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Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos.

Breves notas e reflexões

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21/08/2010 às 06:14
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Seria de bom alvitre a criação de um diploma que sistematize e organize as normas – princípios e regras – regentes dos processos coletivos.

INTRODUÇÃO

Objetiva-se, por intermédio deste Trabalho, o estudo do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, que atualmente se encontra em análise no Ministério da Justiça, a fim de verificar o seu grau de contribuição à prestação jurisdicional e à efetividade do processo.

Haja vista a legislação pátria dos processos coletivos, por vezes, contraditória, lacunosa e pouco efetiva, constata-se a necessidade em inová-la e aperfeiçoá-la em pontos que não atendem à demanda da realidade social.

Diante disso, e devido à massificação dos conflitos de interesses que se tornam cada vez mais complexos, seria de bom alvitre, para parte da doutrina, a criação de um diploma que sistematize e organiza as normas – princípios e regras – regentes dos processos coletivos.

Como objetivo geral, o presente trabalho visa a analisar, à luz da efetividade dos direitos coletivos lato sensu e das disposições constitucionais, as alterações jurídicas decorrentes de eventual aprovação do Projeto do Código de Processos Coletivos. Por objetivos específicos, busca cotejar a atual legislação referente aos processos coletivos com o Projeto em comento.

Em outros termos, o alvo aqui traçado consiste em apresentar visão geral do Anteprojeto, bem como tratar de questões específicas da citada proposta. Pretende-se, assim, evidenciar, sem obviamente esgotar a complexa matéria, os pontos positivos e os que se afiguram verdadeiro retrocesso ao direito processual civil coletivo pátrio.

O presente Estudo encontra-se cindido em três capítulos.

O Capítulo 1 cuida da evolução histórica dos processos coletivos desde a sua origem que remonta o direito estadunidense até os dias de hoje. Esse escorço histórico aclarará a situação fática e jurídica em que se encontram os processos coletivos no Brasil contemporaneamente, que ensejou o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, objeto do vertente estudo.

Na segunda parte, serão apresentados alguns dos pontos mais relevantes do Anteprojeto, dando-se especial atenção às modificações por ele alvitradas. Ademais, nesta seção, objetivando realçar as novidades trazidas pelo Anteprojeto em análise, cotejar-se-á a realidade hodierna dos processos coletivos – leis, jurisprudência e entendimentos doutrinários - com os termos do que se propõe no diploma em comento.

O Capítulo 3, por seu turno, versará sobre reflexões imbuídas de espírito crítico acerca das principais questões tratadas no capítulo precedente. Com isso, em cada item haverá conclusão específica sobre os méritos, falhas ou insuficiências do Anteprojeto. Ou seja, será cada item ou considerado como avanço ou como retrocesso no que que tange à evolução do direito processual coletivo brasileiro. Para tanto, será trazida opinião de conceituados estudiosos dos respectivos temas, que teceram pareceres sobre o teor do Anteprojeto.

Findando o conteúdo investigatório, nas considerações finais constará conclusão acerca de todo o Anteprojeto de Código de Processos Coletivos, que, sintetizando o expendido durante o desenvolvimento da pesquisa, manifestará o grau de contribuição ou atraso oriundo do diploma em análise.


Capítulo 1

DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DOS PROCESSOS COLETIVOS

1.1.. DIREITOS COLETIVOS LATO SENSU

A fim de se entender o que vem a ser os processos coletivos, bem como qual é a sua situação atual no ordenamento jurídico brasileiro, faz-se necessário, de plano, conhecer a evolução histórica dos direitos coletivos em sentido amplo, que são tutelados pela ação coletiva.

Na perspectiva moderna do processo que é visto como instrumento para a concreção do direito substantivo - a sua razão de ser -, e não mais como um fim em si mesmo, o estudo de qualquer instituto processual deve sempre ter em mira e encetar pela definição do direito material tutelado [01]. As normas processuais devem ser criadas, modificadas e mantidas consoante as necessidades de efetivação do direito material.

Portanto, o conceito de processos coletivos está umbilicalmente ligado ao dos direitos coletivos em sentido amplo.

Os direitos que serão neste subitem analisados, em sua perspectiva histórica, são catalogados como de 2ª e 3ª dimensões ou gerações, na evolução dos direitos fundamentais. Eles compõem os chamados direitos coletivos lato senso.

Para melhor compreensão da realidade dos direitos em comento, relevante se faz proceder a sucinto exame retrospectivo da evolução dos direitos fundamentais, em que se incluem os direitos coletivos em sentido amplo.

As declarações dos Direitos Fundamentais - Estados Unidos [02] - e dos Direitos do Homem e do Cidadão – França -, proclamadoras dos princípios da liberdade, igualdade, propriedade e legalidade, foram as primeiras a proclamar em verdade o ideário dos direitos humanos.

Esses direitos tornaram-se conhecidos, pela doutrina, como os de 1ª Geração ou Dimensão, caracterizados pelo dever de abstenção do Estado perante os cidadãos. Por isso, são denominados direitos negativos ou de liberdade [03]. São próprios do Estado Liberal, inspirados no ideal Iluminista, segundo o qual tais direitos seriam suficientes para que o indivíduo atinja a felicidade.

Posteriormente, percebeu-se que não era possível garantir a liberdade de fato e diminuir a exploração da maioria pela minoria somente por meio da abstenção estatal nas relações interindividuais. Diversos movimentos sociais eclodiram durante o Séc. XIX denunciando os vícios do liberalismo puro, que favorecia somente a burguesia em detrimento do proletariado [04].

Em 1917, os direitos fundamentais sociais foram declarados reconhecidos formalmente pela Constituição mexicana, que outorgou ao Estado o encargo de realizar prestações positivas intervindo na ordem econômica e social. Logo, em 1919, a famosa Constituição alemã de Weimar caracterizou-se por instituir direitos coletivos [05]. No Brasil, esses direitos foram inscritos, pela primeira vez, na Constituição de 1934 [06].

O Estado, então, passou a ter obrigações de dar e fazer, visando a mudar a sociedade. Surgiram, assim, os direitos dos trabalhadores, que substitui a simples liberdade de trabalhar ou não dos direitos de 1ª Dimensão, de exigirem determinadas condições e limites ao seu labor. Surgia, nas sociedades capitalistas, o Estado de Bem-Estar Social, com uma maior participação do Estado na condução da vida em sociedade [07].

Esses são conhecidos como direitos de 2ª Geração ou Dimensão.

Quando parecia que o trilho da evolução dos direitos fundamentais já havia sido cabalmente percorrido, surgiram os direitos de 3ª Geração ou Dimensão.

No Século XX, novos conflitos no modelo socioeconômico vigente evidenciaram a necessidade da criação de outros direitos fundamentais. A guerra fria, que trouxe a iminente ameaça da destruição da humanidade por meio do desenvolvimento da energia nuclear, bem assim o vertiginoso crescimento das organizações transnacionais, que passaram a explorar descomedidamente os recursos naturais de países em desenvolvimento, são exemplos desses impasses. Em tal período, recrudesceram os interesses ou direitos [08] transindividuais ou metaindividuais que abrangem categorias, grupos, classes de pessoas, por vezes, deveras numerosas. Tais interesses sempre têm, por fim, a qualidade de vida.

Assim, os direitos humanos foram ampliados a fim de abrangerem os direitos ao meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado, à completa informação, à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, à qualidade de vida, à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural, etc. Essa terceira geração de direitos foi denominada pela doutrina como "de Solidariedade" ou "de Fraternidade". Isso porque há tão-somente um vínculo de fato – e não jurídico - entre os integrantes do grupo, da classe de pessoas ou da categoria, que são igualmente protegidos [09].

Após tais avanços, foram cabalmente acolhidos pelo teoria constitucional os direitos coletivos em sentido amplo, objetos do presente trabalho.

Nesta quadra do vertente trabalho, afigura-se mister, para a exata compreensão do que será exposto deixar claro o significado dos direitos coletivos lato sensu ou em sentido amplo, bem como interesses difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos. Todos eles são frutos da evolução dos direitos humanos nos moldes expendidos.

1.1.1. Dos direitos coletivos stricto senso

Antes de conceituar e diferenciar os direitos citados, deve-se lembrar que em alguns casos a sua distinção em relação aos coletivos se mostra difícil.

Impende, assim, atentar para importante lição apresentada por Demian Guedes, a saber:

Cabe advertir que se apresenta inútil erguer-se um muro entre interesses difusos e coletivos, na medida em que sua diferenciação no caso concreto muitas vezes se apresenta inviável, uma vez que ambos são espécies de interesses metaindividuais – o que não ocorre com os direitos individuais homogêneos, que se apresentam como verdadeiros direitos individuais, sendo coletiva apenas a forma de sua tutela em juízo. Porém, em que pese a similitude daqueles interesses, vale apontar algumas marcas essenciais de cada um, no tocante ao seu surgimento e às suas características fundamentais [10].

Os direitos coletivos, em sentido estrito, apresentam-se como espécie intermediária entre os aqueles de natureza pública em geral e os de natureza privada.

A fim de estancar qualquer hesitação sobre o que são os direitos coletivos, cabe visualizar o Código de Defesa do Consumidor [11], que em seu art. 81, inciso II, conceitua [12] tais direitos como sendo:

II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.

Verifica-se, portanto, que são características elementares desses direitos a transidividualidade com determinação relativa dos titulares (não têm titular individual e a ligação entre os vários titulares coletivos decorre de uma relação jurídica-base. Também se pode asserir, do conceito acima citado, que são interesses indivisíveis (não podem ser satisfeitos nem lesados senão em forma que afete a todos os possíveis titulares) [13].

Como exemplos desses direitos podem ser citados os consumidores lesados, os aposentados vítimas de uma norma inconstitucional que os fere, os trabalhadores de uma empresa que institui jornada de trabalho claramente contrária aos direitos consagrados na Consolidação da Legislação Trabalhista, etc. O importante para essa espécie é que se trate de um grupo determinado ou determinável de pessoas interessadas e afetadas [14].

1.1.2. Dos direitos difusos

Os direitos difusos, por sua vez, são delimitados pelo Código de Defesa do Consumidor, no parágrafo único do artigo 81, como sendo "os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato".

Segundo Celso Antonio Pacheco Fiorillo, "o direito difuso possui a natureza de ser indivisível. Não há como cindi-lo. Trata-se de um objeto que, ao mesmo tempo, a todos pertence, mas ninguém em específico o possui" [15].

Extrai-se do acervo jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal:

E M E N T A: MEIO AMBIENTE - DIREITO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE (CF, ART. 225) - PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE METAINDIVIDUALIDADE - DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NOVÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE - NECESSIDADE DE IMPEDIR QUE A TRANSGRESSÃO A ESSE DIREITO FAÇA IRROMPER, NO SEIO DA COLETIVIDADE, CONFLITOS INTERGENERACIONAIS – (...) - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, a especial obrigação de defender e preservar, em benefício das presentes e futuras gerações, esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ 164/158-161). O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas em geral" [16].

Os interesse difusos possuem características marcantes de abstração, consistentes na indeterminação do titular da relação jurídica de direito material. Ademais, o bem jurídico a ser protegido é indivisível – sendo essa a sua similitude em relação aos interesses coletivos [17].

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Os interesses difusos são aqueles pertencentes a grupos não determinados de pessoas como preceitua José Marcelo Menezes Vigliar, in verbis:

São interesses menos determinados de pessoas, sendo que entre elas não há vínculo jurídico ou fático muito preciso. Eles perfazem um conjunto de interesses individuais, no qual cada um, dos elementos do grupo indeterminado de pessoas, possui o seu interesse, mas que guardam pontos comuns entre si, criando, assim, o interesse difuso (...) [18].

Ademais, a Lei nº 8.078 [19], conhecida como Código de Defesa do Consumidor, assevera, por mais de uma vez, que as relações consumeristas não se restringem àquele indivíduo que se direciona à loja e adquire determinado produto em contraposição ao comerciante que o vendeu. Nesse sentido, a coletividade de consumidores ganha proteção específica [20].

E, por derradeiro, a Lei nº 8.884 [21] reconhece que a infração contra a ordem econômica encaixa-se na órbita dos interesses em tela, da mesma forma da recente Lei nº 9605 de 1998, com o escopo da proteção ao meio ambiente.

A título de exemplo dos direitos difusos seguem as seguintes situações: um desastre ecológico numa base de extração de petróleo ou até a veiculação de propaganda enganosa por empresa prestadora de serviços.

Acerca do tema em comento, interessante é a lição extraída de decisão do Supremo Tribunal Federal:

Interesses difusos são aqueles que abrangem número indeterminado de pessoas unidas pelas mesmas circunstâncias de fato e coletivos aqueles pertencentes a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. A indeterminidade é a característica fundamental dos interesses difusos e a determinidade a daqueles interesses que envolvem os coletivos [22].

Por fim, vem pertinentes os dizeres de Luís Roberto Barroso ao distinguir os interesses difusos dos coletivos stricto sensu, segundo os quais "assim como os difusos, os interesses coletivos em sua acepção estrita também são indivisíveis relativamente ao seu objeto; mas a diferença em relação àqueles é que se está diante de uma pluralidade determinada ou determinável de pessoas, todas ligadas em virtude da mesma relação jurídica básica" [23].

1.1.3. Dos direitos individuais homogêneos

A característica de indivisibilidade do bem tutelado visualizada nos direitos difusos e coletivos em sentido estrito não se aplica aos direitos individuais homogêneos. Estes, conforme o preceituado pelo Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 81, inciso III, são os "decorrentes de origem comum".

Verifica-se, assim, que são interesses pertencentes a titulares determináveis ou determinados ligados por uma situação de fato comum entre si, isto é, compartilhada por todos. São uniformes e acidentalmente coletivos [24].

Tais direitos são, em sua essência, isto é, ontologicamente, meros direitos subjetivos individuais comuns [25].

Eles, apesar de serem em sua natureza direitos individuais, são reunidos a fim de serem evitadas decisões conflitantes e contraditórias, bem assim em homenagem ao princípio da economia processual e otimização da prestação jurisdicional. Poderia, assim, cada um dos seus titulares buscar os seus direitos de maneira individual. Todavia, em virtude de inúmeros motivos, dentre os quais podem ser citadas a pequena monta de dano causado a cada um, a sua reparação é buscada coletivamente [26].

São exemplos desses direitos: impugnação pelos contribuintes da exação tributária tida como inconstitucional, ou o dos consumidores a serem indenizados pela quantidade menor de produto existente na embalagem [27].

1.1.4. Direitos coletivos em sentido amplo e ordenamento jurídico

De acordo com o que foi exposto, em resumo, vê-se que os interesses coletivos lato sensu, em sua totalidade, a que se fez menção, encontram-se albergados pelo ordenamento jurídico pátrio.

Não obstante o reconhecimento desses direitos pelo Estado, este somente criou mecanismos processuais eficazes para a efetivação dos direitos coletivos em sentido amplo quando da terceira dimensão de direitos. Até então era aceita a errônea idéia segundo a qual os interesses coletivos não eram juridicamente tuteláveis, sob a falácia de que dependiam de fatores extrajurídicos para a sua concreção [28]. Permaneceram assim os direitos fundamentais descritos nesse subitem por muito tempo descobertos de proteção jurídica eficaz, razão por que não foram respeitados durante extenso lapso temporal.

1.2.. SURGIMENTO E EVOLUÇÃO DOS PROCESSOS COLETIVOS

Como dito acima, o processo é instrumento, o que não lhe tira a sua importância, mas, ao contrário, acentua o seu valor na atividade jurisdicional, vez que ele tem a notável função de garantir a concretização dos direitos no mundo fático.

De nada adianta o reconhecimento formal de inúmeros direitos, se não há meios para que estes sejam cumpridos na prática. Nunca é demais rememorar que direitos garantidos no papel, sem mecanismos garantidores da sua observância, não passam de boas recomendações ou conselhos [29].

Como brilhantemente asseverou Norberto Bobbio: "Finalmente, descendo do plano ideal ao plano real, uma coisa é falar dos direitos do homem, direitos sempre novos e cada vez mais extenso, e justificá-los com argumentos convincentes; outra coisa é garantir-lhes uma proteção efetiva" [30].

Sob esse prisma, o da efetividade, é que ocorreu a evolução dos processos coletivos. O processo civil, depois do surgimento dos direitos coletivos em sentido amplo, teve que ser remodelado. Há que se lembrar que o atual Código de Processo Civil, de 1973, tem cunho marcadamente individualista, assim como a legislação tradicional do processo civil, que fora criada para tutelar os direitos individualistas de primeira dimensão.

Discorrendo sobre a incompatibilidade do processo civil individual para a proteção dos direitos coletivos em sentido amplo, interessante é o seguinte excerto da lavra do professor Álvaro Luiz Valery Mirra:

Como apontado pela doutrina especializada, o processo civil, entre nós, na sua origem e nas codificações que se sucederam, foi estruturado para ser palco e veículo de disputas envolvendo direitos individuais e conflitos intersubjetivos, dentro de uma concepção individualista e formal, de inspiração liberal, que invariavelmente privilegiava a tutela de situações de confronto entre indivíduos isolados ou dispostos em grupos bem definidos ou entre estes e o Estado, considerado ele mesmo, no âmbito processual, uma pessoa singular. O próprio direito de ação inclusive, norma tradicional do processo civil individualista, em tal contexto, sempre foi definido como um direito subjetivo, colocado à disposição da pessoa, a fim de que esta faça valer seus direitos próprios e individuais contra todos que porventura os violem [31].

Com o decorrer do tempo, foram sendo criados e colocados à disposição dos cidadãos meios por intermédio dos quais era e é possível tutelar e fazer valer os interesses coletivos lato sensu, tornando imperativos os mandamentos estatais no sentido de se preservar tais bens – que atualmente se enquadram na categoria dos bens jurídicos, isto é, juridicamente tuteláveis.

Ademais, como bem ensina Luiz Guilherme Marinoni,

além da necessidade de um processo civil que pudesse dar conta de direitos transindividuais, percebeu-se que ele também deveria voltar-se aos direitos que podem ser lesados em face dos conflitos próprios à sociedade de massa. A sociedade moderna abre oportunidade a situações em que determinadas atividades podem trazer prejuízo aos interesses de grande número de pessoas, fazendo surgir problemas ignorados nas demandas individuais [32].

À luz dos objetivos referidos, nos Estados Unidos, no final da década de 40, passou-se a disciplinar as ações coletivas nas Federal Rules [33], maximizando, assim, a tradição herdada do direito inglês [34]. Esse instrumento tem sido utilizado por consumidores em grupos organizados ou informais, ou até mesmo isoladamente, com o intento de pleitearem indenização por um dano uniformemente causado ou então homogeneamente sofrido.

Todavia, como pondera Ada Pellegrini Grinover,

As dificuldades práticas, quanto à configuração e requisitos de uma ou outra de suas categorias, com tratamento processual próprio, levaram o Advisory Committee on Civil Rules a modificar a disciplina da matéria na revisão feita pels Federal Rules de 1966, as quais estão sendo novamente trabalhadas para eventuais modificações [35].

O Bill of Peace, do direito inglês, no Século XVII, já admitia a defesa judicial dos interesses metaindividuais, com inconveniente de que todos os interessados comparecessem ao tribunal [36].

Segundo Marilia de Castro Neves Vieira,

O VII Congresso Internacional de Direito Processual que se realizou em Würzburg, Alemanha Ocidental, entre 12 e 17 de setembro de 1983 tratou, entre outros, do tema da legitimidade ativa na tutela dos interesses difusos. A relatoria do tema Proteção dos interesses difusos, fragmentados e coletivos no processo civil coube aos Profs. Mauro Cappelletti, de Florença, e Bryan Garth, de Indiana [37].

O Brasil, por seu turno, foi o primeiro país integrante do sistema civil law a introduzir em seu ordenamento jurídico a tutela dos interesses difusos e coletivos, de natureza indivisível.

A tutela dos direitos transindividuais iniciou-se a partir da Constituição de 1934, que, influenciada pela Constituição Alemã de Weimar, instituiu a ação popular [38]. Tal instrumento após ser suprimido pela Constituição totalitária de 1937 foi novamente inserido no ordenamento jurídico por meio da Constituição de 1946.

O principal diploma legislativo formulado especificamente sobre o tema é a Lei da Ação Civil Pública [39], que já estava prevista na Lei n.º 6938 de 1981.

Em 1988, soergueu-se ao nível constitucional a defesa de tais direitos [40].

Sobre as ações constitucionais, gênero do qual faz parte a ação civil pública, o professor Paulo de Tarso Brandão apresenta brilhante lição, reforçando a fileira daqueles que tutelam a não aplicação dos valores individualistas na tutela dos direitos coletivos:

Ressaltada a natureza jurídica dos instrumentos processuais conhecidos por Ações Constitucionais, fácil é concluir que eles necessitam urgentemente receber o tratamento no interior de uma teoria geral própria, abandonando-se definitivamente a teoria geral do Direito Processual Civil. (...) A necessidade da construção de uma teoria geral para os instrumentos destinados à tutela dos denominados ´novos´ direitos está estreitamente ligada aos temas da efetividade dos direitos e do acesso à justiça, que são temas, igualmente, co-relacionados entre si [41].

Em 1990, por fim, adotou-se o Código de Defesa do Consumidor, cujas disposições processuais são aplicáveis à tutela de todo e qualquer interesse ou direito transindividual. Tal Código inseriu no âmbito dos processos coletivos a defesa dos denominados interesses individuais homogêneos, que possibilitaram ações indenizatórias dos prejuízos individualmente sofridos, o que no direito norte-americano corresponde às class actions for damages [42].

A Constituição da República de 1967, com redação empregada pela Emenda Constitucional nº 1 [43], determinava, em seu artigo 153, § 31 que "qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise anular atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas".

A proteção aos direitos metaindividuais somente adquiriu maior solidez com a edição da Lei nº 4717 [44], quando se conceituou o que poderia ser considerado patrimônio. Também, em tal diploma legislativo aumentou-se o leque de legitimados para a sua propositura, como se verifica da leitura do seu artigo 1º:

Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista (Constituição, art. 141, § 38), de sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos.

No que tange à atuação do Ministério Público, cumpre gizar que, não obstante não ter sido prevista a sua legitimidade para a propositura da demanda, há norma no sentido de que deve ele assumir o pólo ativo nos casos de eventual desistência da ação pelo autor. Outrossim, estabeleceu-se a atuação ministerial como custos legis.

Pode-se considerar que a Lei da Ação Popular trouxe progresso no que tange à defesa dos direitos coletivos em sentido amplo. Todavia, avançou menos do que devia e podia, pecando pela timidez, acanhamento e parcimônia.

Luiz Guilherme Marinoni comentando-a afirma que

embora represente louvável homenagem à democracia participativa, permitindo que qualquer cidadão possa ir a juízo para a proteção do patrimônio público, é certo que o cidadão normalmente não tem condições (econômicas, jurídicas e mesmo interesse efetivo) de postular, perante o Judiciário, em oposição à Administração Pública ou a grandes empresas (eventualmente beneficiadas pelo ato lesivo). Essa dificuldade, assim, praticamente anula o benefício introduzido pela Lei da Ação Popular, muito embora ainda se encontrem no foro algumas ações específicas que dele se valham para proteção dos interesses públicos [45].

Em 1981, a Lei n.º 6938, que instituiu a política nacional do meio ambiente, concedeu inicialmente a legitimidade ao Ministério Público para buscar a responsabilização civil do causador do dano ambiental.

Em que pese todos os avanços na legislação pátria descritos acima, o marco cabal nessa evolução do direito processual coletivo no Brasil é a Lei da Ação Civil Pública, de 1985 – n.º 7347. Este diploma legislativo, como o próprio nome indica, tratou da ação civil pública, que visa a tutelar os interesses coletivos em sentido amplo, com abrangência muito ampla em relação não só aos legitimados à propositura da ação (artigo 5º), mas também no que tange ao seu objeto (artigo 1º). Consagrou-se, em seu artigo 1º, a proteção ao meio ambiente, consumir e bens e direitos de valor paisagístico, artístico, estético, histórico e turístico.

A Constituição da República hodierna, promulgada no ano de 1988, incluiu em seu texto, como princípio fundamental, a cidadania, erigindo à categoria das garantias individuais, bem como a defesa dos consumidores e a possibilidade do exercício da gestão participativa.

Um dos principais meios para a efetivação desta democracia, vale dizer, é a ação civil pública, por meio da qual o cidadão pode em questões de interesse público, por meio da atuação do Poder Judiciário, fazendo valer os seus direitos.

Nesse sentido, cabe colacionar importante asseveração de Hugo Filardi:

Sob o prisma da democracia participativa, onde todos devem ter respeitados seus direitos fundamentais e a possibilidade de questionar e influir nas decisões governamentais, a Ação Civil Pública, calcada na legitimidade adequada e na representatividade e provimentos jurisdicionais aproveitáveis aos tutelados, mostra-se um eficaz instrumento na distribuição de justiça e na retomada do respeito e confiança dos indivíduos nas instituições estatais. (...) Portanto, a tutela coletiva desponta como meio justo de solução destes conflitos, e o Poder Constituinte originário a consagrou também com a previsão dos institutos do mandado de segurança coletivo e o mandado de injunção coletivo [46].

A CRFB, ademais, ao dispor sobre as atribuições e poderes do Ministério Público, entregou a esta instituição a proteção dos interesses metaindividuais, consoante o inciso III, do art. 129, a saber:

promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.

Não se pode olvidar, outrossim, a garantia fundamental da ação popular trazida pela Lei Maior, em seu art. 5, LXXIII, que também tem por finalidade a proteção de interesses difusos.

O professor Alexandre de Moraes ao discorrer sobre a ação popular afirma o seguinte:

A ação popular popular, juntamente com o direito de voto em eleições, plebiscitos e referendos, e ainda a iniciativa popular de lei e o direito de organização e participação de partidos políticos, constituem formas de exercício da soberania popular (CF, arts. 1º e 14), pela qual, na presente hipótese, permite-se ao povo, diretamente, exercer a função fiscalizatória do Poder Público, com base no princípio da legalidade dos atos administrativos e no conceito de que a res pública (República) é patrimônio do povo [47].

De acordo com Gianpaolo Poggio Smanio,

Notamos, então, pelos dois dispositivos constitucionais analisados, que a Constituição Federal não somente reconheceu a existência dos interesses difusos e coletivos mas também estabeleceu um "sistema de garantia" desses interesses, definindo titulares do direito à proteção e instrumentos jurídicos de proteção, ao conferi-la ao Ministério Público, por intermédio do inquérito civil e da ação civil pública, e ao cidadão, por meio da ação popular [48].

Prosseguindo na direção da efetiva tutela dos direitos metaindividuais e em cumprimento ao disposto na CRFB, surgiu o Código de Defesa do Consumidor, em 11.09.1990, por intermédio da Lei nº 8.078. O seu principal progresso, no que se refere à ação coletiva, foi o de estender a incidência da Ação Civil Pública a todo direito difuso ou coletivo ou individual homogêneo, ou seja, a todo o interesse coletivo em sentido amplo.

Hoje, em razão da alteração do artigo 1º da Lei da Ação Civil Pública, este diploma legislativo também dispõe que a tutela da Ação Civil Pública serve para a proteção de qualquer interesse difuso ou coletivo, inclusive por infração da ordem econômica e da economia popular.

Após a promulgação do Código de Defesa do Consumidor, consolidou-se um sistema integrado de processos coletivos, também conhecido por microssistema jurídico de tutela transindividual. Isso tendo em vista o preceituado nos arts. 90 do Código de Defesa do Consumidor 21 da Lei da Ação Civil Pública:

Art. 90. Aplicam-se às ações previstas neste título as normas do Código de Processo Civil e da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições.

Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor [49].

Outro considerável avanço do Código de Defesa do Consumidor é apontado por Luiz Guilherme Marinoni:

De início a Lei da Ação Civil Pública foi concebida para regular apenas as ações de responsabilidade civil, de obrigação de fazer e de não fazer, e as cautelares. Hoje, porém, em vista do art. 83 do CDC – que consagra o direito à adequada tutela jurisdicional -, são cabíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada e efetiva tutela dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos (art. 81 do CDC). Aliás, não seria razoável excluir os direitos individuais que podem ser lesados em face das relações da sociedade de massa (ditos direitos individuais homogêneos – art. 81, parágrafo único, III, do CDC) do campo de incidência da ação coletiva [50].

Rodolfo Camargo Mancuso também traz elucidativas lições sobre o objeto atual da ação civil pública:

Hoje pode-se dizer que o objeto da ação civil pública é o mais amplo possível, graças à (re) inserção da cláusula "qualquer outro interesse difuso ou coletivo" (inc. IV do art. 1.º da Lei 7.347/85, pelo art. 110 do CDC). Essa abertura veio, na seqüência, potencializada por alguns adendos: a) no caput do art. 1º da Lei 7.347/85 a responsabilidade ali referida passou a estender-se aos danos morais (e ao somente aos patrimoniais), conforme redação da Lei nº 8.884/94; b) a ação pode também referir-se à "infração da ordem econômica e da economia popular" (inc. V do art. 1.º da Lei 7.347/85, cf. M.P. 2180-35/2001); c) por conta do art. 6º do Estatuto da Cidade (lei 10.257/2001), tornou-se possível, via ação civil pública, a defesa da ordem urbanística [51].

Outras leis outrossim adotaram a defesa dos interesses transindividuais.

Em apertada síntese, esse é o panorama do atual microssistema jurídico das ações coletivas no Brasil, com as quais é possível tutelar todos os direitos coletivos lato sensu, em que se incluem os interesse coletivos stricto sensu, os difusos e os individuais homogêneos.

Em vista dessa conjuntura, surgiu a idéia da criação de um Código Brasileiro de Processos Coletivos.

A elaboração do Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América, aprovado nas Jornadas do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, na Venezuela, em outubro de 2004, também pode ser considerado um dos motivos ensejadores do Anteprojeto. Esse Código serviu como modelo do Anteprojeto, de modo a tornar mais homogênea a defesa dos interesses e direitos transindividuais [52].

Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe e Antonio Gidi elaboraram a primeira proposta de um Código Modelo, proposta essa que aperfeiçoou as regras do microssistema brasileiro de processos coletivos, sem desprezar a experiência das class-actions norte-americanas. Boa parte dessas regras, que foram apefeiçoadas com a participação ativa de outros especialistas ibero-americanos (e de mais um brasileiro, Aluísio de Castro Mendes), passaram depois do Código Modelo para o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos [53].

O Código Modelo foi discutido, no final de 2003, ao ensejo do encerramento do curso de pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, por professores e pós-graduandos da disciplina "Processos Coletivos", ministrada por Ada Pellegrini Grinover e Kazuo Watanabe, para verificar como e onde suas normas poderiam ser incorporadas, com vantagem, pela legislação brasileira. E assim surgiu a idéia da elaboração de um Código Brasileiro de Processos Coletivos, que aperfeiçoasse o sistema, sem desfigurá-lo. Posteriormente, ao final do curso de 2004, outra turma de pós-graduandos, além da primeira, trouxe aperfeiçoamentos à proposta, agora também contando com a profícua colaboração de Carlos Alberto Salles e Paulo Lucon. Nasceu assim a primeira versão do Anteprojeto, trabalhado também pelos mestrandos, doutorandos e professores da disciplina, durante o ano de 2005 [55].

O Instituto Brasileiro de Direito Processual, por intermédio de seus membros, ofereceu diversas sugestões. No segundo semestre de 2005, o texto foi analisado por grupos de mestrandos da UERJ e da Universidade Estácio de Sá, sob a orientação de Aluísio de Castro Mendes, daí surgindo mais sugestões. O IDEC também foi ouvido e aportou sua contribuição ao aperfeiçoamento do Anteprojeto. Colaboraram na redação final da primeira versão do Anteprojeto juízes das Varas especializadas já existentes no país. Foram ouvidos membros do Ministério Público da União, do Distrito Federal e de diversos Estados, que trouxeram importantes contribuições [56].

A primeira versão do Anteprojeto foi apresentada pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual ao Ministério da Justiça, em dezembro de 2005. Submetido a consulta pública, sugestões de aperfeiçoamento vieram de órgãos públicos (Casa Civil, Secretaria de Assuntos Legislativos, PGFN e Fundo dos Interesses Difusos), bem como dos Ministérios Públicos de Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo. As sugestões foram criteriosamente examinadas por professores e pós-graduandos da turma de 2006 da disciplina "Processos Coletivos" da Faculdade de Direito da USP e diversas delas foram incorporadas ao Anteprojeto. Este foi reapresentado ao Ministério da Justiça, como versão final, em dezembro de 2006, estando lá até hoje para a devida análise [57].

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Sobre o autor
Rafael Osvaldo Machado Moura

Analista Judiciário, lotado na 2Vara do Trabalho de São José dos Pinhais-PR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOURA, Rafael Osvaldo Machado. Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos.: Breves notas e reflexões. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2607, 21 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17245. Acesso em: 28 mar. 2024.

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