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Mínimo existencial e patrimônio mínimo.

O equívoco da pré-constitucionalidade

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13/03/2010 às 00:00
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"Todas as declarações recentes dos direitos do homem compreendem, além dos direitos individuais tradicionais, que consistem em liberdades, também os chamados direitos sociais, que constituem em poderes " [01]

RESUMO

O presente ensaio objetiva intenções reavaliadoras da possibilidade de direitos pré-constitucionais tais quais a evidência do patrimônio mínimo e do mínimo existencial num contexto de desordem. Engendra, por meio de uma releitura crítica, uma busca da natureza jurídica destes institutos e sua relação com o vetor máximo da ratio jurídica, é dizer, a dignidade da pessoa humana.

PALAVRAS-CHAVE: DIGNIDADE HUMANA, PATRIMÔNIO, CONSTITUCIONALIDADE, PATRIMÔNIO MÍNIMO, MÍNIMO EXISTENCIAL.


1. INTRODUÇÃO.

A modernidade trouxe a lume a inefável necessidade de releitura dos conceitos jurídicos, visando reestruturá-los, de forma a adequar seu conteúdo às necessidades sociais.

Estribando-se no perquirir de um direito mais humano, mais conectado com a evolução diuturna das sociedades modernas, se esboçam modelos, teorias do sistema jurídico e de interpretação da legislação capazes de privilegiar a materialidade em detrimento à excessiva formalidade. Não apenas isso: a própria noção de poder, de organização estatal se desenvolve, passando da opulência do Leviatã ao requinte de uma democracia procedimental-discursiva, nos moldes habermasianos.

Todas estas intervenções, à guisa de formar concepções unívocas acerca da aplicação do direito moderno, visam solidificar o alicerce que soergue a dignidade humana a valor máximo nas postulações jurídico-administrativas.

Nesta esteira, duas correntes bastante parecidas podem ser destacadas. A primeira delas é a noção de um patrimônio mínimo, surgida na Itália, sob a égide do pensamento de Pietro Perlingieri, Natalino Irti e Pietro Barcelona, cuja formulação mais fulgurante é devida ao eminente jurista brasileiro Luiz Edson Fachin; a segunda noção é a de mínimo existencial, que tem como grandes ícones no pensamento jurídico brasileiro os conspícuos Ingo Wolfang Sarlet, Fábio Konder Comparato, Ana Paula de Barcelos e tantos outros talentosos juristas.

Contudo, em ambas as concepções, de um patrimônio inalienável necessário à existência digna – e não à subsistência dos sujeitos – e de uma gama de provimentos materiais a serem postos aos indivíduos, é possível encontrar a referência a estes como direitos pré-constitucionais. Estas elucidações, contudo, colocam sob os holofotes da crítica a questão da legitimidade ficta [02]. Afinal, como considerar que possa haver uma legalidade constitucional quando não há sequer o atendimento de exigências pré-constitucionais?

Nestas correntes, intentou-se transpor as diversidades conceituais, encontrando as divergências entre a dualidade vocabular – que desde logo não se mostra sinonímica – para encontrar o sentido de ambas as expressões na realidade jurídico-constitucional.

Sem aportes despiciendos, se perfilharam os descaminhos das teorias democráticas modernas, objetivando situar o questionamento da relação entre mínimo existencial, patrimônio mínimos, democracia e capitalismo num cenário de escassez.

Longe de impor conclusões porvindouras, apontaram-se direções no mapa jurídico capazes de sustentar leves voos pela constelação dos direitos humanos, sem jamais pretender a audácia do filho de Dédalo, de alçar voos mais altos que a força de asas de cera possa sustentar. Afinal, formulações que se poderiam dizer embrionárias, tão recentes no pensamento milenar dos juristas, não se poderiam crer na escorreição perpétua, sob pena do equívoco das certezas naturalísticas do século XIX.

Assim, esclarecidos os cotejos do ensaio, passemos à análise do conceito de patrimônio mínimo.


2. O PATRIMÔNIO MÍNIMO.

A perspectiva de um patrimônio mínimo compreende-se como baluarte da dignidade humana, o espaço das coisas que, embora possam se prestar ao uso, ao empréstimo, jamais poderão ser alienadas, porque fundamentais aos imperativos de uma vida digna da pessoa no seio social.

Este mister, encontra seu fundamento na própria concepção de pessoa que exsurge sobre os escombros do individualismo desenfreado, do liberalismo seco, cuja consideração da igualdade formal de todos perante a lei ignorava as divergências materiais existentes no bojo do influxo social capitalístico.

Avulta, neste universo, a percepção dos sujeitos como existência, na busca de um direito pré-sente [03]. Assim pode ser lido no magistério de Carlos Nandez Sessarego, in verbis

"La revelación de la dimensión coexistencial de la persona, a la par que permite reconocer la importância del valor solidaridad dentro del derecho, otorga sustento a la posición doctrinaria que postula que el derecho es intersubjetividad (...) gracia a la filosofia de la existência, permite comprender al derecho como intersubjetividad, como relación entre sujetos. (...) Esta visión coexistencial del hombre y, por onde, del derecho, nos proprociona el fundamento necesario para um serio replanteo de los conceptos tradicionales de la dogmática jurídica, elaborados em base a uma concepción individualista del derecho" [04]

Esta valoração da pessoa em sua complexidade, não apenas remetendo à formalidade procedimental-subsuntiva exegética, tem um viés revelador. Não se entende mais a pessoa como baú em que se podem depositar direitos e extrair obrigações, mas como personalidade complexa, da qual não se pode dissociar uma assistência mínima, um patrimônio essencial.

Este patrimônio essencial corresponde àquela parcela de bens, que não necessariamente devem ser imóveis, imprescindíveis ao sustento do indivíduo, dos sujeitos sobre sua guarda, vale dizer, sua família [05]. Consubstancia "o mínimo a assegurar-se", na dicção do erudito Luiz Edson Fachin.

Este mínimo acervo patrimonial jamais significa o menor patrimônio possível. De outro lado, não pode ser colocado em pé de igualdade ao máximo. As expressões não podem configurar completamente a extensão da ideia. Mínimo e máximo, longe de categorias estanques, se manifestam na variância fenomênica e vacilante que se formula dia a dia no mundo da vida. As palavras, os conceitos jamais poderão esgotar esta realidade. [06]

A dicção é novamente da sensibilidade do eminente civilista:

"(...) uma quantidade suscetível de várias grandezas ou de uma grandeza suscetível de vários estados, em que o mínimo não seja o valor menor, ou o menor possível, e o máximo não seja necessariamente o valor maior, ou o maior possível. Próximos ou distintos, os conceitos jurídicos e as categorias não jurídicas podem dialogar.". [07]

Este dialogar pode ser encontrado na realidade social, na comparação entre o dito pelo diploma normativo e o elencado pela realidade social. A exemplo do salário mínimo, é possível verificar que a dicção legal referenda realmente ao menor valor, posto que seu quinhão - ao contrário do que apregoa a própria legislação – não atende "às necessidades vitais básicas" do trabalhador.

É preciso, então, exorcizar os fantasmas que cercam a expressão mínimo. Ela não significa, no sentido que busca a doutrina do mínimo existencial a menor parcela de bens, mas a minimamente necessária para uma existência digna. Vale dizer, diverso de menor valor, ela compreende aquilo que medianamente insta o sustento da pessoa humana em suas mais diversas configurações.

"Aqui o mínimo transcende essa percepção quantitativa e não coloca no ponto central a noção de extremo. Ao falar de mínimo ou de máximo não se cogita de extremos abaixo ou acima dos quais o objetivo em questão perde todas as suas características, suas propriedades.". [08]

O mínimo existencial não se molda a parâmetros quantitativos. Contudo, não viola a uma axiologia constitucionalista presente na realidade moderna. Ele cadencia a dinâmica jurídica moderna, em que transborda a discricionariedade não transborda, mas se afirma como realidade insofismável. A razão não se perde neste mote, muito menos o espaço da técnica, mas não se negligencia o papel estético-expressivo ou moral prático em detrimento à racionalidade cognitivo instrumental.

De fato, um patrimônio mínimo exige um direito aberto, capaz de respirar ares fora de sua redoma, exige juízes despidos da violência da toga. Um direito fora do púlpito da justiça, uma justiça que não apenas se respeite, mas respeite à dignidade humana, sem eleger-se baluarte da paz social [09]: são as premissas de um patrimônio mínimo. [10]

Resta, porém, o questionamento acerca dos indivíduos que não possuem nenhum bem que se possa salvaguardar sob as marquises da inalienabilidade, o que de fato, pode ocorrer. Mas a inexistência de um acervo de bens inerentes ao sujeito não retira o dever de proteção que se lhe é devida pela sua só condição de pessoa.

Neste âmbito, cumpre refutar o entendimento que reifica a condição humana [11], subvertendo o valor intrínseco, vale dizer, a dignidade [12], em detrimento ao valor de troca. No escarmento de Pietro Barcelona, citado por Luiz Edson Fachin, in verbis:

"(...) como dice Vattimo, el nihilismo es La consumación del valor de uso em el valor de cambio. La reificación general, La reducción de todo a valor de cambio, es precisamente ‘el mundo que se convierte em fábula’; es um debilitamiento de la fuerza apremiante de la realidade. En el mondo del valor de cambio generalizado todo viene dado como relato. Ya no hay necesidad de um centro de referencia. Lãs imágenes se suceden y los mensajes de los médios de comunicación de masas se congvierten em uma declinación vertiginosa de lãs relaciones entre el presente y la misma tradición." [13]

Seguindo este esteio, um patrimônio mínimo, um núcleo de bens, no sentido filosófico da palavra, vale dizer, aquilo que proporciona algum benefício, é criação que busca albergar um espectro essencial de substrato material, capaz de materializar condições para uma vida digna numa sociedade capitalística.

Conclusivamente, pode-se dizer que ainda amparado pela defesa da doação que reduza o doador à situação de miserabilidade, o patrimônio mínimo ainda tem longo caminho a percorrer. Nas palavras de Gustavo Tepedino, trata-se de proposta ambiciosa, quase uma utopia, que nos faz caminhar, evitando o esmorecer. [14]


3. O MÍNIMO EXISTENCIAL.

Ab initio, insta clarear o sentido que se quer da expressão, cuja consagração usual esvazia, oblitera, nadifica. Eis a questão basilar: definir o que é, o que não é e o que pode vir a ser.

O mínimo existencial na lição inigualável do professor Ricardo Lobo Torres detém configuração básica de um direito à igualdade, de forma que sua forma, seu espectro eficacial lhe dá contornos pré-constitucionais. Afinal, se estriba em fontes que privilegiam à pessoa humana.

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Outra assertiva do conspícuo pensador é a de que o mínimo existencial conforme-se como um direito público subjetivo do cidadão, não restando dependência qualquer em relação a uma outorga jurídica por parte do ente estatal. Reverso, tem validade erga omnes, aproximando-se capilarmente do estado de necessidade.

Outro ponto importante se refere à sua historicidade, que o fez evoluir, sendo fruto da dinâmica social. Nesta linha de pensamento, afirma o autor: "o mínimo existencial, na qualidade de direito subjetivo, é oponível à administração, gerando para esta a obrigação de entregar a prestação de serviço público independentemente do pagamento de qualquer tributo ou contraprestação financeira, haja ou não lei ou regulamento. A violação do direito, por ação ou omissão, justifica, como veremos adiante, o controle jurisdicional." [15]

Justamente por se configurarem como estes pilares do ordenamento constitucional, porque provedores da condição humana, estas garantias não podem ser olvidadas. Assim, adverte o professor Paulo Lobo Torres sobre a capacidade que tem o mínimo existencial no sentido de garantir a independência de todos os cidadãos, porque lhes concede os meios indispensáveis à uma vida digna. [16]

Neste esteio, "a retórica do mínimo existencial não minimiza os direitos sociais, senão que os fortalece extraordinariamente na sua dimensão essencial", porque nesta constelação exibem sua luminosidade plena, mantendo-os "incólumes ou até mesmo os maximiza na região periférica, em que valem sob a reserva da lei". [17]

Sua formulação, porém, não olvida a imperiosa necessidade de sua implantação, que exige recursos, atualmente escassos, originando amplas discussões no presente. Nesta direção, pode-se ler em tradução livre do eminente jurista J. J. Gomes Canotilho:

"hoje, como ontem, os direitos econômicos, sociais e culturais despejam um problema inquestionável: custam dinheiro, custam muito dinheiro. Por isso, no começo da década de setenta, Peter Häberle formulou a idéia da ‘reserva de caixas financeiras’ para exprimir a idéia de que os direitos econômicos sociais e culturais se encontram submetidos à capacidade financeira do Estado. (...)" [18]

A formulação de Häberle da reserva de caixas financeiras originou a ideia que se tem atualmente da reserva do possível, conceito que tem relações profundas com a ideia da previsão orçamentária. Seu discurso originário é o mesmo das normas programáticas, que dependem de implementação legislativa, previsão nos gastos governamentais e tantas outras justificativas.

Tal formulação teorética, coloca as possibilidades de concessão de direitos sob o crivo da força econômica do Estado, é dizer, sua previsão orçamentária, suas reservas de capital. Mais que isso, a implementação destes direitos em ordens de preferência consubstanciaria o confronto em que se encontra o Estado sobre quem deve ser tutelado.

Esta visão deturpada que se formou, trouxe a lume a crítica feroz de Ana Paula de Barcelos, para quem muitas vezes a reserva do possível – pela falta de um estudo mais acurado – serviu de utensílio mágico, de um poder assustador e desconhecido, infirmando a opulência dos direitos sociais na dita pós-modernidade. E neste cenário, em que o monstro da crise aterrorizava o Brasil, o mundo, o Executivo reservava ao Judiciário a tarefa de Hermes pernicioso, trazendo más notícias com suas decisões ameaçadoras. [19]

Contudo, a bestialidade do cenário feneceu. Floresceram novas concepções que colocavam no equilíbrio entre norma e valor, retirando a contingência do ponto nodal dos debates jurídicos. A promoção do debate – ainda que tardiamente – e a revisão conceitual do conceito lhe deu novo rosto.

Agora, se lhe compreende como paulatinidade, abrindo espaço para a necessária dimensão lógica que se compreende imprescindível para a materialização dos direitos sociais, sem olvidar, com isso, as deficiências financeiras do Estado, relativizando tutelas, efetivando direitos.

Nesta ânfora, se resguarda a ideias de que os direitos sociais em sua realização dependem: (1) de uma realização paulatina; (2) de uma determinada reserva financeira por parte do Estado; (3) da livre conformação legislativa, que cataloga aos direitos, sem observar as medidas necessárias à sua implementação e (4) da complexidade que o controle jurisdicional dos programas políticos traz, devendo ser evitado, a menos que tragam um cunho manifestamente oposto ao Texto Maior. Nas palavras do grande constitucionalista José Joaquim Gomes Canotilho, "Reconhecer estes aspectos não significa a aceitação acrítica de alguns ‘dogmas’ contra os direitos sociais". [20]

Ressaltando a lição do mestre Ricardo Lobo Torres, insta compreender que o mínimo existencial tem caráter de direito pré-constitucional, impossibilitando qualquer condicionamento por parte das autoridades administrativas ou legislativas, sendo um direito absoluto. [21]

Impende notar que o mínimo existencial sempre deve ser propiciado pela ação do Estado, não guardando qualquer relação reserva do possível.

Luminosas, sobre isso, as letras de Ana Paula de Barcelos:

"Lembre-se aqui um ponto. O direito à educação fundamental é um elemento do mínimo existencial, compondo o núcleo da dignidade humana e, portanto, sendo oponível aos poderes constituídos. Imaginar que seu atendimento possa ficar na dependência exclusiva da ação, e dos humores, do Executivo – em equipar sua rede de ensino de maneira conveniente – e do Legislativo – em dispor sobre a concessão de bolsas de estudo em instituições privadas – é tornar totalmente sem sentido tudo que sem expôs até aqui, assim como o próprio Estado de direito constitucional. Ao Judiciário compete tutelar o mínimo existencial e isso pelos meios substitutivos que forem necessários e aptos para atingir tal fim. Por isso mesmo apenas se reconhece essa legitimidade ao judiciário quando se trata desse mínimosem o qual a própria dignidade resta violada,e não de toda a extensão dos efeitos ideais das normas que se relacionam coma dignidade." [22]

Contudo, quem define quais direitos sociais formam este núcleo do mínimo existencial? Como compaginar a efetivação destes direitos com outros imprescindíveis cuja implementação resulte problemática? A satisfação completa destes direitos, esgotando o montante de capitais do Estado não reduziria a efetividade de outros? Como decidir esta última questão entre o choque entre direitos relevantes?

A estas questões, sobre a escassez de recursos, responde Salvador Barbera com o abandono de posicionamentos absolutos. Não se trata de um desligamento, mas de uma atividade que sopesa a cada um na medida da realidade, enxergando o direito como a força viva engendrada pelos fatos. Trata-se justamente daquilo que se tem chamado ponderação. [23]

Não é este espaço para tão ampla discussão, senão para concluir referendando ao mínimo existencial como sendo aquele grupo de direitos sociais imprescindíveis á vida digna, não se submetendo de forma alguma às necessidades do Estado, nem muito menos aos movimentos cambiantes dos mercados, cuja realização é - mais que uma necessidade – um imperativo.

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Sobre o autor
Paulo Ramon da Silva Solla

Assessor Técnico do Governo do Estado da Bahia, na área de Licitações, Contratos Administrativos, Convênios e Contratos de repasse destinados a execução de obras e serviços de engenharia.<br>Pós Graduando em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça pela Universidade Federal da Bahia.<br>Avaliador de diversos periídicos, tais como: Revista Jurídica da UERJ, Revista Jurídica da UNISINOS, Revista Jurídica da PUC-SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOLLA, Paulo Ramon Silva. Mínimo existencial e patrimônio mínimo.: O equívoco da pré-constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2446, 13 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14508. Acesso em: 24 abr. 2024.

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