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A palavra da vítima no crime de estupro e a tutela penal da dignidade sexual sob o paradigma de gênero

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25/11/2010 às 09:02
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III - CONCLUSÃO

O domínio do patriarcado revela-se na dogmática jurídico-penal, principalmente na tipificação e no discurso que têm por escopo tutelar a moralidade sexual e familiar, o espaço privado, cuja ocupação é relegada ao gênero feminino.

Constata-se que o sistema de justiça criminal manifesta-se no sentido de excluir e revitimizar a mulher, na medida em que esta, quando assume a posição de vítima dos crimes de gênero - tais como o estupro e a violência doméstica - recebe tratamento distinto daquele conferido às vítimas de tipos penais que tutelam outros bens jurídicos. A diferenciação se revela não apenas por meio das leis, mas também por meio do second code (código de valores secundário) latente nos operadores jurídicos (polícia, órgãos técnicos, Ministério Público e Judiciário).

Ou seja, a mulher, quando adentra o espaço público do direito, precisa superar o descrédito sexista que envolve sua vitimização, consubstanciado, por exemplo, no caso da violência sexual, no pressuposto de que a palavra da vítima deve ser reiteradamente testada, de modo a parecer absolutamente convincente, sempre posta à prova sob a lógica da honestidade para que, somente no âmbito de um longo e exaustivo processo de revitimização, se lhe possa ser franqueada a composição do acervo probatório, na qualidade de fala "adequada".

A desigualdade de tratamento reflete-se na exposição das mulheres que buscam o sistema de justiça criminal ao pré-julgamento moral de seus operadores, circunstâncias que demandam uma intervenção institucionalizada (leia-se: estatal) e diferenciada por meio de ações afirmativas, sempre no escopo de estabelecer o equilíbrio e, conseqüentemente, a isonomia nas relações entre homens e mulheres.


Notas

  1. Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
  2. In: O princípio da igualdade no direito penal brasileiro – uma abordagem de gênero – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.142.
  3. Sobre a construção dos estereótipos sociais, confira-se PIMENTEL, Sílvia, SCHRITZMEYER, Ana Lúcia P., PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: crime ou "cortesia"? Abordagem sociojurídica de gênero. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 21-57 e 199-207.
  4. PIMENTEL, Sílvia, SCHRITZMEYER, Ana Lúcia P., PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: crime ou "cortesia"? Abordagem sociojurídica de gênero. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 23-24.
  5. In Violência de gênero - poder e impotência, Rio de Janeiro: Revinter, 1995, p. 20, apud PIMENTEL, Sílvia, SCHRITZMEYER, Ana Lúcia P., PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: crime ou "cortesia"? Abordagem sociojurídica de gênero. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 24-25.
  6. Idem, ibidem.
  7. Idem, ibidem.
  8. In Violência de gênero - poder e impotência, Rio de Janeiro: Revinter, 1995, p. 20, apud PIMENTEL, Sílvia, SCHRITZMEYER, Ana Lúcia P., PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: crime ou "cortesia"? Abordagem sociojurídica de gênero. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 24-25.
  9. Sobre as tensões entre os espaços público e privados, bem como os tipos de conflito daí advindos, confira-se SUÁREZ, Mireya e BANDEIRA, Lourdes.A politização da violência contra a mulher e o fortalecimento da cidadania. In BRUSCHINI, Cristina e UNBEHAUM, Sandra G. (org.) Gênero, democracia e sociedade brasileira. SP: Fundação Carlos Chagas/ Ed. 34, 2002, p. 295-320.
  10. LARRANDART, Lucila. Control social, derecho penal y gênero, in: Birgin Haydée (comp). Las trampas del poder punitivo. El Género del Derecho Penal, Buenos Aires: Biblos/Ceadel, 2000, p. 91.
  11. In A teoria das relações sociais de sexo: um quadro de análise sobre a dominação masculina, in Revista sociedade e estado. V. 20, n.3, set-dez 2005. p. 568.
  12. BARATTA, Alessandro. "El paradigma de género. De la cuestión criminal a la cuestión humana", en Birgin Haydée (comp). Las trampas del poder punitivo. El Género del Derecho Penal, Buenos Aires: Biblos/Ceadel, 2000, p.61-62.
  13. Sobre o exposto, SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. 1ª ed., São Paulo, 2004. Editora Fundação Perseu Abramo. p. 105.
  14. Sobre a divisão sexual do trabalho, cf. DEVREUX, Anne Marie. In A teoria das relações sociais de sexo: um quadro de análise sobre a dominação masculina, in Revista sociedade e estado. V. 20, n.3, set-dez 2005. p. 561-584 e SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. 1ª ed., São Paulo, 2004. Editora Fundação Perseu Abramo. p.96-107.
  15. Expressão tomada por empréstimo a STRECK, Lênio Luiz. Os crimes sexuais e o papel da mulher no contexto da crise do direito: uma abordagem hermenêutica. Cadernos Themis. Gênero e Direito. Ano III, n. 3. Porto Alegre: Themis assessoria jurídica e estudos de gênero, 2002. p. 135-164.
  16. Sistema penal máximo X cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. 1. ed. - Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003. p. 98-99.
  17. Cf. MIRABETE, Julio Fabbrini. Código penal interpretado. 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2003. p. 1528-1529.
  18. STRECK, Lênio Luiz. Os crimes sexuais e o papel da mulher no contexto da crise do direito: uma abordagem hermenêutica. Cadernos Themis. Gênero e Direito. Ano III, n. 3. Porto Alegre: Themis assessoria jurídica e estudos de gênero, 2002. p. 145, 162.
  19. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo X cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. 1. ed. - Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, p. 53.
  20. Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime (...) (grifo nosso)
  21. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo X cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. 1. ed. - Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003. p.99.
  22. O Estatuto de Roma na perspectiva de gênero. www.pfdc.pgr.mpf.gov.br. Acesso em: 16 de novembro de 2006.
  23. RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 7. ed. ver. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2003. p. 450-458.
  24. STRECK, Lênio Luiz. Os crimes sexuais e o papel da mulher no contexto da crise do direito: uma abordagem hermenêutica. Cadernos Themis. Gênero e Direito. Ano III, n. 3. Porto Alegre: Themis assessoria jurídica e estudos de gênero, 2002. p. 149-150.
  25. Sobre o conteúdo dos instrumentos jurídicos internacionais e nacionais, ver PIMENTEL, Sílvia, PANDJIARJIAN, Valéria. Direitos humanos a partir de uma perspectiva de gênero. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo. N. 53. junho/2000. p. 233-247.
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Sobre a autora
Danielle Martins Silva

Promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, pós-graduada pela Universidade Federal de Santa Catarina e pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Danielle Martins. A palavra da vítima no crime de estupro e a tutela penal da dignidade sexual sob o paradigma de gênero. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2703, 25 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17897. Acesso em: 18 abr. 2024.

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