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O dano moral e sua breve história desde o antigo Código Civil Brasileiro (Lei nº 3.071/1916)

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O Código Civil Brasileiro instituido pela Lei nº 3.071 de 1º de Janeiro de 1916, cujo projeto foi apresentado ao Senado em 1902, representou um marco histórico às linhas jurídicas concernentes às instituições de direito privado bem como uma superação de uma república que ainda estava enraizada a uma estrutura política e jurídica imperial fundada basicamente nos Mandamentos das ordenações e Leis extravagantes do Reino.

No ano de 1902 o Brasil já vivia sob a égide Republicana (1888-1889), porém, a codificação das leis era ainda um passo significativo a ser dado rumo à adequação política e jurídica aos ditames liberais necessários à manutenção e fortalecimento do sistema capitalista que àquela altura passava por processo de transformação.

A sua elaboração e aprimoramento linguístico e jurídico contou com participação de homens cuja inteligência o qualificou como uma verdadeira obra prima, a qual superaria até mesmo os anseios de uma sociedade que estaria em constante evolução, são eles: Teixeira de Freitas – Suas idéias incutidas no Código Civil Brasileiro serviram de inspiração à construção do Código Civil em outros países como Argentina (1869) e Uruguai (1868) –, Nabuco de Araújo, Felício dos Santos Coelho Rodrigues, Rui Barbosa e Clóvis Bevilaqua.

Torna-se oportuno fazer um breve cotejo histórico sobre o cenário político-econômico mundial, o qual certamente influenciou na construção do Código Civil Brasileiro no que se refere às suas disposições referentes aos direitos e obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações.

No final do século XIX o Brasil começara a vislumbrar um horizonte desconhecido chamado de República, na qual o fundamento era liberdade e autonomia das antigas províncias que compunham o então falecido Império Brasileiro. Nascia a República dos Estados Unidos do Brasil sob a égide da Constituição de 1891, sendo que entre suas disposições primeiras destacam-se:

Art. 1º.

A Nação Brazileira adopta como forma de governo, sob o regime representativo, a República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e indissolúvel, das suas antigas províncias, em Estados Unidos do Brasil.

Art. 5º. Incumbe a cada Estado prover, a expensas próprias, às necessidades de seu governo e administração; a União, porém, prestará socorros ao Estado que, em caso de calamidade pública, os solicitar.

Não obstante, no início do século XX o mundo passava por transformações significativas onde o sistema capitalista fomentado pela liberdade de idéias (iluminismo) e pela liberdade econômica (liberalismo) estava vivenciando a plena necessidade de afirmação como sistema econômico hegemônico, sendo que seria a essa altura necessária à adequação dos sistemas jurídicos das sociedades tidas como capitalistas, incluindo o Brasil, para fins de sua legitimação e operacionalidade.

Com efeito, as relações intersubjetivas que se estabeleciam com maior freqüência na sociedade brasileira, careciam de um sistema de normas jurídicas que se adequasse à nova conjectura política, social e econômica com fundamento na autonomia da vontade humana e na lei como fontes geradoras de direitos e vínculos obrigacionais entre os sujeitos.

Surge então a Codificação das leis como pressuposto indispensável ao que se denominou de positivismo, o qual se estabelecia como instrumento de regulação da conduta humana socialmente considerada, no qual o Estado, por meio de suas instituições (Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário) e agentes (políticos), representa as próprias vontades subjetivas na criação, execução e aplicação das leis.

A Lei 3.071/1916, a qual compilou num único documento todas as normas de regulação dos direitos e obrigações civis (Código Civil), cujos princípios basilares são herança significativa do Direito Romano a partir das "Institutas" consagradas pelo Imperador Justiniano ("Corpus Iuris Civilis"), entrou em vigor de forma a engendrar o marco inicial de uma sociedade que passava a viver sob a égide de um sistema político-econômico moderno e hegemônico.

A necessidade de desenvolvimento de uma economia de mercado como resultado do fortalecimento da propriedade privada, do surgimento da indústria, do desaparecimento da mão-de-obra escrava para dar lugar ao salário, do desenvolvimento da atividade bancária, do acúmulo de capital como fonte propiciadora de negócios voltados ao investimento e consumo de bens e serviços, entre outros fatores mais, deu origem à outra necessidade: de se criar um sistema jurídico que fosse compatível e viável a satisfazer esses novos anseios através de uma segurança jurídica que deveria, necessariamente, nortear as relações sociais e comerciais que se estabeleciam.

A evolução do direito das obrigações e da teoria contratual revelou sua importância para a sociedade do século XX, uma vez que, permitiu que as relações que se formavam continuamente a partir deste período fossem abrangidas basicamente pela liberdade, legalidade e executoriedade, tendo o patrimônio como seu lastro e a responsabilidade civil como instituto imprescindível à proteção jurídica que deveria ser conferida às relações civis de direitos e deveres gerais (aquiliana ou extracontratual) e às relações civis específicas constituídas por meio de instrumentos de contrato (contratual).

A responsabilidade civil era prevista na Lei 3.071/16 em sua parte geral e especial da seguinte forma:

Art. 159.

Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. 

Art. 1.518. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se tiver mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação.

O instituto da responsabilidade civil como parte integrante dos direitos obrigacionais previstos na lei privada era definido necessariamente pela conduta do agente, seja por ação ou omissão, pela culpa (negligência, imprudência ou imperícia), pelo prejuízo (dano) efetivamente causado e pela relação de causalidade entre a conduta e o dano.

Cumpre ressaltar, que no início do século XX, ocasião em que surge a lei 3.071, a concepção de dano ou prejuízo ainda era muito restrita à patrimonialidade, no sentido de se tutelar basicamente lesões a bens materiais e na maior parte fungíveis, o que se denominou de danos emergentes (o que efetivamente se perdeu) e lucros cessantes (o que se deixou de acrescer ao patrimônio em virtude da lesão).

Art. 1.533.

Considera-se líquida a obrigação certa, quanto à sua existência, e determinada, quanto ao seu objeto.

Art. 1.534. Se o devedor não puder cumprir a prestação na espécie ajustada, substituir-se-á pelo seu valor, em moeda corrente, no lugar onde se execute a obrigação.

Art. 1.535. À execução judicial das obrigações de fazer, ou não fazer, e, em geral, à indenização de perdas e danos, precederá a liquidação do valor respectivo, toda vez que o não fixe a lei, ou a convenção das partes.

Art. 1.536. Para liquidar a importância de uma prestação não cumprida, que tenha valor oficial no lugar da execução, tomar-se-á o meio-termo do preço, ou da taxa, entre a data do vencimento e a do pagamento, adicionando-lhe os juros da mora.

§ 1º Nos demais casos far-se-á a liquidação por arbitramento.

§ 2º Contam-se os juros da mora, nas obrigações ilíquidas, desde a citação inicial.

A lei 3.071/16, todavia, já previa de forma bastante tímida a reparabilidade dos danos cujo objeto era a honra, a dignidade e as liberdades pessoais, ou seja, possuía dispositivos aplicáveis à tutela dos direitos imateriais pela possibilidade de indenização devido às lesões sobre uma espécie de "patrimônio ideal" ou bens "extra patrimoniais", porém, o valor do dano era sempre auferido de forma a condicioná-lo ao efetivo prejuízo de ordem material ou a correspondente multa máxima cominada à penalidade criminal, sendo assim, os danos aos bens imateriais, nesta ocasião, ainda não possuíam uma identidade própria.

Art. 1.537.

A indenização, no caso de homicídio, consiste:

I - no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família;

II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o defunto os devia.

Art. 1.538. No caso de ferimento ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até o fim da convalescença, além de lhe pagar a importância da multa no grau médio da pena criminal correspondente. (Redação dada pelo Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 15.1.1919)

Art. 1.547. A indenização por injúria ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resulte ao ofendido.

Parágrafo único. Se este não puder provar prejuízo material, pagar-lhe-á o ofensor o dobro da multa no grau máximo da pena criminal respectiva (art. 1.550).

Art. 1.550. A indenização por ofensa à liberdade pessoal consistirá no pagamento das perdas e danos que sobrevierem ao ofendido, e no de uma soma calculada nos termos do parágrafo único do art. 1.547.

Art. 1.551. Consideram-se ofensivos da liberdade pessoal (art. 1.550):

I - o cárcere privado;

II - a prisão por queixa ou denúncia falsa e de má-fé;

III - a prisão ilegal (art. 1.552).

Art. 1.552. No caso do artigo antecedente, nº III, só a autoridade, que ordenou a prisão, é obrigada a ressarcir o dano.

A partir de meados do século XX, as relações jurídicas foram se tornando mais diversificadas devido ao surgimento de novas leis e demais institutos jurídicos que forçaram o direito a se adaptar a uma sociedade mais complexa, especialmente, após a Segunda Guerra Mundial, quando o sistema Capitalista tinha como necessidade desenvolver meios político-econômicos para impor sua hegemonia frente ao Socialismo, cujos ideais marxistas vinham exercendo forte influência em alguns países do Leste Europeu, Ásia e América Central.

O Brasil passou por significativas transformações políticas e econômicas, influenciadas pelas maiores potências capitalistas, que impuseram ao sistema jurídico a necessidade de criar normas que as legitimassem.

Daí surge uma concepção mais aprimorada de patrimonialidade, a qual passou de uma definição limitada aos bens materiais e fungíveis para uma noção mais abrangente que incluiria as idéias, os direitos, a honra e a reputação social do sujeito como bens susceptíveis de proteção jurídica independente.

Com efeito, em 1945 é criada a lei de falências por meio do decreto lei 7.661, a qual previa a reparação dos danos morais. No ano de 1962, no mesmo sentido, previa a lei 4.117 (Código Brasileiro de Telecomunicações substituído pela lei 9.472/97). Em 1965 é criado o Código Eleitoral (Lei 4.737). Em 1967 é criada a lei 5.250, a qual previa entre outras disposições à proteção à honra e à reputação contra informações inverídicas noticiadas no seu art. 51e 52 (inclusive criando uma espécie de tarifação do dano moral). Nos anos 70 surge a lei 5.772 que prevê a proteção jurídica à propriedade intelectual, a qual foi substituída pela lei 9.279/96.

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Os danos morais passam a existir como instituto jurídico autônomo e eficaz, sofrendo forte influência do sistema jurídico norte-americano, impondo adaptação interpretativa ao Código Civil de 1916 (Lei 3.071) com vistas a sua integração, o qual apesar de não o definir expressamente, passou a ser aplicado analogicamente através dos artigos acima transcritos e sua quantificação judicial, em regra, era feita por arbitramento com base no artigo 1.553 que prescrevia:

Art. 1.553.

Nos casos não previstos neste Capítulo, se fixará por arbitramento a indenização.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual passou a prevê no seu art. 5º, inciso X, o direito à indenização por danos morais de forma expressa e inquestionável, a Lei 3.071/16 deixou de ser aplicada apenas analogicamente com o fito de integrar a proteção dos danos extra patrimoniais à Ordem Jurídica, para ser adaptada ao que se passou a denominar de "interpretação conforme a Constituição".

Art. 5º

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Os Danos Morais no final do século XX ganharam maior relevância, chegando ao patamar Constitucional de proteção jurídica, tornando forçosa uma adaptação do art. 159 da Lei 3.071/16 às novas necessidades sociais que retratavam a evolução jurídica em prol da nova complexidade que se estabelecia na sociedade brasileira.

Art. 159.

Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. 

Assim sendo, o art. 159 ganhou amplitude constitucional de forma a estender a aplicação das expressões "violar direito" e "ou causar prejuízo a outrem" aos direitos sobre a propriedade intelectual, sobre a honra, a dignidade, os sentimentos e aos prejuízos de ordem imaterial, cujo objeto de proteção também passou a serem os direitos inerentes da personalidade humana.

Não se pode deixar de mencionar também que juntamente com a evolução do direito obrigacional que se sucedeu no decorrer do século XX, a noção de patrimonialidade foi aprimorada, superando a barreira do físico, material para adentrar na abrangência dos bens incorpóreos, tornando superada e obsoleta a diferença que se fazia entre direito patrimonial e direito extra patrimonial.

Com efeito, superavam-se problemáticas de uma sociedade cada vez mais complexa para surgirem outras que exigiriam do sistema jurídico a criação de novas hipóteses para atender às necessidades da evolução política, social e econômica, como, por exemplo, a questão do subjetivismo do dano moral que, a princípio, impediria sua quantificação para fins de indenização, tendo em vista a sua impossibilidade de aferição econômica, sendo que, o arbitramento judicial previsto no já supramencionado art. 1.553 da Lei 3.071/16 era a única hipótese com efetividade a ser considerada.

A lei 3.071/16 mostra o seu valor inestimável quando suportou por quase um século (exatos 86 anos) as diversas mutações que se sucederam por todo o século XX, considerando, os altos e baixos do sistema capitalista que influenciaram em grandes guerras mundiais e gravíssimas crises econômicas, bem como, o surgimento de novas relações intersubjetivas que evidenciavam transformações políticas e econômicas que clamavam por legitimação.

Portanto, a sua revogação ocorrida no início do século XXI, não é suficiente para reduzi-lo ao baú do esquecimento, uma vez que, desde sua elaboração já era evidenciada, por meio de uma visão altruísta com projeções voltadas a um futuro deslumbrante de seus idealizadores, cuja inteligência inquestionável até os dias atuais, superou as amarras do tempo de forma a influenciar a concepção do direito nos tempos modernos, tanto que, é impossível se falar num novo Código Civil hoje vigente através da Lei 10.406/2002, sem considerar os fundamentos oriundos de uma Lei imortalizada.

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Sobre o autor
Caio Rogério da Costa Brandão

Advogado militante em São Paulo e no Pará. Especialista e pós-graduado Lato Sensu em Direito Tributário e Direito Processual Civil pelo CEU-SP. Pós-graduado Lato Sensu em Direito do Consumidor pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas - UNIFMU-SP. Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Buenos Aires - Argentina. Membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/PA. Professor e Palestrante.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRANDÃO, Caio Rogério Costa. O dano moral e sua breve história desde o antigo Código Civil Brasileiro (Lei nº 3.071/1916). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2356, 13 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14015. Acesso em: 28 mar. 2024.

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