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Direito Penal Militar Juvenil (?)

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21/08/2009 às 00:00
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A disciplina da maioridade penal no Código Penal Militar não foi recepcionada pela "Lei Maior". Um adolescente que pratique fato descrito como crime militar estará, em verdade, em prática de ato infracional.

Sumário: 1. Introdução. 2. A tríplice responsabilidade 3. A identificação do crime militar. 4. Dispositivos do CPM que tratam da maioridade penal: 4.1. Imputabilidade no Código Penal comum; 4.1.1. Povos primitivos e da antiguidade; 4.1.2. Período medieval; 4.1.3. Os Códigos Penais brasileiros; 4.2. Imputabilidade no Código Penal Militar. 5. Maioridade penal na Constituição Federal de 1988 e a "teoria da recepção". 6. Antecipação da capacidade civil e maioridade penal. 7. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): 7.1. Criança ou adolescente; 7.2. Configuração de ato infracional; 7.3. Conseqüência da prática de ato infracional: 7.3.1. Criança; 7.3.2. Adolescente; 7.4. Punição disciplinar e sua validade em substituição de medidas protetivas ou socioeducativas; 7.5. Apreensão; 7.6. Registro e primeira apuração de ato infracional; 7.7. Local de internação; 8. Os novos rumos: 8.2. A aprovação da PEC 20/99 e sua influência no Código Penal Militar: 8.2.1. Art. 228 da Constituição Federal: núcleo rígido da Lei Maior; 8.2.2. Reflexos da aprovação. 9. Conclusão.


1. Introdução

Muito comum, na atualidade, é a discussão acerca da redução da maioridade penal no Brasil, um movimento que, embora tenha o afago popular, é muito criticado por alguns aplicadores do Direito.

A questão, no entanto, pode ganhar uma complexidade adicional, se avaliada sob a possibilidade da prática de ato capitulado no Código Penal Militar por adolescente, razão pela qual o tema tem ganhado muita relevância no âmbito das Justiças Militares e no círculo dos atores de polícia judiciária militar, sendo fundamental que alguns postulados sejam indicados.

A presente construção, portanto, presta-se a ingressar por esse assunto tão espinhoso, atendo-se a duas vertentes principais: primeiramente, será exposta a atual conformação da legislação em vigor acerca do fato típico militar praticado por adolescente; em seguida, será exposta, brevemente, a nova direção com as atuais Propostas de Emenda Constitucional (PEC), avaliando-se o seu impacto na legislação penal castrense.


2. A tríplice responsabilidade

O militar do Estado, como espécie de agente público, está sujeito a uma tríplice responsabilidade, no que tange aos atos ilícitos que pratica. É dizer que o militar das Forças Armadas, o policial militar ou bombeiro militar, ao praticar uma conduta irregular, poderá sofrer conseqüências nas esferas penal, civil e administrativa. Para alguns, não se pode ignorar, há ainda a improbidade administrativa como uma quarta esfera, da qual não nos ocuparemos por merecer, se quisermos compreendê-la, um estudo específico, que fugiria ao propósito desta construção.

Como bem se sabe, a responsabilidade penal decorre da aplicação das leis penais, dentre elas o Código Penal Militar, o Decreto-lei 1.001, de 21 de outubro de 1969, que define quais são os crimes militares em tempo de paz e de guerra.

A responsabilidade administrativa, por sua vez, encontra seu delineamento nos estatutos e regulamentos disciplinares, o que colore a responsabilidade em relevo com a designação de "disciplinar". Em outras palavras, surge a chamada responsabilidade administrativo-disciplinar ou, simplesmente, responsabilidade disciplinar.

Por fim, a responsabilidade civil decorre da aplicação do Código Civil, tendo, em regra, como contrapartida o dano, material ou moral, que gera o dever de reparação por seu autor. Esse dever de reparação poderá dar-se de forma direta ou de forma reflexa, em face do direito de regresso.

Muito importante para nosso propósito que se entenda como se processa, na visão doutrinária, a interação dessas esferas. Em outros termos, deve-se averiguar, para a apresentação que se afigura, se as esferas são independentes ou não entre si, principalmente no que se refere à responsabilização penal e administrativa.

Cediço na doutrina que as esferas de direito supracitadas (penal, administrativa e civil) funcionam de modo autônomo e harmônico, uma em relação às outras.

Entendemos que essa relativa independência, no caso específico dos militares, é mitigada, mas ainda assim existente e necessariamente reconhecida.

No que tange especificamente às esferas penal e administrativa, Di Pietro, com peculiar maestria, ensina que, em face de um fato que é, ao mesmo tempo, definido em lei como crime e transgressão, "instauram-se o processo-administrativo-disciplinar" data-type="category">processo administrativo disciplinar e o processo criminal prevalecendo a regra da independência entre as duas instâncias, ressalvadas algumas exceções, em que a decisão proferida no juízo penal deve prevalecer, fazendo coisa julgada na área cível e na administrativa" [01].

Cumpre, por derradeiro, anotar que as esferas em apreço constituem círculos concêntricos, o que permite afirmar que nem toda transgressão é crime, porém, todo crime é transgressão. Assim, um fato pode não ser considerado um crime (comum ou militar), mas poderá, contudo, sofrer a repressão disciplinar e, em alguns casos, fomentar a obrigação de reparar o dano.


3. A identificação do crime militar

Uma das principais tarefas para os atores do Direito Penal Militar é distinguir o ilícito penal militar do crime comum e, nesse mister, a tipicidade é fundamental.

Deve-se lembrar que, em várias situações, a tipicidade de um crime militar dá-se de forma indireta, ou seja, não basta apenas verificar a descrição típica da Parte Especial, carecendo verificar também sua complementação pela Parte Geral, em especial o art. 9º do CPM. Como última averiguação, devemos verificar a possibilidade de o sujeito ativo praticar crime militar na esfera analisada, verificando-se, neste ponto, não só um problema de tipicidade, mas também uma questão atrelada à culpabilidade.

Assim, pode-se sistematizar a averiguação da tipicidade do crime militar seguindo-se três passos, evidenciados por três questões, a saber:

1ª) O fato praticado está previsto na Parte Especial do Código Penal Militar?

2ª) Há previsão das circunstâncias do crime em um dos incisos do art. 9º do CPM?

3ª) O sujeito ativo do crime pode ser processado e julgado pela Justiça Militar que apreciará o delito?

Caso a resposta seja "sim" às três proposições, haverá tipicidade do fato no aludido Código, lembrando que a conclusão por crime depende ainda da análise da antijuridicidade e da culpabilidade.

Deve-se entender que essa abordagem, mera automação de ferramentas para atingir o fim principal (identificar um fato tipificado no CPM), não pode ser observada com o rigor técnico da dogmática penal em dias atuais. Dessa forma, deve-se entender a "fórmula" apresentada como um procedimento de rápida distinção entre crime comum e crime militar.

Raciocinemos com exemplos:

Exemplo 1: soldado da Polícia Militar, de folga, intervém em roubo a uma casa lotérica, entrando em confronto com os roubadores, fere mortalmente um deles. Posteriormente, vem a saber que o morto era também policial militar da ativa. Nesse caso, vamos responder às questões:

1ª) Sim, há o tipo "homicídio" no art. 205 do CPM, e o crime contém igual definição no Código Penal.

2ª) Sim, por ter sido cometido por policial militar da ativa e por ter igual definição no Código Penal, aplicamos o inciso II do art. 9º, enquadrando-se na alínea "a", já que o sujeito passivo também é militar da ativa; recorde-se que, na visão doutrinária e jurisprudencial majoritária [02], para o preenchimento da alínea "a", prescinde-se da constatação de que o sujeito ativo, militar da ativa, conheça a condição de militar da ativa do sujeito passivo.

3ª) Sim, nos termos do § 4º do art. 125 da CF, a Justiça Militar Estadual julga policial militar.

Exemplo 2: civil, membro de organização criminosa, ingressa em quartel da Polícia Militar e com a pura e simples intenção de afetar o moral da tropa, desacreditando a força policial estadual, escolhe um soldado PM (no quartel, de folga e fardado), praticando contra ele o crime de homicídio. Respondamos às questões:

1ª) Sim, há o tipo "homicídio" no art. 205 do CPM, e o crime contém igual definição no Código Penal.

2ª) Sim, por ter sido cometido por civil que almejava atingir a Corporação, em lugar sujeito à Administração Militar, aplicamos a alínea "b" do inciso III do art. 9º.

3ª) Não, nos termos do § 4º do art. 125 da CF, a Justiça Militar Estadual não é competente para julgar civis [03].

Exemplo 3: civil, membro de um grupo criminoso, ingressa em quartel do Exército Brasileiro e com a pura e simples intenção de afetar o moral da tropa, desacreditando as Forças Armadas, escolhe um soldado (de folga e fardado) praticando contra ele o crime de homicídio. Vejamos as respostas:

1ª) Sim, há o tipo "homicídio" no art. 205 do CPM, e o crime contém igual definição no Código Penal;

2ª) Sim, por ter sido cometido por civil que almejava atingir a Corporação, em lugar sujeito à Administração Militar, aplicamos a alínea "b" do inciso III do art. 9º.

3ª) Sim, nos termos do art. 124 da CF, a Justiça Militar Federal é competente para julgar qualquer pessoa que pratique crime militar.

Os exemplos acima demonstram muito bem o processo de distinção, podendo-se afirmar – majoritariamente, ressalte-se –, que há fato típico de crime militar no primeiro e terceiro casos hipotéticos, já que obtivemos a resposta afirmativa às três questões. Contudo, uma hipótese afeta à terceira questão ainda não foi idealizada. Referimo-nos à hipótese de fato praticado por um adolescente. Vejamos o exemplo:

Exemplo 5: um cadete da Escola Preparatória de Cadetes do Exército, com 17 anos de idade, na função de sentinela mata alguém em repulsa a uma invasão armada daquela Unidade. Às questões, apenas averiguando à tipicidade, diríamos:

1ª) Sim, há o tipo "homicídio" no art. 205 do CPM, e o crime contém igual definição no Código Penal;

2ª) Sim, por ter sido cometido por militar em serviço, aplicamos a alínea "c" do inciso II do art. 9º.

Exatamente na terceira questão estaríamos concentrando a discussão do presente trabalho, navegando, desta vez, no campo da culpabilidade, já que tratamos de imputabilidade.

Assim, questiona-se: para o Código Penal Militar o adolescente pode praticar crime militar?

Para responder a essa indagação, carecemos de conhecer as disposições acerca da maioridade penal do Código Penal castrense e compará-las ao ordenamento jurídico constitucional, o que passaremos a fazer em seguida.


4. Dispositivos do CPM que tratam da maioridade penal

Como bem assinalam Bitencourt e Muñoz Conde, três sistemas prestam-se à definição da imputabilidade penal: "a) biológico, que condiciona a responsabilidade à saúde mental, devendo o portador de uma deficiência mental ser considerado inimputável sem que se questione o fato psicologicamente; b) psicológico, que não avalia se há uma deficiência mental mórbida, mas investiga se havia, ao tempo do crime, a possibilidade de apreciar a ilicitude do fato (momento intelectual) e de se conduzir de acordo com esse entendimento (momento volitivo); e c) biopsicológico, que é a reunião dos dois anteriores, ou seja, o agente somente é imputável se, em razão de enfermidade ou retardamento mental, era, ao tempo do crime, capaz de entender a ilicitude do fato (momento intelectual) e de se conduzir de acordo com esse entendimento (momento volitivo)" [04].

Urge, pois, averiguar qual o critério adotado pelo Brasil e se esse critério também se aplica ao adolescente.

Comecemos pela legislação penal comum para, após, ingressarmos na lei penal castrense.

4.1. Imputabilidade no Código Penal comum

O Código penal comum, como regra geral, adotou o critério biopsicológico, grafando no art. 26 que é "isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento". No parágrafo único, complementa a regra dispondo sobre a semi-imputabilidade, quando a pena deverá ser "reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento".

Contudo, em relação ao menor de 18 anos, o legislador abandonou o critério biopsicológico [05] e adotou o critério biológico, grafando no art. 27 que os "menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial".

É importante consignar que nem sempre essa foi a disposição da legislação penal comum, sendo conveniente fazer uma breve incursão histórica acerca da maioridade penal em alguns períodos da História para, posteriormente, alcançar os diversos códigos penais brasileiros. Essa evolução histórica, por óbvio, deve centrar-se também na compreensão indivíduo em face do Direito, já que para se compreender o menor como um indivíduo dotado de especiais necessidades, é preciso primeiro compreender o homem como titular de direitos em face do Estado e de seu ordenamento jurídico.

4.1.1. Povos primitivos e da antiguidade

Em sua essência, o homem é um ser social, buscando, desde remota época, a convivência em grupos familiares, sociais e políticos, grupos esses que buscavam o estabelecimento de regras para a sua própria preservação e não a do indivíduo [06].

Essas regras, no entanto, continham um cunho religioso exagerado, porquanto as sociedades primitivas, fundamentalmente totêmicas, não distinguiam o "divino", inexplicável, da norma de conduta humana, havendo, dessa forma, a fusão entre Direito, moral e religião [07].

Dessarte, possuíam sim um sistema de conotação jurídica, vez que se estabeleciam regras comportamentais cujo desrespeito implicava em sanções; no entanto, tal sistema visava a coesão grupal. Foi essa concepção que afastou, num momento posterior, a regular prática da vingança de sangue, já que destruía ela os aglomerados humanos ligados por um mesmo signo. Em outras palavras, não foi a preocupação com o indivíduo que repudiou a vingança de sangue, mas a preocupação com o extermínio dos grupos, já que essa prática não conhecia proporções.

Não se pode, ademais, falar em Estado nessa época, já que este não existia de forma organizada jurídica e politicamente, o que significa dizer que a aplicação das normas não se dava por órgãos estatais. Nesse contexto, também não se pode, nas sociedades primitivas, falar em preservação de direitos do homem, entendida assim como um sistema conscientemente conduzido para esse fim. [08]

Por óbvio, em se tratando de responsabilização do menor, não é possível separá-la daquela aplicada aos adultos, no seio de um grupo, podendo-se dizer que era indistinta.

Ingressando na antiguidade clássica, cronologicamente correspondente ao início da utilização da escrita (4000 a. C.) até a queda do Império Romano do Ocidente (476 d. C.), não se pode verificar uma única conformação, porquanto várias civilizações coexistiram nesse período com características próprias, dando-se maior destaque às civilizações egípcia, grega e romana. Vejamos, primeiro, breves características de cada uma delas.

A civilização egípcia [09], fundamentalmente teocrática [10], possuía uma certa organização judiciária (existência de magistrados, tribunais e processo judicial, em regra, escrito), tendo a lei como principal fonte, reconhecendo-se que esse sistema preservava alguns direitos individuais. Pregou-se, por exemplo, no século XVI a.C., durante a XVIII dinastia, a prevalência da lei, a igualdade jurídica dos indivíduos e, como conseqüência, a extinção da escravidão [11].

A civilização grega [12] foi marcada por uma evolução paulatina, muito influenciada, obviamente, pelo pensamento filosófico de Sócrates, Platão, Ésquilo, entre tantos outros.

Nessa evolução, é possível detectar uma Grécia Heróica (cerca de 1200 a.C.), marcada por um Estado Teocrático, misturando-se Direito e religião. Já no período clássico (de 480 até 338 a.C.), "o direito passou a ser laico. Os gregos passaram a entender que as leis deviam e podiam ser criadas e revogadas pelos homens e não pelo rei, tido como mensageiro dos deuses. Com a laicização, os gregos passaram a refletir racionalmente sobre a natureza da lei e da justiça" [13].

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Embora caracterizada pela racionalização do Direito, na Grécia clássica também não se compreendia o indivíduo em si mesmo, divorciado do contexto das cidades-estado, as polis. Por isso mesmo, os gregos não desenvolveram um sistema de proteção aos Direitos Humanos. Ademais, frise-se que, para pertencer ao contexto da polis, era exigida a condição de ser grego e livre, não podendo ser bárbaro ou escravo. A propósito da escravidão, esta era justificada como legítima na época em apreço [14].

A civilização romana [15], em seus primórdios, era profundamente marcada pela religião, podendo-se afirmar que o Direito era uma das faces da religião.

Aristocrática, em essência, a sociedade era dividida em classes sociais, compreendendo os patrícios, os clientes, os plebeus e os escravos (enxergados como bens patrimoniais). Apenas os patrícios possuíam o jus civile, já que eram os únicos a serem reconhecidos como cidadãos (status civitatis), o que significava estar ligado às cidades (civitas). Somente com a Lei das XII Tábuas, em 451 a.C., os plebeus conquistaram seus primeiros direitos.

Com a inauguração da República, em 510 a.C., conferiu-se grandes poderes à Magistratura, composta por todo aquele que possuía uma função administrativa, não só a judicante. Além da Magistratura (ordinária – regularmente constituída – e extraordinária – constituída em períodos excepcionais), a estrutura político-administrativa compreendia o Senado e as Assembléias do Povo, estas com poderes de deliberar, em sede de apelação, sobre a condenação à pena capital [16].

Em matéria de compreensão do indivíduo e de seus direitos em face do Estado, naquela época cumpre relevar que a Lei da XII Tábuas, de lavra da Magistratura extraordinária, limitou a vingança privada, marcando o início da transferência paulatina de um poder particular para um poder central.

A Roma Clássica marca-se pela queda da República e a ascensão do Principado e, posteriormente, do Dominato.

No Principado, mesmo com a perpetuação do Senado e da Magistratura, era o monarca quem concentrava a grande gama de poderes. As Assembléias Populares foram sucumbindo, até a abolição pelo imperador Tibério. Nesse período, destaca-se a sedimentação da extraordinaria cognitio, caracterizada por um processo escrito no qual o julgador poderia julgar e executar suas decisões, sendo estas, porém, passíveis de recurso para o princeps, isso com o escopo de controlar as decisões, fortalecendo, assim, o poder imperial e não para fomentar uma revisão em favor do indivíduo. Aliás, essa característica marca o Direito Romano, valendo dizer que, ao longo de toda a sua história, não há a proteção do indivíduo em face do Estado, mas sim a busca de fortalecimento do Estado em nome de sua prosperidade e da defesa de classes privilegiadas, como os imperadores e os patrícios [17].

Feito um brevíssimo escorço histórico do Direito nos povos primitivos e na antiguidade, deve-se agora verificar nesse período a responsabilização do menor pela prática de delitos.

Em valoroso trabalho sobre o tema, Sérgio Shecaira nos ensina que, no estudo dos povos antigos, a responsabilidade penal dos "menores" passou por períodos de diferenciação e de indiferença em comparação à responsabilização dos adultos [18].

No Direito babilônico, por exemplo, com o advento do Código de Hammurabi (século XVIII a.C.), houve a unificação do Direito em todo o território, mas não se conferia responsabilização diferenciada às crianças (ou adolescentes), todos respondendo sob uma mesma lógica sistêmica [19].

As primeiras indicações de diferenciação na responsabilização vieram séculos mais tarde, na Grécia – embora, antes do século VII a.C., houvesse uma responsabilidade indistinta –, com Aristóteles, que sustentou uma isenção de responsabilidade para as crianças, em especial focando a não punição por crimes culposos. Nessa linha, também Platão ao sustentar que as crianças não deveriam sofrer outras penas que não as indenizações, exceto nos casos de homicídio [20].

Em Roma, a já mencionada Lei das XII Tábuas (449 a.C.) distinguia entre o menor púbere e o impúbere, conferindo responsabilidade diferenciada para essas categorias, focando-se o discernimento dos atos praticados, afastando-se, por exemplo, a pena capital para os impúberes no delito de corte noturno de grãos, quando seriam punidos com uma admoestação (verberatio) além do ressarcimento do dano. A tendência da exclusão da pena capital para menores de idade continuou no Direito Romano, chegando, na época clássica, à distinção de três categorias, a saber, os infantes, os impúberes e os menores, não cabendo aos primeiros – considerados como tais as crianças que não sabiam falar perfeitamente – responsabilização penal [21].

Com Justiniano, fixou-se em sete anos de idade a irresponsabilidade total pelos atos, não sendo castigado por uma equiparação ao furiosus. Havia, ainda, os impúberes – de sete a dez anos em meio para os homens e nove anos e meio para as mulheres – que também não eram responsabilizados por serem considerados proximus infantiae. Contudo, acima dessas idades até os quatorze anos para os homens e doze para as mulheres, a responsabilidade dava-se de forma atenuada, mas sempre prescindindo de uma constatação da presença de malícia, sem a qual também seriam irresponsáveis [22]. É possível aqui encontrar a gênese do critério do discernimento ao qual nos referiremos várias vezes.

Nas concepções iniciais, antes de ingressar na Idade Média, deve-se firmar que o Cristianismo configura-se em marco histórico fundamental.

Não há como negar que a influência do Cristianismo foi de suma importância na composição de uma consciência em que o indivíduo é a razão de ser, o motivo da existência do mundo chamado racional. Criado à imagem e semelhança de Deus, o homem deveria ser o destinatário final de todas as benesses promovidas pelo Estado, e isso de forma indistinta, já que todos somos irmãos.

Essa visão colocou à prova não só a concepção da época acerca de Estado, mas as próprias convicções religiosas, marcadas por uma severa codificação grafada no Pentateuco, repleto de passagens de violência contra a pessoa.

A laicização acentuou-se, vez que foi postulada uma separação inequívoca entre o "reino dos céus" e o "reino dos homens", marcada por máximas como "a César o que é de César e a Deus o que é de Deus".

Por mais que se negue a figura santificada do Messias, há que se reconhecer sua existência histórica marcante na defesa de uma sociedade mais humanizada, irmanada de forma a atingir a paz social tão almejada.

4.1.2. Período medieval

A Idade Média teve início na queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.) e durou até a queda do Império Romano do Oriente, marcada pela queda de Constantinopla em 29 de maio de 1453, quando se inicia a Idade Moderna.

Marcada por várias características e, em conseqüência, por vários sistemas jurídicos, pelo reconhecido obscurantismo já foi chamada de a "Idade das Trevas", visão histórica que para alguns merece uma retificação, já que, na Idade Média, também foram detectados vários avanços para a Humanidade.

Com a derrocada do Direito Romano, no ocidente, impregna-se, inicialmente, com sistemas menos desenvolvidos, trazidos pelos povos bárbaros, invasores. No oriente, entretanto, o Corpus Juris Civilis de Justiniano, que condensou o Direito Romano, vigorou por toda a Idade Média, até a invasão turca de Constantinopla.

Na Europa Ocidental, na Alta Idade Média, três sistemas jurídicos podiam ser reconhecidos: o Direito Romano, decadente; o Direito dos povos germânicos, calcado nos costumes e em ascensão; e o Direito Canônico, que surgia também com muita força [23].

Marcava o Direito dos germânicos os "Juízos de Deus" ou ordálios, que consistiam na submissão de um suspeito a uma prova de fogo ou de água, sempre com a presunção de que Deus protegeria os inocentes. A expectativa, a exemplo do que aconteceu mais adiante na Inquisição, era de que o temor por ser culpado levasse à confissão antes de que se aplicasse a prova.

A princípio, a Igreja Católica combateu os ordálios; no entanto, ainda na Idade Média, assumiu ela essa prática no Tribunal do Santo Ofício da Inquisição ou, simplesmente, a Inquisição, criada em 1232 pelo Papa Gregório IX, perdurando até o século XIX.

Mas antes da Inquisição, como dito acima, o Direito Canônico já se encontrava em ascensão [24]. Nem todas as questões, porém, eram passíveis de aplicação pelo Direito Canônico, que em fase embrionária, tinha apenas o condão de correção interna, aplicando-se somente aos clérigos. Havia algumas questões, civis e criminais, que eram submetidas ao julgo do Direito Canônico, exercido pelo juiz eclesiástico, o bispo [25]. Admitia-se o recurso do bispo para o arcebispo e deste para o papa, que julgava por intermédio de um Supremo Tribunal, a Rota, que cedeu lugar, posteriormente às Congregações, sendo restabelecido por Pio X, em 1908, sob a forma de Supremo Tribunal da Cristandade [26].

O sistema feudal, como se sabe, marcou a Idade Média (especificamente nos séculos X, XI e XII), e dele decorriam relações jurídicas diversas, calcadas nos costumes, mormente no que consiste à vassalagem.

Na Baixa Idade Média, o Direito sofre sensíveis transformações, iniciando o Direito Urbano, quando a noção de Estado começava a se formar. Com ele, o Direito Urbano, surge um Direito mais racional, o que repulsa os ordálios e os duelos judiciários. Nesse período, constata-se também o enfraquecimento dos senhores feudais em nome de um fortalecimento do monarca, que passa a concentrar poderes nas mãos. "Nos séculos XVI e XVII, os reis concentravam todos os poderes em suas mãos" [27].

Em suma, pois, na Idade Média, o Direito é marcado pela tentativa de fortalecimento da Igreja e do Estado, muito bem caracterizado pela doutrina política das "duas espadas", a da Igreja (que capitaneava a esfera espiritual) e a do rei (que se cingia ao poder temporal), sem que houvesse, no entanto, uma preocupação específica com os Direitos Humanos, ao contrário, com exemplos de extrema afronta a tais direitos, como no caso do Santo Ofício.

Esse contexto da Idade Média, todavia, deve ficar adstrito à Europa Continental, sem macular a imagem da Inglaterra que foi a precursora, o berço dos Direitos Humanos entendidos como um sistema protetivo, embora circunscrito ao seu território, o que foi manifestado, por exemplo, na Magna Carta Libertatum.

No que se refere especificamente à responsabilização dos menores de idade, o critério do discernimento, iniciado, como visto acima, no Direito Romano, persistiu por todo o período medieval. Esse cenário somente será alterado com o advento das idéias iluministas, que sedimentou critérios mais objetivos para a responsabilização dos menores [28].

Como exemplos desse período, tomemos o Direito Germânico e o Direito Canônico.

O Direito Germânico "o limite de responsabilidade estava fixado na etapa evolutiva da puberdade, quase sempre aos doze anos. É verdade que esse limite variava segundo as cidades e as assembléias das tribos, que poderiam alterá-la, segundo os costumes. Por outro lado, estando o menor sob a tutela de seu pai, era este responsável pelos danos por ele causados. As penas de morte e de mutilação também não se aplicavam, sendo cabível o castigo corporal e uma indenização compensatória, fixada pelo juiz, conforme o caso" [29].

Já no Direito Canônico, os critérios do Direito Romano foram mantidos em sua maioria, ou seja, a "menoridade continuava ser causa de isenção de pena ou de sua atenuação. Até os sete anos, o menor era considerado infante, e, como tal, gozava de total irresponsabilidade penal. Dos sete aos doze anos, para as mulheres, e dos sete aos quatorze, para os homens, a responsabilidade era duvidosa, devendo obedecer ao critério do discernimento. A partir dessa idade, a responsabilidade era reconhecida, mas a pena era aplicada de forma atenuada. No período medieval houve uma exacerbação das punições, mesmo os menores eram punidos com graves penas corporais, como a de pendurar o corpo pelas axilas" [30].

Em suma, esse foi o cenário verificado na Idade Média, no que concerne à responsabilização dos menores, já havendo a possibilidade de análise do histórico da legislação brasileira, porquanto o Direito vigente na Europa aportou em terras brasileiras pelas Ordenações do Reino.

4.1.3. Os Códigos Penais brasileiros

As Ordenações do Reino, abrangendo ainda o Brasil Colônia, iniciaram-se com as Ordenações Afonsinas (1446), seguindo com as Ordenações Manuelinas (1521) e, finalmente, com as Ordenações Filipinas (1603), perdurando esta até 1830, com a entrada em vigor do Código Criminal do Império.

As Ordenações Afonsinas e Manuelinas não trouxeram inovações, mesmo porque as primeiras conviviam no Brasil com as normas do Direito Canônico. Detecta-se uma diferenciação em relação aos menores, no entanto, desde as Ordenações Filipinas. "No Título CXXXV, do Livro V, estabelecia-se ‘Quando os menores serão punidos por delictos, que fizerem’. Na dicção da referida lei, seriam punidos com a pena total aqueles que tivessem mais de vinte e menos de vinte e cinco anos (idade de maioridade plena). Se, no entanto, tivesse o autor do fato entre dezessete e vinte anos, ficaria ao arbítrio do julgador dar-lhe a pena total ou diminuí-la. Para tanto, deveria o juiz olhar o modo como foi cometido o delito, suas circunstâncias, bem como a pessoa do menor. Poderia, pois, dar a pena total ou a pena mitigada" [30].

No que concerne às legislações genuinamente brasileiras, Sérgio Shecaira divide os períodos históricos em três etapas: etapa penal indiferenciada, etapa tutelar e etapa garantista. A primeira etapa caracteriza-se por "considerar os menores de idade praticamente da mesma forma que os adultos, fixando penas atenuadas e misturando nos cárceres adultos e menores na mais absoluta promiscuidade" [31]. A etapa tutelar é marcada por uma separação com a criação de instituições próprias para o acolhimento de menores, bem como pela rotulação e classificação dessas pessoas como "menores em situação irregular", não se distinguindo, por outro lado, entre menores carecedores de assistência do Estado daqueles carecedores de correção, em face do envolvimento com a delinqüência juvenil [32]. Por fim, a etapa garantista, além da manutenção da separação de instituições acolhedoras de menores, procede-se a diferenciação entre delinqüentes juvenis e menores carecedores de assistência, substituindo-se a "situação irregular" pela "proteção integral", priorizando-se extremamente os interesses da criança e do adolescente [33].

No estudo dos Códigos Penais comuns, nosso propósito neste ponto, frise-se, já de início, que as Constituições anteriores à "Constituição Cidadã" de 1988, não versaram sobre a maioridade penal, razão pela qual a matéria ficava a cargo apenas da legislação infraconstitucional, i.e., os Códigos Penais que tiveram diferentes concepções acerca do tema.

O Código Criminal do Império, iniciando nosso estudo evolutivo, foi inovador ao estabelecer uma idade mínima para a responsabilização do menor, fixando em seu art. 10, que não haveria responsabilização para os menores de quatorze anos, salvo se demonstrassem ter discernimento, quando seriam encaminhados para as casas de correção, pelo tempo que o juiz considerasse razoável, sem que se ultrapassasse a idade de dezessete anos. Fixou-se, assim, uma doutrina do discernimento, segundo a qual não havia a eleição de critérios objetivos puros para a responsabilização de menores, mas a permeação de avaliações psicológicas, subjetivas, a influenciar na responsabilização. Para os maiores de quatorze e menores de dezessete, poderiam ser impostas, se parecesse justo ao juiz, impor as "penas da cumplicidade" [34]. Vale assinalar que as chamadas "casas de correção" não foram construídas, o que coloca o Código Criminal do Império na etapa de responsabilidade indiferenciada, conforme a classificação acima proposta.

O Código Penal de 1890, ingressando no período republicano, fixava a possibilidade de responsabilização penal acima dos nove anos, desde que houvesse capacidade psicológica, adotando, assim, um critério biopsicológico, dentro de uma doutrina do discernimento.

Na época, previa-se, para os menores de quatorze e maiores de nove anos que agissem com discernimento, a internação em estabelecimento disciplinar industrial, que também não foi implantado pelo Poder Público, o que classifica o Código Penal de 1890 como uma legislação presente na etapa da responsabilização indiferenciada.

Um marco importante nessa evolução foi o surgimento, em 1923, do primeiro Juizado de Menores do Brasil, que teve como titular o Magistrado José Cândido Albuquerque Mello Matos, criando-se também um abrigo para menores infratores e abandonados, com a dupla finalidade de acolhimento e de reeducação. A nova realidade ensejou várias críticas e debates, culminando, anos mais tarde, com a edição do "Código Mello Matos", o Código de Menores trazido ao ordenamento pelo Decreto 17.943-A, de 12 de outubro de 1927.

Nesse contexto, são idealizadas as Consolidações das Leis Penais de 1932 que reproduziram o art. 68 do "Código Mello Matos", elevando a maioridade penal para quatorze anos, especificamente em seu art. 27, optando-se por um critério biológico, abandonando-se o critério do discernimento, para a definição da inimputabilidade dos menores de quatorze anos. O "Código Mello Matos" inaugurou a etapa tutelar, o que, obviamente, inebria também a legislação penal, superando a etapa indiferenciada.

Ainda nessa etapa, surge o Código Penal de 1940 que, em sua Parte Geral original, sob o esclarecimento de que não cuidaria dos imaturos "se não para declara-los inteira e irrestritamente fora do direito penal (art. 23), sujeitos apenas à pedagogia corretiva de legislação especial" [35] (SIC), optou pela definição de maioridade penal, sob o critério biológico, acima dos dezoito anos de idade, também afastando, portanto, a doutrina do discernimento.

Como bem se sabe, no ano de 1969, mais precisamente em 21 de outubro daquele ano, juntamente com o atual Código Penal Militar (Decreto-lei 1001/69), surgiu no universo jurídico o novo Código Penal comum (Decreto-lei 1004/69) que teve sua entrada em vigor postergada e foi revogado antes que pudesse viger. Por essa razão, é conhecido como "natimorto Código Penal de 1969". Naquele diploma, inicialmente, a maioridade penal dava-se após os dezesseis anos, desde que houvesse entendimento da ilicitude da conduta (critério biopsicológico, atrelado ao critério do discernimento). No entanto, a redação do referido diploma foi alterada pela Lei n. 6.016, de 31 de dezembro de 1973, retornando a uma concepção afastada do critério do discernimento, e passou a dispor que os menores de dezoito anos eram penalmente inimputáveis e sujeitos às medidas educativas, curativas ou disciplinares determinadas em leis especiais (art. 33 e 34 do CP de 1969).

Em 1979, surge no cenário a Lei n. 6.697, inaugurando um novo momento da etapa tutelar. Trata-se do novo Código de Menores. "Como 1979 era o ano internacional da criança, o legislador foi acusado de ter elaborado a nova lei de afogadilho, apenas para atender à data comemorativa. O certo é que o Código de Menores de 1979 não mudava a essência do problema, mantendo a doutrina da situação irregular, nome oriundo da Legislação Espanhola de 1918" [36].

Ainda sob a égide do Código de Menores houve a reforma da Parte Geral do Código Penal comum, trazida pela Lei n. 7.209/84, que manteve o critério puramente biológico para a responsabilização dos menores de dezoito anos, critério atual conforme já anotado acima.

No entanto, com a constituição de 1988, inaugura-se uma nova fase, a etapa garantista que é posteriormente regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90). A influência para essa nova abordagem vem dos diversos instrumentos internacionais, como, além daqueles referentes aos Direitos Humanos (Declaração Universal dos Direitos do Homem e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos), a Declaração dos Direitos da Criança de 1959, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude de 1985 ("Regras de Beijing"), a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil de 1990 ("Diretrizes de Riad") e as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade de 1990 ("Regras de Tóquio").

Por essa nova vertente, os interesses da criança e do adolescente ganham prioridade absoluta, deixando-se a doutrina da situação irregular para ingressar na doutrina da proteção integral. A legislação penal, deve-se notar, não foi alterada pela nova realidade trazida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, mas, sem dúvida alguma, matiza com foco na Constituição Federal – frise-se novamente, a primeira a tratar da maioridade penal –, especificamente o Título VIII nos art. 227 a 229, toda e qualquer interpretação que se queira dar à aplicação das normas de responsabilização aos menores de dezoito anos.

4.2. Imputabilidade no Código Penal Militar

Ingressaremos agora no Direito Penal Militar, iniciando por uma evolução histórica sob a premissa de que a responsabilização do menor de idade não continha previsão no plano constitucional, como acima indicado.

Inicialmente, para o Direito Penal Militar no Brasil vigeram, junto com as Ordenações Filipinas os Artigos de Guerra do Conde de Lippe, que vigoraram no Brasil até final do século XIX, com o surgimento do Código Penal da Armada. Referidos Artigos surgiram em virtude da reestruturação do Exército português, no século XVIII, levada a efeito por Wilhelm Lippe, Conde de Schaumbourg, oficial alemão alistado na Marinha Inglesa e profundo conhecedor de Artilharia, que foi convidado pelo Rei D. José I, de Portugal, para a empreitada [37]. Em verdade, os citados Artigos são fragmentos de um regulamento mais abrangente que surgira por ocasião da reorganização, encontrando-se os dispositivos especificamente nos Capítulos 23 e 26.

Tomemos, então, como marco do Direito Penal Militar republicano o Código Penal da Armada (Decreto 949, de 5 de novembro de 1890, substituído pelo novo diploma pelo Decreto 18, de 7 de março de 1891, assinado pelo então Ministro da Marinha, o Contra-Almirante Fortunato Foster Vidal), que pôs termo aos supracitados Artigos de Guerra, o qual aplicou-se inicialmente à Armada e, na seqüência, ao Exército Nacional (Lei n. 612, de 29-9-1899) e à Força Aérea (Dec.-Lei n. 2.961, de 20-1-1941).

No texto do Código Penal da Armada (o diploma de 1891), para a regra geral de imputabilidade, percebe-se a tendência a um critério biopsicológico, grafado no art. 23 que dispunha que os "indivíduos isentos de culpabilidade, em resultado de afectação mental, serão entregues às suas famílias ou recolhidos a hospital de alienados, se o seu estado mental o exigir para a segurança do público".

No que se refere à maioridade penal, foi ela fixada aos nove anos (critério biológico), havendo um intervalo em que era adotado o critério biopsicológico, com enfoque na teoria do discernimento (dos nove anos aos quatorze). Contudo, como conseqüências da prática criminosa por menor de dezessete anos, apenas haveria sanções disciplinares, em estabelecimento próprio ("estabelecimentos disciplinares"), e não a aplicação das penas grafadas no Código Penal da Armada.

Ressalte-se que, como já mencionado acerca das Casas de Correção e do Estabelecimento Disciplinar Industrial, referidos no Código Criminal do Império e no primeiro Código Penal comum republicano, não se tem notícia nessa época de um estabelecimento disciplinar específico, caracterizando-se em uma fase indiferenciada no que concerne à acomodação do menor infrator da lei penal militar.

O Código Penal Militar de 1944 (Decreto-lei 6.227, de 24 de janeiro de 1944), que sucedeu ao Código Penal da Armada, definia a imputabilidade, como regra geral, sob o critério biopsicológico, ao consignar no art. 35 que é "isento de pena quem, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acôrdo com êsse entendimento" (SIC). Previa ainda o parágrafo único que a "pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental, ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acôrdo com êsse entendimento".

A maioridade penal, numa etapa tutelar sob égide do "Código Mello Matos" de 1927, foi fixada pelo diploma em foco acima dos dezoito anos e acolhia o critério biológico, afastando-se do critério do discernimento, nos termos do art. 36 que dispunha que os "menores de dezoito anos são penalmente irresponsáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial".

Todavia, para os militares e assemelhados, havia uma equiparação a maior de dezoito anos, ainda que não tivessem atingido essa idade, conforme o parágrafo único do artigo supracitado. Essa foi uma importante distinção em relação ao Direito Penal comum, que não previa essa possibilidade de equiparação.

Ressalte-se que, nessa etapa tutelar, numa primeira fase, foram criadas instituições específicas, mas sob a doutrina da situação irregular, não diferenciando o menor infrator do abandonado.

No atual Código Penal Militar (Decreto-lei 1001, de 21 de outubro de 1969), a regra geral na definição da imputabilidade adota o critério biopsicológico, conforme dispõe o art. 48 ao versar que não é "imputável quem, no momento da ação ou da omissão, não possui a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, em virtude de doença mental, de desenvolvimento mental incompleto ou retardado". No parágrafo único do referido dispositivo, previu-se a semi-imputabilidade, firmando-se que se "a doença ou a deficiência mental não suprime, mas diminui consideravelmente a capacidade de entendimento da ilicitude do fato ou a de autodeterminação, não fica excluída a imputabilidade, mas a pena pode ser atenuada [38], sem prejuízo do disposto no art. 113".

A maioridade penal, ainda em uma etapa tutelar marcada pelo "Código Mello Matos", foi fixada acima dos dezesseis anos, seguindo também o critério biopsicológico para os maiores de dezesseis e menores de dezoito, adotando-se o critério do discernimento e o critério biológico para os menores de dezesseis anos, pelo disposto no art 50, in verbis: "O menor de dezoito anos é inimputável, salvo se, já tendo completado dezesseis anos, revela suficiente desenvolvimento psíquico para entender o caráter ilícito do fato e determinar-se de acordo com este entendimento. Neste caso, a pena aplicável é diminuída de um terço até a metade".

De acordo com a redação acima, podemos entender que os menores de dezoito, maiores de dezesseis, possuem uma semi-imputabilidade.

Essa previsão, no entanto, não se aplica aos menores de dezoito anos que sejam militares, convocados (os que se apresentam para a incorporação e os que, dispensados temporariamente desta, deixam de se apresentar após o prazo de licenciamento) ou alunos de estabelecimentos de ensino sob disciplina militar, porquanto são eles, a exemplo do que o Código Penal Militar de 1944 fazia para militares e assemelhados, equiparados a maiores de dezoito anos, segundo o disposto no artigo 51 do atual Código Penal Castrense.

Pela redação do citado artigo, há a impressão de que as pessoas nele citadas – o militar, os convocados etc. –, a qualquer idade, são equiparados a maior de dezoito anos, porém, em uma investigação mais amiúde, verificaremos que, sistematicamente, a equiparação aplica-se apenas aos maiores de dezesseis anos. Os autores aquém dos dezesseis anos incompletos são, na visão do CPM, inimputáveis, estando sujeitos à legislação especial (critério biológico).

A essa conclusão chegamos após a análise do art. 52 do CPM, que dispõe que os "menores de dezesseis anos, bem como os menores de dezoito e maiores de dezesseis inimputáveis, ficam sujeitos às medidas educativas, curativas ou disciplinares determinadas em legislação especial".

Claramente, o art. 52 aplica-se tanto aos sujeitos definidos no art. 50 – civis – como àqueles definidos no art. 51 – os convocados e os alunos de estabelecimentos de ensino sob disciplina militar – firmando que o menor de dezesseis é penalmente inimputável.

Dessa forma, poderíamos assentar, de acordo com a literalidade do CPM, as seguintes regras:

1ª) para os civis autores de fatos descritos como crime no CPM: os menores de dezesseis anos são penalmente inimputáveis (adoção de critério biológico, conforme art. 50 e 52 do CPM); os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos são semi-imputáveis, desde que revelem "suficiente desenvolvimento psíquico para entender o caráter ilícito do fato e determinar-se de acordo com este entendimento" (critério biopsicológico, adotando-se o discernimento como foco da responsabilização); os maiores de dezoito anos são penalmente imputáveis, desde que não sejam, no momento da ação ou da omissão, acometidos de doença mental, de desenvolvimento mental incompleto ou retardado que lhe suprimam a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (critério biopsicológico, expresso no art. 48 do CPM como regra geral);

2ª) para os militares autores de fatos descritos como crime no CPM: os menores de dezesseis anos são penalmente inimputáveis (adoção de critério biológico, conforme art. 52 do CPM); os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos são imputáveis por equiparação a maiores de dezoito anos (art. 51, "a", do CPM, afastando-se o critério do discernimento), desde que não sejam, no momento da ação ou da omissão, acometidos de doença mental, de desenvolvimento mental incompleto ou retardado que lhe suprimam a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (critério biopsicológico, expresso no art. 48 do CPM como regra geral); os maiores de dezoito anos são penalmente imputáveis, desde que não sejam, no momento da ação ou da omissão, acometidos de doença mental, de desenvolvimento mental incompleto ou retardado que lhe suprimam a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (critério biopsicológico, expresso no art. 48 do CPM como regra geral);

3ª) para os convocados (os que se apresentam para a incorporação e os que, dispensados temporariamente desta, deixam de se apresentar após o prazo de licenciamento) autores de fatos descritos como crime no CPM: os menores de dezesseis anos são penalmente inimputáveis (adoção de critério biológico, conforme art. 52 do CPM); os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos são imputáveis por equiparação a maiores de dezoito anos (art. 51, "b", do CPM, afastando-se o critério do discernimento), desde que não sejam, no momento da ação ou da omissão, acometidos de doença mental, de desenvolvimento mental incompleto ou retardado que lhe suprimam a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (critério biopsicológico, expresso no art. 48 do CPM como regra geral); os maiores de dezoito anos são penalmente imputáveis, desde que não sejam, no momento da ação ou da omissão, acometidos de doença mental, de desenvolvimento mental incompleto ou retardado que lhe suprimam a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (critério biopsicológico, expresso no art. 48 do CPM como regra geral); como exemplos de menores de dezoito anos nos casos citados, podemos enumerar o voluntário para o serviço militar inicial, que pode, como lembra Jorge César de Assis, alistar-se a partir dos dezessete anos de idade, mediante autorização do Comandante de cada Força, nos termos dos art. 20 e 127 do Dec. N. 57.654, de 20 de junho de 1966, que regulamenta a Lei do Serviço Militar (Lei n. 4.375, de 17 de agosto de 1964) [39];

4ª) para os alunos de colégios sob disciplina militares autores de fatos descritos como crime no CPM: os menores de dezesseis anos são penalmente inimputáveis (adoção de critério biológico, conforme art. 52 do CPM); os maiores de dezesseis e menores de dezessete anos estariam sujeitos às regras da semi-imputabilidade do art. 50, ou seja, podem ser responsabilizados penalmente com uma pena reduzida, desde que revelem "suficiente desenvolvimento psíquico para entender o caráter ilícito do fato e determinar-se de acordo com este entendimento" (critério biopsicológico); os maiores de dezessete e menores de dezoito anos são imputáveis por equiparação a maiores de dezoito anos (art. 51, "c", do CPM), desde que não sejam, no momento da ação ou da omissão, acometidos de doença mental, de desenvolvimento mental incompleto ou retardado que lhe suprimam a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (critério biopsicológico, expresso no art. 48 do CPM como regra geral); os maiores de dezoito anos são penalmente imputáveis, desde que não sejam, no momento da ação ou da omissão, acometidos de doença mental, de desenvolvimento mental incompleto ou retardado que lhe suprimam a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (critério biopsicológico, expresso no art. 48 do CPM como regra geral).

Todas essas regras, no entanto, não podem contrariar a Constituição Federal de 1988, cabendo, então, averiguar se as regras de imputação por delito militar de menores de dezoito anos foram respaldadas pela atual Constituição Federal.

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Sobre o autor
Cícero Robson Coimbra Neves

Promotor de Justiça Militar em Santa Maria/RS. Mestre em Direito Penal pela PUC/SP (2008) e em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar de São Paulo (2013). Foi Oficial Temporário do Exército, de Artilharia (1989 a 1991), e Oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo, ingressando na Reserva não Remunerada no posto de Capitão (1992 a 2013). Foi professor de Direito Penal Militar na Academia de Polícia Militar do Barro Branco (2000 a 2013).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEVES, Cícero Robson Coimbra. Direito Penal Militar Juvenil (?). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2242, 21 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13365. Acesso em: 16 abr. 2024.

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