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Tessitura e contextura.

Coerência, texto e contexto sociocomunicativo de uma sentença judiciária. Estudo de caso: "O celular do carpinteiro"

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Introdução

O presente trabalho está centrado na percepção da estrutura, organização e conexidade subjacente à sentença "O Celular do Carpinteiro", proferida pelo magistrado Gerivaldo Alves Neiva, juiz de direito em Conceição do Coité, Bahia. Trata-se aqui da análise de coerência lingüística e meta-lingüística de uma decisão processual sobre a utilização adequada de um aparelho celular, que envolve o comprador, o marceneiro José Gregório Pinto e incide na responsabilidade social do fabricante, a SIEMENS Indústria Eletrônica S. A., do fornecedor, as Lojas Insinuante Ltda., e da empresa credenciada como assistência técnica, a Starcell Computadores e Celulares.

O que nos chama atenção ao texto do meritíssimo são os efeitos perlocutórios, i. e., os meios de orientação comunicativa perseguidos pelo texto, pois os argumentos retidos em função do caso (o defeito) e das circunstâncias da enunciação (quem pede e contra quem) repousam sobre as funções sociais dos litigantes. Daí o título: "Tessitura e contextura: análise de texto, contexto, pré-texto e pós-texto", porque o objeto, a matéria de que se apropria (neste caso, a sentença) é visto em três perspectivas: a) primeiro, uma abordagem sobre a sua função referencial, denotativa e cognitiva (contexto); b)seguida de uma análise de suas motivações e/ou intenções (pré-texto); e, c) de suas implicações ulteriores (pós-texto), afinal trata-se de uma sentença e o discurso jurídico é, fundamentalmente, imperativo; exprime o caráter de mando e se impõe como determinação de autoridade.


Linguagem Sistêmica e Outros Pródromos: situando a questão a partir da teoria

Aristóteles nos distinguiu três gêneros retóricos: o epidítico para as ocasiões solenes, o deliberativo para o que convém fazer e não fazer e, por fim, o gênero judiciário, determinante do justo e do injusto. Ademais, o estagirita percebeu a retórica como "a faculdade de descobrir, especulativamente, aquilo que, em cada caso, é apropriado para persuadir" (Retórica: 1, 2, 25; grifos nossos). Em momentos seguintes, a retórica também foi chamada de técnica normativa, que orienta o processo e o produto, assim, o estudo retórico incide sobre a "unidade lingüística comunicativa básica": o texto. Deste modo, antes que passemos a análise proposta, ou seja, a análise do nosso objeto enquanto acontecimento discursivo, por conseguinte gênero retórico, é imperioso situar o problema e, muito embora seja uma trivialidade, perguntar -se-ia uma vez mais: o que é texto?

O que faz a junção de palavras (substantivos, artigos, adjetivos, pronomes, numerais,verbos, advérbios, preposições, conjunções) e suas formações nucleares (frase, oração e período) ser, afinal, considerada texto? Etimologicamente, nos diz Antônio Houaiss, texto surge de textus, do latim: narrativa, exposição, composição, organização do pensamento em qualquer peça escrita ou declamada, ou seja, o texto é parte essencial da língua falada e escrita (Houaiss, 2001: 2713).

Talvez por isto, a Antigüidade Clássica consagrava a união entre ditos e escritos, uma vez que os textos eram compostos fundamentalmente para ser oralizados. Assim, o lector, i. e., o oralizador era tão importante quanto o scriptor. Entretanto, para a análise contemporânea, é necessário recolocar a proposta de Ferdinand de Saussure, responsável distinção entre lingüística da língua e lingüística da fala, uma vez que é impossível reunir sob um mesmo signo língua, escrita e fala; muito embora Saussure considere que:

"a palavra escrita se mistura tão intimamente com a palavra falada , da qual é a imagem, que acaba por usurpar-lhe o papel principal; terminamos por dar maior importância a representação do signo vocal que o próprio signo" (Saussure, 2004: 34).

Já R. L. Trask, em seu Key Concepts in Language and Linguistics, nos diz que o texto, além das funções já descritas, contém "a knowledge begin and end" (Trask, 2004: 291), portanto, o texto carrega uma linguagem que o torna objetivo naquilo que se presta o texto, e, dito de outra maneira, isto quer dizer o seguinte: em todo texto há de haver tessitura e contextura, enfim, textualidade: uma porção própria que lhe confere sentido. Por outro lado, acresce que para efeito da análise se empreende aqui, é importante considerarmos as funções textuais, ou como alguns estudiosos preferem: discursos a textos.

Então cabe aqui mencionar Émile Benveniste, quem buscou mapear a trajetória da palavra à frase e daí a constituição dos discursos até chegar ao pólo hermenêutico e, finalmente, à realidade extralinguagem (Benveniste, 1991; Riccouer, 2005). E já Michel Foucault asseverava: "Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados na medida em que eles provêm da mesma formação discursiva" (Foucault, 2004: 153), mais especificamente Guespin distinguiu: "Um olhar lançado sobre um texto do ponto de vista de sua estruturação em língua faz dele um enunciado; um estudo lingüístico das condições de produção desse contexto fará dele um discurso" (Charadeau & Maingueneau apud Guespin, 2004: 169).

Ademais de estas teorias, acresce que por volta da década de 1960 o lingüista britânico Michael Halliday começou a desenvolver uma análise gramatical denominada de gramática de escalas e categorias, que viria a ser chamada posteriormente de lingüística sistêmica, pois Halliday apresentava três metafunções para a língua:

a)função ideacional: também chamada de função experencial, pois está ligada à experiência empírica e à mentalidade de cada um;

b)função textual: é a integralização de todas as partes constituintes do texto, com esta função Halliday busca perceber a relação de coerência e coesão no contexto da fala e da escrita; e,

c)função interpessoal: esta, por sua vez, centra-se no âmbito das relações sociais, mas também aponta para termos de persuasão.

Observe que as funções de Halliday servem para integrar "informações mais estritamente estruturais com fatores abertamente sociais" porque um de seus interesses centrais é o "propósito do uso lingüístico" (Trask, op. cit.: 184, passim). Quanto aos fatores estruturais, note-se que a coerência, como parte da função textual, é uma peça chave ao "fazer sentido" e dela depende o sucesso da compreensão do texto, embora saibamos que para isto são necessários vários fatores, muitos dos quais sem interesse lingüístico, a exemplo da nossa visão de mundo. Todavia, é preciso reafirmar: o texto como acontecimento discursivo, diria Foucault, tem conexidade suficiente para quem o lê, daí percebe-se porque as análises de coerência vêm pós-postas às análises dos mecanismos coesivos nos estudos de Halliday — afinal, o sentido do termo coesão foi elaborado por ele próprio.


O Celular do Carpinteiro: análise do discurso ou a arte de bem dizer

Depois de considerado o referencial teórico, façamos tal qual o meritíssimo juiz Gerivaldo Alves Neiva, vamos direto ao assunto. Em 19 de abril de 2005, o senhor José Gregório Pinto, marceneiro de Conceição do Coité, interior da Bahia, comprou nas Lojas Insinuante um aparelho móvel celular fabricado pela SIEMENS, modelo A52. Depois de apenas dois meses de uso, o celular apresentou defeito e, depois de levado à assistência técnica autorizada pelo fabricante, não funcionou mais. Diante desta situação, o marceneiro Gregório Pinto "tentou fazer um acordo, mas não quiseram os contrários, pedindo que o caso fosse ao Juiz de Direito" (Neiva, www.amab.com.br/gerivaldoneiva). Em situações como estas, a Lei N.º 8.078, de 11 de Setembro de 1990, conhecida como "Código do Consumidor", declara em seu "Capítulo IV: Da qualidade de Produtos e Serviços, da Prevenção e da Reparação de Danos", Seção II, Art. 12, que:

"O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamentos de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos" (Saraiva et alli, 2008: 804).

Já o Art. 13 do CDC considera as situações em que o comerciante é igualmente responsável pelo produto defeituoso. Mas em caso de vício do produto, de qualidade ou quantidade, o Art. 18, § 1º, prevê que, se o vício não for solucionado no prazo de trinta dias, o consumidor pode exigir a substituição do produto, ou a restituição do valor pago ou ainda o abatimento proporcional do preço.

E uma vez postos o problema e a legislação pertinente ao imbróglio do celular, atentemo-nos à sentença.

Enquanto formação discursiva comum, o arrazoado jurídico é um tipo de discurso específico de uma determinada categoria de locutores; em retórica o gênero judiciário "recobre os discursos proferidos diante do juiz, compostos em função dos interesses de uma ou de outra das partes que se opõem. Ele determina o justo e o injusto, a propósito de uma ação passada. Seu lugar institucional é o tribunal" (Charadeau & Maingueneau, op. cit. 254).

Percebe-se aí que o judiciário é um tipo de gênero fortemente codificado, talvez por isto a comunidade de advogados não se faz de rogada em usos e abusos de formas eruditas e não nos esqueçamos das expressões latinas e umas outras tantas em grego. No entanto, muitos operadores do direito, embora versados na Flor do Lácio, carecem de saber a exortação de Ovídio: Sermonis publica forma placet, isto é, a forma comum da linguagem é sempre a mais agradável. Deste modo, a sentença a que se alude é um caso destes em que a noção de contexto sociocomunicativo se aplica coerentemente à intencionalidade.

A sentença "O Celular do Carpinteiro", embora dotada de uma unidade semântica, esta não é formal nem dura, antes, possui uma rara identidade sociocomunicativa porque traduz os estilemas, os caracteres formais do judiciário para o nexo cognitivo do marceneiro, pois "Não entende seu Gregório porque tanta confusão e tanto palavreado difícil por causa de um celular de cento e setenta e quatro reais, se às vezes a própria Insinuante faz propaganda de tipo: leve dois e pague um"(Neiva, op. cit, grifos do autor).

Como produtor textual, o juiz Neiva não ignora a recepção do interlocutor, o carpinteiro, "Leigo no assunto", tanto assim que, diante das justificativas da assistência técnica indicada pelo comerciante: "placa oxidada na região do teclado, próximo ao conector de carga e microprocessador", e do fabricante: "incompetência material absoluta do Juizado Especial Cível — Necessidade de prova técnica"; seu Gregório exclamou ao juiz: "O que é isto? Quem garante? (...) Ou o telefone funciona ou não funciona! Basta apertar o botão de ligar. Não acendeu, não funciona. Prá que prova técnica melhor?". E quanto ao defeito do aparelho em tão pouco tempo de uso, o marceneiro questionou: "Como pode um telefone comprado na Insinuante apresentar defeito sem solução depois de dois meses de uso? Certamente não foi usado material de primeira".

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A esta última associação do marceneiro, o juiz assevera:

"Um artesão sabe bem disso.

O que não pode entender um marceneiro é como pode a Siemens contratar um escritório de São Paulo, por pouco dinheiro não foi, para dizer ao Juiz do Juizado de Coité, no interior da Bahia, que não vai pagar um telefone que custo cento e setenta reais? É, quem pode, pode! O advogado gastou dez folhas de papel de boa qualidade para que o Juiz dissesse que o caso não era do Juizado ou que a culpa não era de seu cliente! Botando tudo na conta, com certeza gastou muito mais que cento e setenta e quatro para dizer que não pagava cento e setenta e quatro reais! Que absurdo.

Ao seu turno, as Lojas Insinuante eximiram-se da responsabilidade por causa do "vício redibitório"e da ausência de provas, então, "allegatio et non probatio quasi non allegatio". Diante das escusas e da função social do marceneiro, o juiz declara desnecessária a prova técnica e conclui que o senhor Gregório tomou as medidas corretas. Deste modo, a sentença prevê que a Insinuante devolva o valor pago pelo aparelho, que a Siemens faça a entrega de um novo celular e, quanto à assistência técnica, "a justiça vai dizer (...) que seu papel é consertar com competência (...) e que, por enquanto, não lhe deve nada" o senhor Gregório.

A bem dizer as empresas "não fizeram prova de que o telefone funciona ou de que Seu Gregório tivesse usado o aparelho como ferramenta de sua marcenaria", por fim, numa demonstração de situacionalidade ímpar, o juiz graceja com a gramática e a coesão lexical: "Se é feito para falar, tem que falar!" (grifos nossos). Note-se que a frase tem uma coerência lingüística próxima às funcionalidades de Halliday — ideal, textual e interpessoalmente —, assim, a decisão de Neiva conta com a participação do interlocutor na produção de sentido do texto. A inferência do recebedor, o marceneiro, é explícita; especialmente no momento de prolatar a sentença sem, no entanto, promover essa conectividade textual: "Seu Gregório, os Doutores advogados vão dizer que o Juiz decidiu "extra petita", quer dizer, mais do que o senhor pediu e também que a decisão não preenche os requisitos legais. Não se incomode".

Nas oportunidades em que pôde comentar na imprensa sobre a simplicidade e a objetividade da sentença, o juiz Gerivaldo Alves Neiva informou que durante a audiência o seu Gregório fazia imensos esforços para compreender cada ato do processo, porém sequer conseguia entender o que diziam os advogados das empresas acionadas. E por conta disto, o juiz traduzia o juridiquês para uma linguagem acessível ao autor do processo, já que este não contava com advogado, ao contrário das outras partes, representadas por advogados e prepostos. Ao final, o juiz decidiu prolatar a sentença numa linguagem em que "o autor, homem simples e de pouca leitura, pudesse ler e compreender" (Neiva, http://www.amab.com.br, grifos nossos).

À guisa de conclusão depois de tanto arrazoado teórico, porém ainda à vista de outro conceito de análise do discurso, lembremos a noção clássica de gramática como a arte de dizer corretamente, conceito que nos basta agora.

Com efeito, nada há mais que dizer desta sentença escrita "para ser lida e entendida por um marceneiro", feita por um magistrado de Conceição do Coité — melhor seria dizer um sociólogo do campo jurídico. Senão, vejamos: "sem compreensão da realidade do país", conclui Neiva, "o juiz será sempre um "tecno-juiz", ao invés de um agente público com poderes para solucionar os conflitos sociais". Quem há de negar-lhe a noção de "força do direito" de Bourdieu?


Bibliografia

ARISTÓTELES. "Retórica". In: ______. Categorias.Lisboa/Portugal: Porto Editora, 1995.

BENVENISTE, Émile. "Da subjetividade na linguagem". In: _____. Problemas de lingüística geral I. 3ª ed. Campinas/São Paulo: Pontes Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1991.

CHARADEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 10ª ed. São Paulo: Loyola, 2004.

HOUAISS, Antonio. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

NEIVA, Gerivaldo Alves. O celular do carpinteiro. Disponível em: www.amab.com.br/gerivaldoneiva. Acesso em: 03 set. 2008.

______. Entrevista ao jornal Tribuna dos Magistrados: comentários sobre a sentença "O Celular do Carpinteiro". Disponível em: http://www.amab.com.br. Acesso: 29 set. 2008.

______. Sua excelência o juiz. Entrevista a Rádio Justiça. Disponível em: http://www.radiojustica.gov.br. Acesso: 29 set. 2008.

SARAIVA (et alli). Vade mecum. 5ª ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008.

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 2004.

RICCOUER, Paul. Metáfora viva. 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

TRASK, R. L. Dicionário de linguagem e lingüística. São Paulo: Contexto, 2004.

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Sobre os autores
Gilana Flora Teixeira

Graduada em Administração pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). estudante do curso de Direito da Faculdade Independente do Nordes (FAINOR).

Elton Silva Salgado

Graduado em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), onde cursou Especialização em Teoria e História. mestrando em Cultura, Educação e Linguagens (UESB) e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudo e Pesquisa Sobre Violência e Poder na Contemporaneidade (NUVIP). Também atua como professor no Instituto de Filosofia do Seminário Arquidiocesano Nossa Senhora das Vitórias. raduando em Direito pela Faculdade Independente do Nordeste (FAINOR).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Gilana Flora ; SALGADO, Elton Silva. Tessitura e contextura.: Coerência, texto e contexto sociocomunicativo de uma sentença judiciária. Estudo de caso: "O celular do carpinteiro". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2603, 17 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17204. Acesso em: 23 abr. 2024.

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