelo agente, pela sua própria natureza, é absolutamente ineficaz para produzir o evento. É o caso de o agente, pretendendo matar a vítima, ministra açúcar em sua alimentação, pensando ser veneno. Para JOSÉ FREDERICO MARQUES [08] (2002 – v. II – 355) na hipótese do artigo 17 do CP o agente erra porque supõe idôneo um meio ou instrumento do crime, de todo sem eficácia. A absoluta ineficácia de um meio pode ser verificada nos apetrechos que o agente tem a sua disposição e que com os quais deseja atingir um resultado danoso a um bem jurídico. Pensando que tais apetrechos serão suficientes para atingir seu tento, o pseudo-criminoso se embrenha por caminhos que jamais o levarão à satisfação esperada. FERNANDO CAPEZ [09] leciona que nesses casos, o meio empregado ou o instrumento utilizado para a execução do crime jamais o levarão à consumação. É o caso do agente que se utiliza de um palito de dente para matar um adulto ou a utilização de uma arma de fogo inapta a efetuar disparos. HANS WELZEL [10] diz que se verifica a ineficácia do meio quando este deixa de produzir o resultado pretendido, em virtude da ocorrência de alguma circunstância acidental.

2.4.2.Por Absoluta Impropriedade do Objeto

Nesta hipótese o objeto material sobre o qual o agente pretende que recai os efeitos de sua ação delituosa não é próprio para tal fim, como por exemplo matar alguém que já se encontra morto (matar um cadáver). CAPEZ [11] declina que a impropriedade não pode ser relativa, pois nesse caso haverá tentativa. É o caso do ladrão que enfia a mão num bolso da vítima sendo que o dinheiro se encontra no outro bolso. Acerca da impropriedade do objeto WELZEL [12] assevera que é relativa quando a inexistência da coisa ou pessoa, sobre a qual se exerce a atividade executiva, é eventual. Nesse mesmo diapasão Welzel menciona dois exemplos, mas, sobre eles, trataremos mais adiante.

2.5.Critérios de cotejamento da idoneidade

Difícil é, pois, a realização de escorreita distinção acerca do cotejo da idoneidade do meio utilizado para a tentativa delituosa. WELZEL [13], leciona que "...A medida para a distinção de inidoneidade absoluta e relativa é o ponto de vista ex-post, (avaliação posterior), vale dizer, a do juiz." Daí a necessidade de uma minuciosa leitura do caso concreto em sede de Delegacia de Polícia, atribuição exclusiva da autoridade policial, vez que dos termos contidos na lavratura in casu do flagrante delito surgirão os elementos norteadores da instrução processual que culminará na condenação ou não do agente.

Romeu FALCONI [14] leciona que tudo está a girar ao redor da idoneidade e da inidoneidade do evento produzido por uma tal conduta do agente visando a realizar o tipo penal. Aqui interessa saber com segurança quando há e quando não há inidoneidade dos atos praticados. Na mesma obra o autor cita os dizeres de José Maria Rodrigues Devesa: "El problema de la idoneidad o inidoneidad de una acción solo puede surgir con una consideración ex ante. Para una consideración ex post toda tentativa es inidonea, porque, reproducidos los hechos exactamente tal y como ocurrieron, nunca hubiera podido producirse el resultado" [15]

Destarte, a análise do caso concreto, passa pela conclusão da inexistência de qualquer probabilidade de sucesso da empreitada do agente. Do momento da avaliação é que se vai inferir a existência da tentativa idônea ou inidônea. FERNANDO CAPEZ [16] leciona que a aferição da idoneidade deve ser feita no momento em que se realiza a ação ou omissão delituosa.

2.6.Teorias inerentes ao crime impossível

As teorias existentes acerca do crime impossível como vimos, têm suas raízes no Direito Penal Alemão do áureo século XIX. Como mencionamos, elas surgiram quando da distinção do meio e do objeto, componentes essenciais para a prática delituosa. Primariamente discutiu-se a impossibilidade absoluta e a relativa no tocante ao meio e ao objeto até se chegar às recentes teorias, fruto de desmembramentos ocorridos ao longo de muitos anos e muitos julgados:

2.6.1.Teoria Sintomática

A teoria sintomática se volta para a análise do grau de periculosidade demonstrada na ação do agente. Radicais ou não, o certo é que os adeptos desta teoria pregam que se da ação do agente for possível extrair-se algum indício de periculosidade a medida penal deve ser aplicada ao delinqüente. O que é fato nesta teoria é que mesmo se o meio ou o objeto sejam considerados inidôneos não representará nenhuma diferença, devendo o agente ser punido, caso reste demonstrada por intermédio da sua conduta, também a sua periculosidade. JOSÉ FREDERICO MARQUES tratando da ação do agente que pratica um crime impossível lecionava que "a ação é sintomática por revelar algo de periculosidade no caráter do agente, bem como suas inclinações."

2.6.2.Teoria Subjetiva

A teoria subjetiva, assim como a sintomática, prega a punição do agente independente se o fato delituoso não possua a menor possibilidade de se concretizar. O que as diferencia é que esta pune o fato de a conduta do agente ter demonstrado periculosidade e aquela pune o fato de o agente ter demonstrado vontade de praticar o fato típico, ou seja, a intenção do agente é decisiva quando do julgamento de seus atos. Como se nota, nesse diapasão, são irrelevantes para os subjetivistas os requisitos elencados no artigo 17 do CP. O insigne doutrinador DAMÁSIO E. DE JESUS leciona que "a questão é a intenção do delinqüente, pois existe inidoneidade em qualquer tentativa, uma vez que o agente não produz o evento. Assim, o autor de um crime impossível deve sofrer a mesma pena cominada à tentativa". [17]

Hans Welzel interpreta a teoria subjetiva, como sendo "a concretização exterior da vontade e, como tal, não precisa ser perigosa, mas que para a ordem jurídica é já seriamente perigosa aquela vontade que, com sua manifestação, acredita iniciar imediatamente a realização do delito. Por isso é punida a tentativa com meios inidôneos, ou no objeto inidôneo, sem considerar a não-periculosidade objetiva se o autor tomou por idôneos." [18]

2.6.3.Teoria Objetiva

A teoria objetiva prega que a tentativa impossível não deve ser punida, "uma vez que objetivamente não houve perigo para a coletividade". [19] - Continua Capez - "o que importa, portanto, é o risco objetivo de lesão ínsito na conduta, e não a intenção que tinha o agente, ou o perigo que ficou evidenciado em seu comportamento".

WELZEL, mentor da teoria finalista da ação, claramente alertava para o perigo da concretização exterior da vontade. Para o mestre, a periculosidade objetiva era necessária como forma condicional da existência do acontecer exterior.

Para a doutrina dominante nacional a teoria objetiva divide-se em Teoria Objetiva Pura e Teoria Objetiva Temperada.

2.6.4.Teoria Objetiva Pura

A teoria objetiva pura preconiza que o crime será sempre impossível, não importando sejam absolutas ou relativas a ineficácia e a impropriedade, portanto, temos aí os pilares da atipicidade jurídica quanto ao crime impossível. Salienta-se que, segundo esta teoria, a ausência do risco ao bem jurídico elimina qualquer possibilidade de punibilidade, ou seja, não existe a presença dos requisitos legais para a ocorrência do crime tentado.

2.6.5.Teoria Objetiva Temperada [20]

Tem-se na teoria objetiva temperada como a adotada pelo nosso Código Penal, uma vez que considera o crime, como sendo impossível, se e somente se, forem absolutas a ineficácia e a impropriedade.

Para explicar a teoria objetiva temperada, Fernando CAPEZ leciona que:

"... Assim, se um ladrão enfia a mão no bolso de alguém que não tem absolutamente nada consigo o furto não se consumará, pois, desde o início, era totalmente impossível atingir o resultado pretendido. No entanto, se a vítima estava com o dinheiro no bolso da frente, surge uma impossibilidade meramente ocasional, relativa, devendo o autor responder por tentativa (grifo nosso)." [21]

2.7.Distinções Relevantes

2.7.1.Crime Impossível x Tentativa Punível

Não é de todo uma simplicidade a distinção entre o instituto do crime impossível e o da tentativa punível, prova disto é que os doutrinadores ao longo da história se dedicaram a tal esclarecimento. WELZEL [22], por exemplo, defende a periculosidade objetiva como forma de ensejar a configuração da tentativa punível, ou seja, a exteriorização da vontade (dolo) surge como séria e perigosa vez que é pressuposto para o cometimento do delito. O grande mestre MIRABETE [23] leciona que as espécies diferentes de crime impossível são espécies em que a ação representa atos que, se fossem idôneos os meios ou próprios os objetos, seriam principio de execução de um crime. Entretanto, não exclui a existência da tentativa a utilização de meio relativamente inidôneo, quando há perigo, ainda que mínimo para o bem jurídico que o agente pretende atingir. [24]

O mestre Mirabete trata das distinções acima mencionadas focando o fato de a ação do agente sofrer ou não sofrer interferência externa, estranha à sua ação. Temos então, que no crime impossível o agente não sofre nenhuma interferência alheia enquanto sua ação delituosa se desenrola. Já na tentativa punível, quase sempre a ação do agente é interrompida por injunção alheia. Temos então que o liame da diferenciação ora tratada se encontra no resultado, pois a real possibilidade de sucesso do agente está no fato de o mesmo ter empregado meios idôneos para a prática da ação, logo se tem a tentativa punível. Entretanto no crime impossível, em virtude do emprego de meios inidôneos ou ataques a objetos impróprios, inviabiliza-se o resultado danoso.

Da nossa parte cremos residir aí a gênese da putatividade tratada neste trabalho, pois consiste na escorreita análise do caso concreto a irrefutável conclusão que permitirá a aplicação de forma justa a letra do artigo 17 do diploma legal. Os pretores pátrios como veremos adiante, têm sido formadores de um sentido jurisprudencial que coaduna com a idéia de não mais diferenciar os dois institutos ora tratado.

É pacífico na doutrina que uma ação impossível de se realizar seja considerada crime. Não há como deixar de observar que o crime impossível é a representação, se é que se pode assim afirmar da causa de exclusão da própria tipicidade. Entretanto o que se verifica é que a jurisprudência está a caminho de desprezar a teoria objetiva temperada à medida que como se observa nos últimos julgados, os autores de crimes nas circunstancias em comento estão sendo condenados nas conformidades da teoria subjetiva do crime impossível. Como veremos adiante, mesmo com um quadro caracterizado e constituído como sendo o apropriado cenário para o cometimento de um crime que jamais ocorrerá, pois como afirma o próprio legislador a tentativa inidônea não é punível, o problema patente é como se estão chegando à conclusão acerca de tentativa inidônea ou idônea, razão pela qual se constata a cada dia que no Brasil estão punindo a tentativa de crime impossível, o que constitui uma aberração jurídica, pois se o tipo se amolda ao crime impossível não há falar em tentativa de algo que é impossível.

2.8.A Putatividade do crime

No ordenamento jurídico são três as hipóteses de crime putativo, sendo elas: crime putativo por erro de proibição, quando o agente supõe estar violando uma lei que na verdade não existe; crime putativo por erro de tipo, quando o agente tem diante de si uma pseudo-situação e por conta disso acredita estar cometendo um fato típico, quando na realidade o fato é atípico. É o caso de o agente atirar num cadáver, supondo-o vivo. CAPEZ [25] leciona que se costuma dizer que no delito putativo por erro de tipo o sujeito é um criminoso incompetente. É o que na doutrina se chama de erro de direito às avessas, momento em que o agente supõe estar cometendo fato típico, mas tal situação só existe na imaginação do agente; e crime putativo por obra do agente provocador, no qual, por interessar bastante ao nosso trabalho, nos deteremos um pouco mais.

2.9.A Putatividade do Crime por obra do Agente Provocador

Essa modalidade de crime é aquela em que o crime é provocado por agentes de seguranças, públicos ou privados, com o objetivo de induzir o agente a cometer o delito. Também denominado crime de ensaio ou de experiência, essa modalidade de crime é privilegiada pela Súmula 145 do STF que preconiza: Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação.

Fernando CAPEZ [26] declina que o crime é impossível pela ineficácia do meio empregado, provocada pelo conjunto das circunstâncias exteriores adrede preparadas, que tornam totalmente impossível ao sujeito atingir o momento consumativo. Aduz o professor que o elemento subjetivo do crime existe, mas sob o aspecto objetivo, não há, em momento algum, qualquer risco de violação do bem jurídico. Para o mestre MIRABETE [27] fala-se em crime provocado quando o agente é induzido à prática de um crime por terceiro, muitas vezes policial, para que se efetue a prisão em flagrante.

Um exemplo típico de crime provocado é aquele em que o agente disfarçado finge querer comprar entorpecente e prende o vendedor por tráfico. Diferente, portanto, daquela situação onde o agente investigador, suspeitando ou avisado da ocorrência de um crime, se posiciona de tal forma a esperar a prática delituosa, para prender o infrator, onde se tem o denominado flagrante esperado. Neste, até que ocorra o flagrante, o agente público ou privado se coloca em situação de expectativa, quanto à ocorrência vindoura. É o caso, por exemplo, de uma equipe de investigadores que, por intermédio de terceiros, toma conhecimento da chegada de carregamento de tóxicos e se põe a esperar o momento exato de efetuar a abordagem e, conseqüentemente, a prisão em flagrante.

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Sobre o autor
Antonio Sólon Rudá

Jurista brasileiro, especialista em ciências criminais, MSc student (Teoria do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Portugal); Ph.D. student (Ciências Criminais na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - Portugal); Autor da Teoria Significativa da Imputação, apresentada na obra "Fundamentos de la Teoría Significativa de la Imputación", publicada pela Editora Bosch, de Barcelona, Espanha, onde apresenta um novo conceito para o dolo e a imprudência sob a filosofia da linguagem, defendendo o fim de qualquer classificação para o dolo, e propõe classificar a imprudência consciente em gravíssima, grave e leve. É advogado e autor de diversas obras jurídicas como: Breve historia del Derecho Penal y de la Criminología, cujo prólogo foi escrito pelo Professor Doutor Eugenio Raúl Zaffaroni; e Dolo e Imprudência, um viaje crítico por la historia de la imputación. Todos publicados pela Editora Bosch, Barcelona, Espanha.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RUDÁ, Antonio Sólon. Crime impossível.: Controvérsias acerca da ineficácia absoluta do meio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2730, 22 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18093. Acesso em: 20 abr. 2024.

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