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Agências reguladoras

Agências reguladoras

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Introdução

            A figura jurídica das agências reguladoras insere-se no quadro de reestruturação do Estado Brasileiro, resultado de uma tendência à supressão do regime burocrático de exercício da atividade administrativa, em favor de uma conduta gerencial, em que se encontram privilegiadas a transparência, a eficiência e a celeridade dos atos administrativos, com significativas mudanças em toda a política de atuação do Estado na economia e na sociedade.

            Um modelo de administração gerencial pressupõe uma instituição com seus corpos diretivo e funcional comprometidos com a missão institucional, orientados para a efetividade dos resultados da atuação organizacional e para a valorização dos recursos públicos disponíveis, visando ao alcance de resultados específicos.

            Inseridas na sistemática constitucional brasileira há aproximadamente uma década [01], os entes reguladores ocupam papel de destaque no palco das discussões jurídicas atuais, particularmente quando a tônica se reveste de caráter constitucional.


Agências Reguladoras Nacionais

Inserção dos entes reguladores na Ordem Econômica Constitucional

            Muito embora a Constituição Federal tenha consagrado a idéia de uma economia descentralizada, de mercado, conferiu autorização ao Estado para intervir no domínio econômico como agente normativo e regulador, com vistas a exercer as funções de fiscalização, incentivo e planejamento indicativo ao setor privado, uma vez observados os princípios constitucionais da ordem econômica, esculpidos no art. 170 da Carta Magna.

            Destaque-se, entre tais preceitos, o da livre concorrência, apresentada como manifestação da liberdade de iniciativa, em favor da qual a Constituição estatui que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros, na forma do art. 173, § 4°, da Lei Maior. Reconhece-se, destarte, o poder do Estado de intervir em casos em que o poder econômico esteja sendo utilizado de maneira abusiva ou anti-social, maculando a livre economia de mercado.

            De fato, as transformações advindas da reforma administrativa do Estado exigiram a formulação de um novo modelo estatal, em bases gerenciais, no qual o Estado assume funções marcadamente regulamentadoras, mantendo como objetivo privilegiado a promoção da concorrência entre agentes privados, levada a efeito, primordialmente, sob a nova ótica, pelas agências reguladoras.

            Foi somente a partir de 1990, com a abertura da economia brasileira, que a regulação da concorrência e a proteção dos mercados passaram a assumir maior importância jurídica e econômica, funcionando o Estado como fiscalizador e orientador de atividades econômicas competitivas caracterizadas constitucionalmente como serviço público em razão de política legislativa.

            O papel das agências reguladoras, nesta senda, é o de realizar o equilíbrio dos contratos de serviço, monitorando o processo de negociação contratual entre os prestadores do serviço e os usuários do mesmo, agindo, neste contexto, como um terceiro imparcial que controla a relação de consumo do serviço público, com o nítido escopo de harmonizar os interesses opostos, concretizando, desta maneira, a função estatal nos setores objeto de regulação.


Características das agências reguladoras no Brasil

            A criação das agências reguladoras brasileiras objetiva o atendimento da função de regulação social, voltada a assegurar ao administrado o pleno exercício de seus direitos, sem que fique à mercê do poder econômico detido pelas prestadoras dos serviços.

            As referidas agências foram criadas como autarquias sob regime especial, considerando-se este como o conjunto de privilégios específicos que a lei outorga à entidade para a consecução de seus fins. No caso das agências reguladoras até agora criadas no âmbito da Administração Federal, esses privilégios caracterizam-se basicamente pela independência administrativa, fundamentada na estabilidade de seus dirigentes (mandato fixo), autonomia financeira (renda própria e liberdade de sua aplicação) e poder normativo (regulamentação das matérias de sua competência).

            Diogo de Figueiredo Moreira Neto, citando o administrativista francês Guy Braibant, elenca a tríade de vantagens que permeiam o instituto em foco - a vantagem política, a técnica e a fiscal, na seguinte medida:

            "A vantagem política reside na abertura da participação ao administrado, propiciando um clima de colaboração intenso e benéfico, aumentando, em conseqüência, a legitimidade das decisões da entidade intermédia. A vantagem técnica está na despolitização de inúmeras decisões que, em vez de serem tomadas por indivíduos das áreas política ou burocrática, descomprometidos pessoalmente com os resultados, no sentido do que não são por eles atingidos, passam a ser negociadas pelos grupos sociais mais diretamente interessados, evitando posturas políticas, ideológicas, teorias esdrúxulas, experiências desastrosas e as indefectíveis generalizações fáceis. A vantagem fiscal, por fim, está no fato de que esses entes de cooperação podem vir a ser criados sem gerar novos ônus para o Estado, prescindindo de novos tributos para custeá-los, uma vez que os recursos necessários para mantê-los e desenvolver-lhes as atividades, podem vir a ser cobrados de todos os diretamente beneficiados". [02]

            Em função da natureza dos serviços regulados, tais entes possuem aspectos comuns e específicos, entre os quais merecem destaque:

            - os administradores possuem mandato, só podendo ser destituídos por condenação judicial transitada em julgado, improbidade administrativa ou descumprimento injustificado das políticas estabelecidas para o setor ou pelo contrato de gestão;

            - nomeação dos dirigentes pelo Presidente da República, com prévia aprovação dos nomes pelo Senado Federal, nos termos do art. 52, III, ‘f ’, da Constituição da República;

            - edição de normas sobre matérias de sua competência;

            - vedação ao ex-dirigente, até um ano depois de deixar o cargo, de representar qualquer interesse perante a agência, ou de prestar serviços a empresas sob sua regulamentação;

            - recursos próprios oriundos de taxa de fiscalização ou de autorizações específicas relativas às suas atividades;

            - declaração de utilidade pública, para fins de desapropriação ou servidão administrativa, das áreas necessárias aos concessionários, permissionários e autorizados de energia elétrica (ANEEL). [03]

            Hely Lopes Meirelles salienta que:

            "a autarquia, sendo um prolongado do Poder Público, um longa manus do Estado, executa serviços próprios do Estado, em condições idênticas às dos Estado, com os mesmos privilégios da Administração-matriz e passíveis dos mesmos controles dos atos constitucionais. O que diversifica a autarquia do Estado são os métodos operacionais, que permitem maior flexibilidade de atuação, com possibilidade de decisões rápidas e ações imediatas". [04]


Questões Constitucionais

Poder Regulador e Poder Regulamentar

            Cumpre-nos destacar, posto que de fundamental importância ao presente estudo, a diferença entre a função reguladora do Poder Executivo e sua função regulamentar.

            Maria Sylvia Zanella Di Pietro, com bastante propriedade, preleciona:

            "‘Regular’ significa estabelecer regras, independentemente de quem as dite, seja o Legislativo ou o Executivo, ainda que por meio de órgãos da Administração direta ou entidades da Administração indireta. Trata-se de vocábulo de sentido amplo, que abrange, inclusive, a regulamentação, que tem um sentido mais estrito.(...) Regulamentar significa também ditar regras jurídicas, porém, no direito brasileiro, como competência exclusiva do Poder Executivo. Perante a atual Constituição, o poder regulamentar é exclusivo do Chefe do Poder Executivo (art. 84, IV), não sendo incluído, no parágrafo único do mesmo dispositivo, entre as competências delegáveis" [05].

            A partir dessas constatações, pode-se afirmar que a função reguladora do Poder Executivo subsume-se à estipulação de regras, por quaisquer de seus órgãos e pelos mais diversos meios, e não apenas à edição de regulamentos, por parte de seu chefe, podendo, ainda, ser exercida pelos órgãos da administração direta (através da edição de atos, resoluções, portarias, circulares, deliberações e regimentos), bem como pelos órgãos da administração indireta, que também podem exercitar uma parcela da função de regulação confiada ao Poder Executivo (exemplos desta última categoria são, sem dúvida, as agências reguladoras, definidas como autarquias de regime especial).

            De bom alvitre ressaltar que a administração, como integrante do Estado, está, portanto, obrigada ao atendimento do disposto no artigo 174, da Constituição, que dispõe, in verbis: "Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado".

            J. J. Gomes Canotilho [06], ao tratar de uma nova perspectiva jurídica por ele denominada regulática, assim dispõe:

            "O ponto de partida da regulática é, tendencialmente, este: as mudanças estruturais da sociedade tornam clara a necessidade de o direito não ser considerado como regulador heterônomo de relações sociais, mas como instrumento de trabalho para auto-regulação das relações sociais. Conseqüentemente, o problema das fontes de direito deve ter em consideração não apenas as questões tradicionalmente ligadas às regulações legais, mas também normações jurídicas de qualquer gênero, como, por exemplo, contratos, sentenças, convenções colectivas de trabalho, normas privadas das empresas e de associações (ex.: federações desportivas) e até o ‘direito achado na rua’. Numa palavra: tem de tomar em conta o complexo processo juris-sociológico de produção do direito. Além disso, uma compreensão moderna (rectius: pós-moderna) das fontes de direito deve também responder às mudanças das estruturas sociais num sentido individualizante, e, por isso, causadoras de modelos de regulação flexíveis. (...). Independentemente dos postulados teóricos e políticos da regulática, é inegável que não existe um monopólio estatal de normação constitucionalmente consagrado. Pelo contrário: vários preceitos constitucionais apontam para a necessidade de desconcentração e descentralização da regulação jurídica (...)".

            Dessa forma, os regulamentos das agências reguladoras apareceriam como manifestação de um poder normativo descentralizado.


Poder Normativo, Princípios da Separação dos Poderes e da Legalidade

            O poder normativo das agências reguladoras brasileiras tem sido largamente questionado, tanto a nível doutrinário quanto jurisprudencial, ao contrário da tendência geral verificada em países como Estados Unidos e França, em que tal discussão, embora ocorrente, não alcança o patamar aqui observado.

            Abordagem deste jaez conduz-nos ao debate acerca da constitucionalidade das agências reguladoras, assunto que tem merecido amplas e aprofundadas considerações, em lados opostos: uma parte da doutrina entende ferirem as agências os princípios da legalidade e da separação dos poderes, enquanto um posicionamento vanguardista permite uma mitigação destas concepções.

            Quanto ao princípio da separação dos poderes, impende ressaltar a relevância que a matéria apresenta, uma vez considerada a agência reguladora como ente aglomerador de funções típicas dos 3 Poderes: Executivo, quando da fiscalização e controle do cumprimento das normas editadas; Legislativo, em face da formulação normativa; e Judiciário, no que pertine à aplicação de reprimendas em casos de descumprimento das regras por elas impostas.

            Na esfera internacional, há diferentes abordagens acerca da independência dos entes reguladores na França e nos Estados Unidos. No primeiro país, tendo em vista a existência do contencioso administrativo, somente ao qual se submetem as questões administrativas, surge a discussão sobre qual a jurisdição a que devem se submeter as autoridades administrativas independentes, na consideração de que sua submissão ao Judiciário poderia caracterizar uma ofensa ao princípio da separação de poderes.

            Em contrapartida, nos Estados Unidos, ainda que a questão da separação de poderes seja relevante, os debates não se circunscrevem a este aspecto, pois não há qualquer dúvida de que as agências reguladoras submetem-se ao controle judicial. Na federação americana, a questão principal, cuja importância decorre do caráter pragmático que marca aquela sociedade, é a que diz respeito ao due process of law (devido processo legal), ou seja, às questões concernentes à eqüidade e à imparcialidade devida aos litigantes e da oportunidade de um recurso judicial. Saliente-se, ademais, que, nos Estados Unidos, a Suprema Corte já afastou a incompatibilidade entre a concentração das funções das commissions com o preceito da separação dos poderes, com a condição de que sejam tais funções exercidas em consonância com o devido processo legal, este, de fato, o princípio norteador do procedimento judicial americano.

            No Brasil, todavia, constituindo-se as agências reguladoras em autarquias, ainda que de "regime especial", sua função reguladora, em um primeiro exame, deveria ser limitada à expedição de atos estabelecendo regras gerais e abstratas de conduta, sempre de alcance limitado ao âmbito de atuação do órgão expedidor, exceção podendo ser feita à ANP (Agência Nacional do Petróleo) e à ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações), cuja previsão constitucional poderia ser interpretada como autorizadora da expedição de normas inovadoras do ordenamento jurídico.

            Nesse diapasão, já vaticinou, inclusive, o Supremo Tribunal Federal, quando, no julgamento da Medida Cautelar da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.° 1.668-DF, ocorrido em 8 de outubro de 1997, e noticiado no Informativo do STF nº 87 (6 a 10.10.97), deferiu o pedido cautelar para suspender a aplicabilidade da expressão "nos termos por ela regulados", constante do artigo 119 da Lei 9.472/97, que criou a ANATEL ("A permissão será precedida de procedimento licitatório simplificado, instaurado pela Agência, nos termos por ela regulados").

            No mesmo julgamento, assim se decidiu:

            "(...) o Tribunal, vencido o Min. Moreira Alves, deferiu, em parte, a cautelar quanto aos incisos IV e X do art. 19, para, sem redução de texto, dar interpretação conforme à Constituição Federal, com o objetivo de fixar exegese segundo a qual a competência da Agência para expedir normas subordina-se aos preceitos legais e regulamentares que regem a outorga, prestação e fruição dos serviços de telecomunicações no regime público e no regime privado. Também quanto ao inciso II do art. 22 ("Compete ao Conselho Diretor: II – aprovar normas próprias de licitação e contratação"), vencido o Min. Moreira Alves, deferiu-se, em parte, para dar-lhe interpretação conforme à Constituição Federal, fixando a exegese segundo a qual a competência do Conselho Diretor fica submetida às normas gerais e específicas de licitação e contratação previstas nas respectivas leis de regência".

            Por outro lado, a mesma Colenda Corte, quando do julgamento da ADIN n.° 1949-0, em que o Governo do Estado do Rio Grande do Sul questionava a constitucionalidade de dispositivos da Lei Estadual n. 10.931/97 [07], criadora da Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (AGERGS), decidiu pelo reconhecimento do perfil independente da agência, sinalizando tanto a possibilidade jurídica quanto as vantagens políticas dessa independência.

            As decisões transcritas ilustram a discrepância de opiniões que a matéria suscita, quadro este reiterado a nível doutrinário, onde a dicotomia persiste.

            Enquanto abalizados doutrinadores posicionam-se no sentido da limitação do poder normativo das agências reguladoras, restringindo-o às matérias que dizem respeito única e exclusivamente aos respectivos contratos de concessão [08], outros se manifestam pelo reconhecimento amplo desse poder, merecendo destaque a Teoria dos Ordenamentos Setoriais, minuciosamente explanada, na doutrina pátria, por Alexandre Santos de Aragão que, ao tratar da delegificação normativa justificadora da função regulatória das agências, assim dispõe:

            "Não há qualquer inconstitucionalidade na delegificação, que não consistiria propriamente em uma transferência de poderes legislativos, mas apenas na adoção, pelo próprio legislador, de uma política legislativa pela qual transfere a uma outra sede normativa a regulação de determinada matéria. (...). Com efeito, devemos observar que o Poder Legislativo, em face da complexidade, dinamismo e tecnização da sociedade, tem distinguido os aspectos políticos dos de natureza preponderantemente técnica da regulação social, retendo os primeiros, mas, consciente das suas naturais limitações, transpassando a outros órgãos ou entidades, públicas ou privadas, a normatização de cunho marcadamente técnico". [09]

            Ao amparo da doutrina amplexada, convém aduzir o caráter teleológico do princípio da independência entre os Poderes, surgido como instrumento de repressão ao abuso de autoridade, assertiva aliada, ainda, à consideração acerca da harmonia entre os poderes, corolário que permite o exercício, por qualquer dos poderes, de funções típicas dos demais.

            Outro ponto bastante discutido em sede de aferição da constitucionalidade das agências diz respeito ao princípio da legalidade, notadamente no que se refere aos atos normativos por elas expedidos.

            Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o poder regulador das agências deriva da denominada deslegalização, entendida como uma técnica de delegação pela qual o órgão competente para normatizar determinada matéria delega a outras entidades normativas, de cunho marcadamente técnico, a possibilidade de regulá-la por seus próprios atos, em manifestação de autonomia [10]. Diferencia o autor as escolhas técnicas das marcadamente político-administrativas, incidindo apenas sobre as primeiras a delegação legislativa. Tal posicionamento contrasta, no entanto, com o encontrado na doutrina clássica, que vê na noção de deslegalização uma ofensa à reserva da lei e ao princípio da indisponibilidade do poder legiferante.


Conclusão

            A nova visão da atuação do Estado no meio econômico, diminuindo sua participação direta na prestação de serviços, impõe, por outro lado, o fortalecimento de sua função reguladora e fiscalizadora, em um processo de reestruturação administrativa, que vise ao controle eficiente das empresas prestadoras de serviços de natureza eminentemente pública.

            Uma das formas primordiais de manifestação das agências, e que justifica seu delineamento, encontra-se na busca do equilíbrio entre o poder concedente, o concessionário e o usuário, de forma a se privilegiar o interesse público aí incidente. Para o desempenho de tal mister, são tais autarquias de regime especial dotadas de autonomia funcional, administrativa e financeira, e, em prol do atendimento ao sistema de freios e contrapesos, sujeitas, de outra parte, ao controle de metas e desempenho, bem como à avaliação periódica dos resultados, pelo respectivo Ministério a que se encontram vinculadas por meio do contrato de gestão.

            No decorrer da abordagem desenvolvida, procurou-se delimitar as calorosas discussões que se travam em torno das questões constitucionais relativas aos entes reguladores, especialmente no campo de seu poder normativo, ponto fulcral das maiores controvérsias. Isso porque, em face da concentração de poderes a cargo das agências, questiona-se se tal constatação não configuraria uma violação ao princípio da separação dos poderes, bem como ao preceito de legalidade, pressupostos de qualquer democracia. Esta, entretanto, não é a conclusão que nos afigura mais plausível.

            Com efeito, diante das profundas alterações sociais, políticas e econômicas da realidade mundial, não há que se cogitar da manutenção da concepção clássica do princípio da separação dos poderes. De fato, entende-se hoje que a divisão tripartite, concebida por Montesquieu, não pode mais imperar de maneira rígida, alheia às transformações históricas em todos os segmentos sociais, com aprofundados reflexos na seara jurídica.

            Pode-se inclusive aferir que a concentração de atribuições pelas agências reguladoras, favorecendo a amenização da acumulação de competências na Administração direta, aliada à regulação das atividades econômicas, antes de ferir o princípio da separação dos poderes, contribui para sua concretização, não no campo meramente formal, mas no aspecto substancial de garantia eficaz da segurança jurídica e proteção da coletividade, que se constituem pressupostos justificadores do próprio princípio em menção.

            Quanto ao aspecto de legalidade, questionamento sempre ínsito das controvérsias acerca da constitucionalidade dos entes regulatórios, reitere-se a impropriedade da apreciação restrita ao campo do processo legislativo em sentido estrito, ignorando-se as modernas teorias justificadoras do poder normativo dos entes de regulação, de modo a negar-lhe credibilidade jurídica. A esse respeito, convém lembrar, por oportuno, a Teoria dos Ordenamentos Setoriais, exposta, na doutrina pátria, pelo jurista Alexandre Santos de Aragão [11], que dispõe clara distinção entre as esferas política e técnica da tomada de decisões, caracterizando a delegificação, viabilizadora da constitucionalidade do poder normativo das agências, não como transferência de poderes legislativos, mas como simples adoção de uma política de delegação permitida, da sede normativa originária à sede delegatária, restrita à competência para legislar acerca de determinada matéria, notadamente de ordem técnica.

            Como restou demonstrado no curso da presente pesquisa, tal entendimento, na doutrina internacional, é capitaneado por expoentes como J. J. Gomes Canotilho, acerca do que denomina regulática, fruto de um ‘complexo processo juris-sociológico de produção do direito’, nos seguintes termos: "uma compreensão moderna (rectius: pós-moderna) das fontes de direito deve também responder às mudanças das estruturas sociais num sentido individualizante, e, por isso, causadoras de modelos de regulação flexíveis. (...). Independentemente dos postulados teóricos e políticos da regulática, é inegável que não existe um monopólio estatal de normação constitucionalmente consagrado. Pelo contrário: vários preceitos constitucionais apontam para a necessidade de desconcentração e descentralização da regulação jurídica" [12].

            Muitas, entretanto, são as dificuldades encontradas por tais agências no plano concreto da materialização das prerrogativas institucionais de que foram incumbidas, em clara demonstração de que, apesar dos avanços, os mecanismos de controle, proteção e garantia de satisfação do usuário de serviços públicos delegados ainda necessitam de largo aprimoramento.


Referências

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Notas

            01 A previsão constitucional de criação do primeiro órgão regulador para os serviços de telecomunicações deu-se em 1995, através da Emenda Constitucional n.° 8, que reformulou o art. 21, XI da CF/88. A primeira agência reguladora brasileira, a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL foi instituída em 1996, pela Lei nº 9.427.

            02 Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Agências Reguladoras (descentralização e deslegalização). In. Mutações do Direito Administrativo, pp. 161/162.

            03 Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro, p. 336.

            04 Ibidem.

            05 Maria Sylvia Zanella di Pietro.Direito Administrativo, p. 140/141.

            06 J. J. Gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pp. 682/683.

            07 Na sua redação originária e na redação que lhe conferiu o art. 1° da Lei Estadual n.° 11.292/98.

            08 Notadamente os ensinamentos de Maria Sylvia Zanella di Pietro (In. Direito Administrativo, p. 392) e Pedro Dutra (In. O poder Regulamentar dos órgãos Reguladores. RDA, V. 221, p. 250).

            09 Alexandre Santos de Aragão. As Agências Reguladoras Independentes e a Separação de Poderes – uma Contribuição da Teoria dos Ordenamentos Setoriais, pp. 51/53.

            10 Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Natureza Jurídica. Competência Normativa. Limites de Atuação. In. Revista de Direito Administrativo, Vol. 215, jan./mar, 1999, p. 77/79.

            11 Alexandre Santos de Aragão. As Agências Reguladoras Independentes e a Separação de Poderes – uma Contribuição da Teoria dos Ordenamentos Setoriais, pp. 51/53.

            12 J. J. Gomes Canotilho. Op. Cit., pp. 682/683.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTEIRO, Adriana Carneiro. Agências reguladoras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1033, 30 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8328. Acesso em: 27 abr. 2024.