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União estável homoafetiva e direito à igualdade.

O caso do Clube Athletico Paulistano

Leia nesta página:

I – Introdução

Recentemente, os meios de comunicação social noticiaram a recusa de um famoso clube recreativo paulistano em aceitar como dependente o parceiro homossexual de um de seus sócios [01] A decisão da Administração, segundo a imprensa, foi fundamentada na ausência de previsão nos estatutos sociais para casos como o noticiado.

Ocorre que, segundo noticiado pela imprensa, os estatutos do clube previam a possibilidade de aceitação de companheiros em união estável como dependentes de sócios, sendo tal situação era rotineiramente reconhecida pela Administração da associação civil.

O caso concreto, talvez por envolver uma associação claramente freqüentada pela elite econômica da cidade mais rica do Brasil, provocou debate sobre questões como homoafetividade e a igualdade de relações no país.

Em um âmbito estritamente jurídico, o ocorrido no Clube Athletico Paulistano serve como oportunidade para um estudo de caso sobre algumas conseqüências jurídicas da homoafetividade e a eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

O objetivo deste artigo é questionar a constitucionalidade da discriminação entre uniões homoafetivas e heterossexuais no Brasil, quer pelo Estado, quer por particulares. Desde já ressalva-se o caráter provocador e não-exaustivo dos argumentos utilizados neste trabalho, dado que a questão ainda desperta funda polêmica entre juristas nacionais.


II – Síntese do Caso

O presente artigo, tal como já mencionado na introdução, revolve sobre um caso concreto noticiado pela imprensa paulistana em início do mês de setembro. Segundo informações divulgadas pela Folha de São Paulo, o senhor Ricardo Pereira, associado do Clube Athletico Paulistano, haveria requisitado a inclusão no quadro social do clube como dependente de seu companheiro afetivo, bem como da filha menor deste último.

Em síntese, o pedido haveria sido analisado pelos órgãos de direção do Clube que, apesar do parecer jurídico favorável ao pleito emitido por sua Comissão Jurídica, rejeitou-o com base na ausência de "previsão estatutária" que abarcasse uniões homoafetivas.

Rejeitado o pedido, o seu autor valeu-se dos meios de comunicação para queixar-se da discriminação sofrida, uma vez que companheiros heterossexuais teriam seu direito de pertencer ao clube rotineiramente reconhecido.

A direção do Clube Athletico Paulistano, por meio de seu diretor de comunicação, anunciou que o indeferimento do pedido havia se dado com base no "estatuto, [n]o Código Civil e [n]a Constituição [02]".

Gostaríamos de analisar as implicações jurídicas da decisão noticiada pela imprensa invertendo a ordem citada pelo diretor do clube, focando exclusivamente no fundo constitucional da questão discutida


III – Matéria Constitucional.

A Constituição Federal de 1988 trouxe normas específicas sobre a família, dela tratando logo no início de um capítulo dedicado também à criança, ao adolescente e ao idoso.

A CF/88 inicia o capítulo em questão anunciando a família como "base de sociedade", reconhecendo-lhe a proteção do Estado. Mais adiante, no terceiro e quarto parágrafos de seu artigo 226, a Constituição menciona dois modelos de família para efeitos de proteção do Poder Público. Veja-se, por oportuno, a redação dos dispositivos constitucionais:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

(...)

§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§ 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

Uma primeira análise sobre o texto do dispositivo constitucional acima transcrito, sem dúvida o mais específico na CF/88 sobre o assunto, indica que a Constituição considera como entidade familiar uniões heterossexuais, formalizadas ou não pelo casamento, bem como a comunidade integrada por um dos pais e seus descendentes.

Ora, o texto constitucional em vigor trouxe ao ordenamento jurídico nacional um novo influxo ao reconhecer, de forma expressa e segura, a união afetiva entre homem e mulher não ligados pelo instituto civil do casamento, criando nova categoria de entidade familiar denominada na própria constituição como união estável.

A modificação trazida pela Carta significou um ponto de inflexão na doutrina civilista nacional, até então (e, de certa forma, ainda hoje) impregnada por paradigmas religiosos e conservadores pouco atentos às mudanças na realidade social havida nos últimos 50 anos.

Ao atestar a qualificação jurídica da união estável como entidade familiar, o Legislador Constitucional vibrou o primeiro golpe no conservadorismo típico da doutrina civilista que exigia a sanção formal do Estado sobre uma relação afetiva para reconhecê-la como digna de proteção pelo Direito de Família.

Nada obstante a clareza da disposição constitucional, a resistência de alguns doutrinadores e magistrados às suas naturais conseqüências não foi vencida de imediato.

De fato, como bem ressalta MARIA BERENICE DIAS [03]:

"[a] dificuldade de as relações extramatrimoniais serem identificadas como verdadeiras famílias revelava a tendência em sacralizar o conceito de casamento. Mesmo inexistindo qualquer diferença estrutural com os relacionamentos oficializados, a sistemática negativa de estender a esses novos arranjos os regramentos do direito familiar, nem ao menos por analogia, mostrava a tentativa de preservação da instituição da família dentro dos padrões convencionais. Os relacionamentos que fugissem ao molde legal, além de não adquirir visibilidade, estavam sujeitos a severas sanções. Chamados de marginais, os vínculos afetivos extramatrimoniais nunca foram reconhecidos como família. Primeiro se procurou identificá-los com uma relação de natureza trabalhista, e só se via labor onde existia amor. Depois, a jurisprudência passou a permitir a partição do patrimônio, considerando uma sociedade de fato o que nada mais era do que uma sociedade de afeto.

Mesmo depois de a Constituição Federal haver albergado no conceito de entidade familiar o que chamou de ‘união estável’, resistiram os juízes em inserir o instituto no âmbito do Direito de Família. Apesar dos protestos da doutrina, as uniões estáveis foram mantidas no campo do Direito das Obrigações. Como bem adverte Paulo Lôbo, não há necessidade de degradar a natureza pessoal de família convertendo-a em fictícia sociedade de fato, como se seus integrantes fossem sócios de empreendimento lucrativo. E conclui: os conflitos decorrentes das entidades familiares explícitas ou implícitas devem ser resolvidos à luz do Direito de Família e não do Direito das Obrigações, tanto os direitos pessoais quanto os direitos patrimoniais e os direitos tutelares".

A secularização do Direito de Família operada pelo texto constitucional, nítida na redação dos parágrafos de seu artigo 226, não se limitou, contudo, ao reconhecimento da união estável e à vedação de qualquer distinção entre os filhos (superando, assim, as ideais advindas do direito canônico que qualificavam estes entre legítimos, naturais, adulterinos etc).

Nesse sentido, os modelos familiares mencionados nos parágrafos 3º e 4º do artigo 226 não podem ser encarados como exaustivos e excludentes de outros. Com isso queremos dizer que o fato de a Constituição mencionar de forma expressa a união estável como aquela formada entre um homem e uma mulher não deve ser encarado como vedação a uniões entre parceiros de mesmo sexo que demonstrem os mesmos requisitos de perenidade, publicidade, afetividade e intenção de constituir uma família.

De fato, postos de lado posicionamentos religiosos, a nova disciplina constitucional sobre a família no Brasil parece deixar claro que o traço fundamental da instituição é o afeto e o desejo de assumir publicamente um destino comum.

Na medida em que não se exige a existência de filhos (e portanto abandona-se a idéia canônica de matrimônio como fórmula idealmente preconizada para a geração de descendência "legítima") ou mesmo a co-existência de parceiros (a CF/88, como visto acima, reconhece como família a organização monoparental, isto é, a comunidade de apenas um dos pais e seus filhos), o único traço em comum entre os modelos citados pela CF/88 é o afeto mútuo e o convívio público e voluntário.

Ora, sendo estes os traços essenciais ao conceito de família reconhecido (e protegido) pela Constituição, não nos parece juridicamente plausível aferrar-nos à letra do artigo 226 para defender um rol taxativo de modelos para famílias no Brasil.

Ao que aparenta, não estamos sozinhos em nossa posição, como bem evidencia a opinião de CRISTIANO CHAVES e NELSON ROSENVALD em trecho de obra adiante transcrito [04]:

"Percebe-se, por conseguinte, estar em rota de colisão com a norma constitucional o entendimento que exclui a proteção constitucional familiar de outros modelos de família não previstos exaustivamente no art. 226 da Lex Fundamentallis. Trata-se, em verdade, de problema hermenêutico, uma vez que a interpretação sistemática e teleológica dos preceitos constitucionais conduz, com mão segura, à idéia da inclusão de outros modelos familiares. Na esteira do que aqui se sustenta, nossos Pretórios têm reconhecido que a presença do caráter afetivo como mola propulsora de algumas relações, (sic) a caracteriza como entidade familiar (independente da previsão constitucional), merecendo a proteção do Direito de Família e determinando, por conseguinte, a competência das varas de Família para processar e julgar os conflitos delas decorrentes (…)".

Nesse sentido, nada impede, segundo entendemos, o reconhecimento de parcerias homoafetivas como uniões estáveis para efeitos de aplicação do Direito de Família, em exata analogia à disciplina concedida àquelas entre parceiros heterossexuais.

Entender de forma diversa seria, segundo nossa opinião, discriminar situações essencialmente idênticas sem qualquer critério constitucional sólido, fato atetantório à garantia de tratamento isonômico perante a lei [05].

Infelizmente, o Supremo Tribunal Federal ainda não teve oportunidade de se debruçar de forma específica sobre caso em que a questão ora apresentada pudesse sofrer análise pelo seu Plenário.

Há, entretanto, interessantíssimo precedente no direito comparado passível de ser utilizado como subsídio à análise da questão.

Em 2003, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu o caso LAWRENCE vs. TEXAS [06], oportunidade em que, por maioria, declarou inconstitucional uma lei do Estado americano do Texas que punia relações sexuais "não-convencionais" apenas entre parceiros do mesmo gênero.

Em apertada síntese, o cidadão LAWRENCE foi encontrado pela polícia no interior de sua casa durante um ato sexual consensual com outro homem adulto, enquanto respondia a um chamado por suposta discussão armada no local.

LAWRENCE e seu parceiro foram presos e condenados pelo cometimento de "relação sexual desviante", em função de uma lei estadual do Texas que considerava crime a prática de certos atos íntimos por pessoas do mesmo gênero. Após sucessivos recursos, o caso foi aceito pela Suprema Corte em 26 de março de 2003 e decidido em 26 de junho do mesmo ano.

O acórdão entendeu que a lei texana interferia de forma indevida na vida íntima dos cidadãos, uma vez que criminalizava conduta voluntária cometida em privado por adultos capazes, revertendo assim posição anterior da mesma Corte segundo a qual os Estados da União poderiam legislar sobre o assunto (Bowers vs. Hardwick [07])

Mais interessante para o caso em apreço foi o voto (opinion) em separado da Ministra Sandra O’Connor entendeu que a lei texana feria a Constituição ao não tratar de forma isonômica (equal protection of the laws) os parceiros homossexuais e heterossexuais.

De fato, como assentado pela Ministra, a lei texana não criminalizava "atos sexuais desviantes" praticados por parceiros de gêneros distintos, mas apenas os praticados por pessoas do mesmo gênero.

Pedimos vênia para transcrever dois (curtos) trechos do voto da Ministra O’Connor, dada sua relevância para a questão aqui ventilada:

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"A lei em análise qualifica a sodomia como crime apenas se uma pessoa ‘participa de ato sexual desviante ("heterodoxo") com indivíduo do mesmo sexo’. (Código Penal do Texas, artigo 21.06 (a) ). A sodomia entre parceiros de sexos distintos, no entanto, não é um crime no Texas. Isto é, o Texas trata a mesma conduta de forma distinta com base apenas em seus participantes. Aqueles prejudicados por essa lei são pessoas que tem orientação homossexual e portanto estão mais dispostas a praticar o comportamento proibido pelo artigo 21.06 [08]"

Mais adiante, a Ministra O’Connor conclui:

"Um Estado pode, obviamente, determinar certas conseqüências para uma violação de sua lei penal. O Estado não pode, todavia, discriminar uma determinada classe de cidadãos com punição que não se aplica a todos os demais, baseado apenas na reprovação moral como interesse a ser protegido [09]".

Por certo, o caso julgado pela Suprema Corte americana mostra-se como extremo para os padrões brasileiros, uma vez que a lei estadual tida por inconstitucional criminalizava conduta consensual entre adultos praticada no interior de recinto privado. Nada obstante, temos que o raciocínio do voto em separado da Ministra O’Connor pode ser extrapolado para a hipótese discutida no presente artigo.

De fato, o Estado (no caso Brasileiro, a União), não pode discriminar situações idênticas (relacionamento afetivo público, permanente e mantido no intuito de constituir família) simplesmente com base no gênero das pessoas nelas envolvidas.

Como visto linhas acima, o elemento comum à instituição família é o vinculo afetivo e o desejo de desempenhar um papel conjunto e público na sociedade, criando laços comuns com pretensão de perenidade. E tais requisitos podem ser atingidos por parceiros quer de gêneros distintos, quer do mesmo gênero.

Nesse passo, entender que apenas parcerias heterossexuais podem se caracterizar como uniões estáveis para efeitos de invocação do Direito de Família parece-nos contrariar a garantia de isonomia perante a lei, bem como atitude contrária a um dos objetivos primordiais da República, que é a promoção do bem de todos, sem que se permita qualquer forma de preconceito ou discriminação, tal qual disposto no artigo 3º, IV da CF/88:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...)

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Assim, a conjugação do direito fundamental da igualdade perante a lei com a vedação a qualquer forma de discriminação (incluída, para os efeitos deste artigo, aquela baseada no gênero) serve como argumento constitucional suficiente para reconhecer a impossibilidade de tratamento diferenciado entre parceiros homossexuais e heterossexuais para efeitos de configuração da união estável de que trata o artigo 226, §3º da CF/88.

Ainda que não apreciada pela nossa Corte Constitucional, importantes precedentes no sentido de se reconhecer a união estável (ou a produção dos efeitos inerentes a esta) entre parceiros do mesmo gênero vêm sendo produzidos pelo Superior Tribunal de Justiça. Trazemos adiante trecho de ementa de recente decisão, cujos termos parecem consentâneos com as idéias aqui defendidas [10]:

DIREITO CIVIL. PREVIDÊNCIA PRIVADA. BENEFÍCIOS. COMPLEMENTAÇÃO. PENSÃO POST MORTEM. UNIÃO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS. EMPREGO DE ANALOGIA PARA SUPRIR LACUNA LEGISLATIVA. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO INEQUÍVOCA DA PRESENÇA DOS ELEMENTOS ESSENCIAIS À CARACTERIZAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL, COM A EVIDENTE EXCEÇÃO DA DIVERSIDADE DE SEXOS. IGUALDADE DE CONDIÇÕES ENTRE BENEFICIÁRIOS.

Despida de normatividade, a união afetiva constituída entre pessoas de mesmo sexo tem batido às portas do Poder Judiciário ante a necessidade de tutela, circunstância que não pode ser ignorada, seja pelo legislador, seja pelo julgador, que devem estar preparados para atender às demandas surgidas de uma sociedade com estruturas de convívio cada vez mais complexas, a fim de albergar, na esfera de entidade familiar, os mais diversos arranjos vivenciais.

O Direito não regula sentimentos, mas define as relações com base neles geradas, o que não permite que a própria norma, que veda a discriminação de qualquer ordem, seja revestida de conteúdo discriminatório. O núcleo do sistema jurídico deve, portanto, muito mais garantir liberdades do que impor limitações na esfera pessoal dos seres humanos.

Enquanto a lei civil permanecer inerte, as novas estruturas de convívio que batem às portas dos Tribunais devem ter sua tutela jurisdicional prestada com base nas leis existentes e nos parâmetros humanitários que norteiam não só o direito constitucional, mas a maioria dos ordenamentos jurídicos existentes no mundo.

Especificamente quanto ao tema em foco, é de ser atribuída normatividade idêntica à da união estável ao relacionamento afetivo entre pessoas do mesmo sexo, com os efeitos jurídicos daí derivados, evitando-se que, por conta do preconceito, sejam suprimidos direitos fundamentais das pessoas envolvidas.

O manejo da analogia frente à lacuna da lei é perfeitamente aceitável para alavancar, como entidade familiar, na mais pura acepção da igualdade jurídica, as uniões de afeto entre pessoas do mesmo sexo. Para ensejar o reconhecimento, como entidades familiares, de referidas uniões patenteadas pela vida social entre parceiros homossexuais, é de rigor a demonstração inequívoca da presença dos elementos essenciais à caracterização da união estável, com a evidente exceção da diversidade de sexos.

Demonstrada a convivência, entre duas pessoas do mesmo sexo, pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família, haverá, por consequência, o reconhecimento de tal união como entidade familiar, com a respectiva atribuição dos efeitos jurídicos dela advindos.

A quebra de paradigmas do Direito de Família tem como traço forte a valorização do afeto e das relações surgidas da sua livre manifestação, colocando à margem do sistema a antiga postura meramente patrimonialista ou ainda aquela voltada apenas ao intuito de procriação da entidade familiar. Hoje, muito mais visibilidade alcançam as relações afetivas, sejam entre pessoas de mesmo sexo, sejam entre o homem e a mulher, pela comunhão de vida e de interesses, pela reciprocidade zelosa entre os seus integrantes.

Deve o juiz, nessa evolução de mentalidade, permanecer atento às manifestações de intolerância ou de repulsa que possam porventura se revelar em face das minorias, cabendo-lhe exercitar raciocínios de ponderação e apaziguamento de possíveis espíritos em conflito.

A defesa dos direitos em sua plenitude deve assentar em ideais de fraternidade e solidariedade, não podendo o Poder Judiciário esquivar-se de ver e de dizer o novo, assim como já o fez, em tempos idos, quando emprestou normatividade aos relacionamentos entre pessoas não casadas, fazendo surgir, por consequência, o instituto da união estável. A temática ora em julgamento igualmente assenta sua premissa em vínculos lastreados em comprometimento amoroso.

A inserção das relações de afeto entre pessoas do mesmo sexo no Direito de Família, com o consequente reconhecimento dessas uniões como entidades familiares, deve vir acompanhada da firme observância dos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da autodeterminação, da intimidade, da não-discriminação, da solidariedade e da busca da felicidade, respeitando-se, acima de tudo, o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual.

Com as diretrizes interpretativas fixadas pelos princípios gerais de direito e por meio do emprego da analogia para suprir a lacuna da lei, legitimada está juridicamente a união de afeto entre pessoas do mesmo sexo, para que sejam colhidos no mundo jurídico os relevantes efeitos de situações consolidadas e há tempos à espera do olhar atento do Poder Judiciário. (...)

A conclusão acima exposta não vincula, segundo nosso entender, apenas o Estado, mas também os particulares, como o Clube Atlhetico Paulistano, associação civil privada cuja decisão serviu de motivo para os presentes comentários.

De fato, a adoção no Brasil da chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais (a drittwirkung desenvolvida inicialmente pelo Tribunal Federal Constitucional da Alemanha) faz com que também particulares estejam vinculados a algumas normas constitucionais básicas em suas relações privadas.

Em interessante precedente, o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de se posicionar sobre o assunto, deixando clara sua adoção, ainda que pontualmente, da teoria da eficácia horizontal, como bem salientado no trecho relevante da ementa adiante trazida [11]:

EMENTA: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO.

I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.

II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.

(...)

Assim, tendo-se em conta que tanto a isonomia quanto a dignidade da pessoa humana (valor multifacetado em que podemos incluir o direito a não discriminação) possuem evidente caráter fundamental, temos que também os particulares se encontram obrigados a respeitá-las em suas relações privadas.

No caso em questão, a associação recreativa não poderia discriminar entre parceiros homossexuais e heterossexuais para efeitos de filiação.

Por certo, não se ignora que as associações civis são constituídas tendo por finalidade agregar pessoas com um propósito e características comuns, possuindo, em regra, uma amplíssima margem de discricionariedade para a eleição de seus sócios. A autonomia da vontade não pode, no entanto, suplantar direitos fundamentais protegidos por nossa Constituição, nem renegar valores que, tão relevantes, foram alçados à condição de fundamento da República (dignidade da pessoa humana, art. 1º, III) ou objetivo fundamental de nosso Estado (vedação de todas as formas de discriminação, art., 3º, IV).

No caso do clube paulistano, não nos parece admissível, segundo a posição aqui declinada, permitir a inclusão de parceiros heterossexuais como dependentes e negar o mesmo benefício para homossexuais. O critério para discriminação utilizado pelo clube baseia-se exclusivamente no gênero do solicitante, bem como na silenciosa reprovação da condução de sua vida afetiva privada e, portanto, não se mostra compatível com as normas constitucionais reiteradamente mencionadas no presente texto.


IV – Conclusão

Tecidos os argumentos acima, pensamos ser possível concluir que não existem fundamentos constitucionais sólidos para se negar a possibilidade do reconhecimento da união estável entre parceiros do mesmo gênero.

Nesse diapasão, os requisitos constitucionais e legais para a caracterização do instituto devem receber análise uniforme e neutra, não sendo relevante para seu deslinde a verificação da diversidade de gênero dos parceiros.

Ademais, dizendo respeito à isonomia e à dignidade da pessoa humana, o direito dos parceiros homoafetivos de terem sua relação reconhecida não se direciona apenas ao Estado, mas vincula também entidades particulares como associações civis e clubes recreativos, por adoção da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais no Brasil.


Notas

  1. Clube de São Paulo veta parceiro gay como dependente. Folha de São Paulo, 01/09/2010.
  2. Idem. Ibidem.
  3. DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e o Direito à Diferença. Texto obtido em http://www.mariaberenice.com.br/uploads/26_-_homoafetividade_e_o_direito_%E0_diferen%E7a.pdf, consultado em 30/09/2010, às 7:25.
  4. FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: 2008. Lúmen Juris. Págs. 36-37.
  5. Diz o caput do artigo 5º da CF/88: "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...)"
  6. 539 U.S. 558 (2003).
  7. 478 U.S. 186 (1986)
  8. Tradução livre do trecho original em inglês: "The statute at issue here makes sodomy a crime only if a person "engages in deviate sexual intercourse with another individual of the same sex." Tex. Penal Code Ann. § 21.06(a) (2003). Sodomy between opposite-sex partners, however, is not a crime in Texas. That is, Texas treats the same conduct differently based solely on the participants. Those harmed by this law are people who have a same-sex sexual orientation and thus are more likely to engage in behavior prohibited by § 21.06."
  9. Tradução livre do inglês. Trecho original: "A State can of course assign certain consequences to a violation of its criminal law. But the State cannot single out one identifiable class of citizens for punishment that does not apply to everyone else, with moral disapproval as the only asserted state interest for the law."
  10. REsp 1026981/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/02/2010, DJe 23/02/2010
  11. RE 201819, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 11/10/2005, DJ 27-10-2006.
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Sobre o autor
Victor V. Carneiro de Albuquerque

Procurador Federal. Especialista em Direito Regulatório pela Universidade de Brasília - UnB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBUQUERQUE, Victor V. Carneiro. União estável homoafetiva e direito à igualdade.: O caso do Clube Athletico Paulistano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2674, 27 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17704. Acesso em: 29 mar. 2024.

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