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A prisão preventiva nos casos de violência doméstica

29/06/2009 às 00:00
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RESUMO: O sistema processual penal brasileiro consubstanciado no Código de Processo Penal de 1941 foi elaborado partindo-se da premissa de um juízo de antecipação da culpabilidade. Cabe, portanto, ao operador do Direito interpretar o Título IX, do CPP "Da Prisão e da Liberdade Provisória" à luz da Constituição da República de 1988, bem como sobre a batuta dos princípios constitucionais implícitos da proporcionalidade e da razoabilidade. É diante desse alerta que se analisará a constitucionalidade do inciso IV, do art.313 do Código de Processo Penal frente à nova jurisprudência dos Tribunais Superiores acerca da prisão preventiva e o princípio da não culpabilidade ou presunção de inocência.

PALAVRAS-CHAVE: Prisão Preventiva. Lei Maria da Penha. Constitucionalidade.


O ano de 2009 está sendo brindado com lúcidas decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça acerca da prisão preventiva, cautelar por excelência, e o princípio da não culpabilidade. É o reflexo de anos de trabalho de doutrinadores acerca das incongruências do Código de Processo Penal frente ao sistema de direitos e garantias constitucionais brasileiro.

Certamente chegará aos Tribunais Superiores a controvérsia envolvendo o disposto no art.313, IV, do Código de Processo Penal e espera-se uma decisão que coadune com a Constituição de 1988. O art.313, IV, do CPP dispõe:

Art. 313. Em qualquer das circunstâncias, previstas no artigo anterior, será admitida a decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos: (Redação dada pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977) [...] IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência. (Incluído pela Lei nº 11.340, de 2006).

Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça da Bahia, em obra de sua co-autoria "A Lei Maria da Penha – aspectos criminológicos, de política criminal e procedimento penal" escreve sobre o referido artigo:

Aqui mais um absurdo e uma inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha. Permite-se que qualquer que seja o crime (doloso), ainda que apenado com detenção (uma ameaça, por exemplo), seja decretada a prisão preventiva, bastando que estejam presentes o fumus commissi delicti (indícios da autoria e prova da existência do crime – art.312, CPP) e que a prisão seja necessária para garantir a execução das medidas de proteção de urgência. A lei criou, portanto, este novo requisito a ensejar a prisão preventiva. [01]

É certo que os defensores árduos da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06), talvez cegados por posições ideológicas extremadas que impedem de vislumbrar inconstitucionalidades na referida lei em nome da defesa do gênero mulher, entendem que houve apenas um equívoco do legislador, vez que o disposto no art. 313, IV, do CPP deveria constar de fato na redação do art. 312, daquele diploma legal. Eles consideram que há a natureza de verdadeiro fundamento da prisão preventiva no disposto no inciso quarto do art. 313, CPP, e que é possível, portanto sem pecha de inconstitucionalidade a decretação da preventiva para que se garanta a eficácia das medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha. Nessa visão distorcida não seria mais necessária a demonstração dos requisitos da garantia da ordem pública ou econômica, conveniência da instrução criminal e aplicação da lei penal, além da magnitude da lesão causada nos casos dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. [02]

Data venia, o debate não pode se resumir a tal assertiva, pois o problema reside em reconhecer a preventiva in casu como verdadeira prisão de cunho obrigacional [03], bem como na possibilidade de infligir uma verdadeira prisão pena a alguém que não foi definitivamente julgado, podendo ser que a pena definitiva, se culpado o agressor, seja bem menor do que a pena cautelar cumprida durante o decorrer do processo [04].

Ambas situações são incompatíveis com a Constituição Federal e com o sistema de princípios penais e processuais penais plasmados no sistema brasileiro. A primeira tese, de que a prisão preventiva no caso do art.313, IV, não pode ser entendida como de cunho obrigacional é defendida por Nestor Távora, defensor público em Alagoas, e por Rosmar Alencar, Juiz Federal. Eles compreendem que não há que se imprimir a tal preventiva um efeito coativo à realização das medidas protetivas em razão da própria interpretação sistemática do diploma 11.340/06. O art. 22 da referida lei traz:

Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:[...]§ 3º  Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial. § 4º  Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o disposto no caput e nos §§ 5o e 6º do art. 461 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil). [05]

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Ora, se o legislador inseriu na lei a possibilidade de o juiz requisitar a força policial a qualquer tempo para efetivação das medidas protetivas, não há que se valer, portanto da decretação da prisão preventiva, vez que outra alternativa menos onerosa e mais condizente com a ordem constitucional foi oferecida ao magistrado. Impende notar, ainda, que o parágrafo quarto do art. 22 em tela, invoca a aplicação de dispositivos do Código de Processo Civil que tratam de ferramentas de coação para dar efetividade a certas obrigações, imposição de astreintes, busca e apreensão etc. Há, portanto, outros meios eficazes para a proteção da mulher e menos onerosos ao réu para se percorrer.

E quanto ao segundo questionamento acerca da preventiva nos delitos de violência doméstica, Guilherme de Souza Nucci critica a possibilidade da preventiva em todos os delitos que envolvem violência doméstica, e alerta:

Se preenchidos os requisitos legais (art.312, CPP), cabe a custódia cautelar. Entretanto, é fundamental muita cautela para tomar essa medida. Há delitos incompatíveis com a decretação de prisão preventiva. Ilustrando: a lesão corporal possui pena de detenção de três meses a três anos; a ameaça, de detenção de um a seis meses, ou multa. São infrações penais que não comportam preventiva, pois a pena a ser aplicada, no futuro, seria insuficiente para "cobrir" o tempo de prisão cautelar (aplicando-se, naturalmente, a detração conforme art.42 do Código Penal). Leve-se em conta, inclusive, para essa ponderação, que vigora no Brasil a chamada política da pena mínima, vale dizer, os juízes, raramente, aplicam pena acima do piso e, quando o fazem é um elevação ínfima, bem distante do máximo. Estaria configurada uma violação abominável contra o réu, que ficaria cautelarmente detido por mais tempo do que a pena futura a ser aplicada. Por tal motivo, o juiz deve ponderar, como se faz nos processos criminais comuns, se a prisão preventiva é, realmente, necessária e compatível com o crime cometido em tese. [06]

Insta observar que a aplicação do art. 313, inciso IV, somente será possível se presentes pelo menos os requisitos da preventiva, bem como uma das hipóteses da decretação da cautelar, no art. 312, do Código de Processo. A aplicação da prisão preventiva somente tendo como escopo a efetividade das medidas protetivas pode ensejar injustiças maiores perante o sistema penal, seja em razão de existir outros meios que impõem uma eficácia às medidas protetivas, seja em razão de a prisão cautelar no caso se consubstanciar em uma injustiça em virtude da possibilidade de o réu ficar preso cautelarmente por um tempo superior ao de sua condenação futura e definitiva.

Dessarte, é muito provável que a interpretação futura dos Tribunais Superiores possa corrigir a distorção efetivada pela falta de técnica legislativa do parlamentar brasileiro, em respeito à unidade da Constituição e da interpretação de todo o sistema legislativo, de acordo com a Constituição Federal e não o contrário. A prisão preventiva nos delitos de violência doméstica e familiar contra a mulher será possível se presente a comprovação da materialidade, os indícios da autoria e a subsunção a uma das hipóteses autorizadoras da decretação constantes no art.312, do CPP. Dessa forma, a proteção será oferecida de maneira equânime à ofendida, bem como ao acusado, em respeito ao princípio da proporcionalidade e ao princípio da isonomia.


Notas

  1. GUIMARÃES, Isaac Sabbá; MOREIRA, Rômulo de Andrade. A Lei Maria da Penha – aspectos criminológicos, de política criminal e do procedimento penal. Salvador- BA: JusPodivm, 2008, p. 157.
  2. Cf. ibidem, p . 156.
  3. Cf. TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 3.ed., rev. ampl. e atual. Salvador – BA: JusPodivm, 2009, p. 483.
  4. Cf. NUCCI, Guilherme de Souza. Lei penais e processuais penais comentadas. 3.ed., rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 1141-1142.
  5. BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm> Acesso em: 30 mai. 2009.
  6. NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 1141-1142.
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Sobre a autora
Maria Aparecida Nunes Amorim

Promotora de Justiça do Estado de Goiás, Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal de Goiás, Especialista em Direito Penal pela Universidade de Brasília.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Maria Aparecida Nunes. A prisão preventiva nos casos de violência doméstica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2189, 29 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13064. Acesso em: 20 abr. 2024.

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