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Dano moral por atraso ou cancelamento de voo

Dano moral por atraso ou cancelamento de voo

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Não basta apresentar belas e longas citações sobre o instituto do dano moral, mas sim tecer a efetiva ilação entre tal instituto e o caso concreto de um atraso de voo.

RESUMO: Na pós modernidade, em que a globalização se erigiu como fenômeno caracterizado por interligada integração internacional, o transporte aéreo de passageiros merece uma análise mais apurada por parte dos juristas em geral, eis ter se tornado praxe no mundo jurídico considerar que um atraso ou cancelamento de voo, por si só, é capaz de repercutir na esfera íntima da pessoa e gerar um dano moral indenizável. Milhares de processos são interpostos a fim de discutir essa questão, sustentando, muitas vezes indevidamente, o afã de consumidores que buscam uma compensação pecuniária por um atraso ou cancelamento de voo. O dano moral constitui importante instituto que merece uma melhor análise e ponderação, principalmente em casos de cancelamento ou atraso de voo.

PALAVRAS CHAVE: Transporte aéreo. Dano moral. Indenização.


1. INTRODUÇÃO

Antigamente, o transporte aéreo de passageiros era restrito a determinadas classes sociais, sendo sinônimo não só de um transporte rápido, efetivo e caro, mas também de glamour e status. Hoje a situação é diferente. Na pós-modernidade, em que a globalização se erigiu como fenômeno caracterizado por interligada integração econômica internacional, o transporte aéreo popularizou-se e passou a possibilitar que qualquer pessoa possa adquirir passagens, por preços mais acessíveis, para qualquer lugar do mundo.

E dentro desse novo paradigma, se observa no Judiciário uma crescente interposição de processos voltados exclusivamente para a obtenção de verba pecuniária a título de danos morais em decorrência de atrasos de voos, normalmente sob o fundamento de que os eventuais atrasos na decolagem e aterrissagem da aeronave ocasionaram efetivos abalos à honra, moral e psique do homem médio.

Porém, dentro da atual racionalidade Democrática, com contornos específicos delimitados pela Constituição da República de 1988, o instituto do dano moral deve ser entendido e analisado com cautela, evitando-se que tais ações tornem-se verdadeira indústria de ganho pecuniário, na medida em que qualquer atraso de voo dê ensejo ao ajuizamento de uma ação, mesmo que de forma temerária, sem qualquer fundamento legítimo.

Desta forma, imprescindível uma análise mais apurada sobre o instituto do dano moral e sobre o que seria, ou não, um atraso de voo indenizável, pois não basta apresentar belas e longas citações sobre o instituto do dano moral, mas sim tecer a efetiva ilação entre tal instituto e o caso concreto de um atraso de voo, o que muitas vezes não acontece em diversos posicionamentos jurisprudenciais.


2. ENFOQUE NECESSÁRIO SOBRE A AVIAÇÃO CIVIL ATUAL

Cediço que poucos setores econômicos lidam com atividades tão complexas como as que permeiam a aviação civil. A atividade aérea, por sua complexidade de rotas, autorizações de voos, liberações de pista de aterrissagem, condições climáticas, é suscetível a retardos em seus horários.

Trata-se de um setor marcado por uma intensa regulação técnica e econômica, com imensa fiscalização de diversos órgãos governamentais e imposições internacionais de diversos seguimentos, o que impõe uma maior e séria necessidade de altos investimentos, mão de obra qualificada, tecnologia de vanguarda e um sistema administrativo que consiga coordenar toda a atividade, de forma a cumprir todo o tipo de regulalção, bem como propiciar ao cliente uma maior comodidade e efetividade nos serviços.

E com enfoque nessa complexa atividade, não só as empresas aéreas, mas também o governo brasileiro, estão buscando medidas de estímulo ao crescimento do setor, incentivando a capacitação de profissionais da área, a ampliação da infra-estrutura dos aeroportos, a discussão de normas que possibilitem uma atuação transparente e adequada com a legislação vigente etc. Há, então, clara busca por um aprimoramento generalizado do setor, seja por atuação das próprias empresas, seja pela adoção de medidas públicas específicas, o que é vital para o país e para a comodidade do cliente consumidor.

Exatamente nesse sentido, como dispõe o Decreto nº. 6.780 de Fevereiro de 2009, há que superar os óbices que impedem o crescimento da aviação civil de maneira ordenada e em sintonia com os objetivos nacionais de integração e ampliação do acesso ao serviço, de forma a promover a prosperidade equitativamente.

O próprio ex-diretor das Relações Internacionais e de Estudos, Pesquisas e Capacitação da ANAC, Sr. Josef Barat, ao manifestar seu desligamento do cargo em 2007 ao Min. da Defesa Nelson Jobim, afirmou a peculiariedade e complexidade que é o ramo da aviação civil, uma vez que a operação do transporte de passageiros envolve o cumprimento de frequências, horários, requisitos de segurança e qualidade, monitoração de resultados e garantias de funcionamento regular.

Sendo assim, por se tratar de uma atividade regulada apenas parcialmente pelo mercado, o Sr. Josef Barat [01] continua, in verbis:

"Sendo uma atividade regulada parcialmente pelo mercado, a estruturação e a ação do ente regulador se tornam mais complexas. Assim, embora os segmentos da aviação civil sejam regulamentados e sujeitos a regras definidas, em benefício dos usuários é necessária a regulação econômica. Esta, não deve inibir as forças de mercado, mas deve ser capaz, também, de impedir a competição predatória em prejuízo da qualidade e da segurança.
Neste momento crítico urge consolidar conceitos, diretrizes e linhas de ação, para que se busque a eficácia e o equilíbrio na atividade reguladora, considerando as possíveis mudanças na estruturação institucional do setor. Cabe ao Conselho Nacional de Aviação Civil – CONAC e ao Ministério da Defesa, resgatar o processo de formulação das diretrizes estratégicas, políticas públicas, estudos e planejamento de longo prazo. É importante, ainda, definir as prioridades e a natureza da regulação, nos seus aspectos técnicos e econômicos"

Assim, é óbvio que referido setor e os eventuais problemas que possam ocorrer, devem ser observados sobre o prisma acima proposto, eis que não se trata de um mero negócio regulado exclusivamente pela demanda do mercado, mas sim de um serviço de natureza híbrida, com complexidades que extrapolam qualquer outro tipo de setor.

Nesse exato sentido, o Ministro Aldir Passarinho da 4ª Turma do STJ, já se posicionou várias vezes destacando que o transporte de passageiros envolve regras rígidas de segurança da aeronave, condições climáticas, infraestrutura dos aeroportos, ou seja, uma série de condições que extrapolam o próprio âmbito da atividade-fim prestada pela companhia aérea, impondo-se algum tempero no que concerne ao atraso de voo.

Segundo este Ministro, "exigir-se pontualidade na aviação é desconhecer, por completo, essas circunstâncias, muito próprias do transporte aéreo, que detém, de outro lado, desempenho bastante satisfatório no que tange à segurança e ao tratamento dispensado aos passageiros, no geral".

Cita-se, a título de exemplo, o julgamento do Resp nº. 431.303/SP, da lavra do referido Ministro Aldir Passarinho, o qual consignou que o atraso no transporte aéreo não pode ser confundido com dano moral, porquanto permitiria a banalização de importante instituto, conforme assim ementado, in verbis:

"CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. RITO SUMÁRIO. VALOR DA CAUSA ENQUADRADO NA HIPÓTESE LEGAL. CERCEAMENTO DE DEFESA INEXISTENTE. ATRASO DE VÔO NÃO SIGNIFICATIVO. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. LEI N. 8.078/90 E CÓDIGO CIVIL.

I. Não se configura nulidade no processamento pela via sumária se o valor dado à causa guarda conformidade com a espécie legal, o que igualmente afasta a alegação de cerceamento de defesa, ainda mais porquanto a matéria debatida é essencialmente de direito.

II. Após o advento do Código de Defesa do Consumidor, as hipóteses de indenização por atraso de vôo não se restringem às situações elencadas na Convenção de Varsóvia.

III. Demora, todavia, inferior a oito horas, portanto não significativa e que ocorreu em aeroporto dotado de boa infra-estrutura, a afastar a caracterização de dano moral, porque, em verdade, não pode ser ele banalizado, o que se dá quando confundido com mero percalço, dissabor ou contratempo a que estão sujeitas as pessoas em sua vida comum.

IV. Recurso especial conhecido e provido. Ação improcedente."

O que se pretende afirmar é não ser possível ou legítimo encarar a avição civil como um mero negócio competitivo, sendo que qualquer tipo de percalço ocasionado ao cliente constitua, imediatamente e sem a devida ponderação, um ilícito passível de reparação.

É necessário, acima de tudo, bom senso do julgador para entender a complexidade que envolve o setor, de forma que tal ponderação possa influir no trabalho hermenêutico que será realizado no caso concreto para se chegar a uma decisão legítima, analisando não somente o Código de Defesa do Consumidor, mas também os diplomas legislativos que regulamentam o transporte aéreo de passageiros.


3. DA LEGISLAÇÃO PÁTRIA ESPECÍFICA AO TRANSPORTE AÉREO DE PASSAGEIROS

É muito comum se observar em todos os posicionamentos jurisprudenciais que analisam litígios oriundos de uma prestação de serviço de transporte aéreo de passageiros, que somente o Código de Defesa do Consumidor é invocado para fundamentar a decisão. Mas o que ocorreu com as demais normas legislativas existentes em nosso ordenamento?

Com certeza o CDC revolucionou o direito contratual brasileiro, antes centrado inflexivelmente nos princípios clássicos, vez que estendeu sua especial tutela não só a um tipo exclusivo de contrato, mas a todos que digam respeito a uma relação de consumo. E com certeza esse diploma deve ser observado em todo e qualquer julgamento que envolva o transporte aéreo de passageiros.

Porém, o julgado não pode limitar seu campo de visão e aplicar indiscriminadamente o CDC quando existem outras normas que regulam o setor e impõe uma apurada análise de seu conteúdo.

A legislação pátria específica ao transporte aéreo está consubstanciada na da Resolução nº 141 de 09 de março de 2010 da ANAC (a qual substituiu a Portaria 676/GC5 de 13 de novembro de 2000), assim como no Código Brasileiro de Aeronáutica – Lei nº 7.565 de 19 de dezembro de 1986.

Tais diplomas legais são normas válidas, vigentes e perfeitamente aplicáveis aos problemas decorrentes da aviação civil, o que não pode ser desconsiderado na análise do caso concreto.

Com relação a eventuais atrasos ou cancelamentos de voos, referidos diplomas possuem regramento específico, podendo-se citar, a título de exemplo, os artigos 3º e 4º da Resolução nº 141 de 09 de março de 2010 da ANAC, os quais estabelecem diversas alternativas para casos de atraso no aeroporto de partida do voo ou conexão por mais de 4 (quatro) horas.

Este comando segue a linha já traçada pela Lei nº 7.565/86 (Código Brasileiro de Aeronáutica), que também possui estipulação expressa sobre eventuais atrasos ou cancelamentos de vôos, podendo-se citar como exemplos:

"Art. 230. Em caso de atraso da partida por mais de 4 (quatro) horas, o transportador providenciará o embarque do passageiro, em vôo que ofereça serviço equivalente para o mesmo destino, se houver, ou restituirá, de imediato, se o passageiro o preferir, o valor do bilhete de passagem."

Art. 231. - Quando o transporte sofrer interrupção ou atraso em aeroporto de escala por período superior a quatro horas, qualquer que seja o motivo, o passageiro poderá optar pelo endosso do bilhete de passagem ou pela imediata devolução do preço"

A Resolução nº 141 da ANAC surgiu após trabalhos internos no próprio órgão e sobre a discussão acerca da inadequação da antiga Portaria 676/GC5 de 13 de novembro de 2000, a qual foi objeto de análise por Ação Civil Pública que tramitou perante a 6ª Vara Federal de São Paulo.

Ela representa, então, diploma válido e vigente que estabelece regras mais atuais e rígidas para o setor, reduzindo o prazo em que a empresa deve prestar assistência ao passageiro, ampliando o direito à informação e a necessidade de obrigação de reacomodação imediata nos casos de voos cancelados, interrompidos e para os passageiros preteridos de embarcar em voos com reserva confirmada.

Segundo o Diretor de Regulação Econômica da ANAC, Marcelo Guaranys em entrevista Assessoria de Imprensa da própria ANAC [02]:

"Por sua característica, o transporte aéreo sempre estará sujeito a circunstâncias como atrasos e cancelamentos. O objetivo do novo regulamento é harmonizar a relação entre a empresa e o passageiro, minimizando o impacto prejudicial ao consumidor gerado por problemas causados pelas empresas aéreas. Num momento em que observamos um aumento expressivo da demanda por transporte aéreo no Brasil – 17% de crescimento de 2008 para 2009 – buscamos ampliar os direitos dos passageiros, sem gerar custos excessivos, para que isso não seja repassado ao consumidor"

A Resolução, então, representa norma pátria capaz de regular várias situações decorrentes de casos de voos atrasados ou cancelados, além das situações de preterição (impedimento do embarque por necessidade de troca de aeronave ou overbooking)., mas até então, principalmente no âmbito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, é raro ver fundamentações jurídicas alicerçadas em seus dispositivos, seja em sentenças judiciais, seja em petições iniciais. Apenas o CDC é invocado.

O que se pretende chamar a atenção é que existem outros dispositivos legais além do CDC, que também apresentam regulações sobre o transporte aéreo de passageiros, embora na grande parte das decisões judiciais exaradas, nenhuma menção é feita a tais diplomas, o que importa em limitar o campo hermenêutico e negar vigência à norma infraconstitucional plenamente válida e eficaz, capazes de elucidar o que seria, ou não, um atraso ou cancelamento de voo condenável.


4. DANO MORAL DECORRENTE DE UM ATRASO OU CANCELAMENTO DE VOO

Consoante a melhor doutrina sobre a matéria, somente deve ser reputado como dano moral a reação psíquica do ser humano em face de uma lesão que importe em intensa dor, vergonha, injúria moral em uma gravidade tamanha que ultrapasse as barreiras do mero aborrecimento e aflijam o âmago da pessoa.

É sempre oportuna a lição do professor Sérgio Cavalieri Filho (2007, p. 78) ao analisar a cautela a ser observada na configuração do dano moral, in verbis:

"(...) Na tormentosa questão de saber o que configura o dano moral cumpre ao juiz seguir a trilha da lógica do razoável, em busca da sensibilidade ético-social normal. Deve tomar por paradigma o cidadão que se coloca a igual distância do homem frio, insensível e o homem de extremada sensibilidade. Nessa linha de princípio só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia-a-dia, no trabalho, no trânsito, entre amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo. Se assim não se entender, acabaremos por banalizar o dano moral, ensejando ações judiciais em busca de indenizações pelos mais triviais aborrecimentos."

Maria Celina Bodin de Moraes (2003, p. 188/189) ao analisar o dano moral, interpretando tal instituto conforme o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, afirma com precisão que não será qualquer situação desconfortável pela qual passe o indivíduo que se revelará capaz de ensejar o dano moral, mas tão somente aquela que venha a resultar em grave violação da dignidade humana da vítima, verbis:

"(...) De fato, não será toda e qualquer situação de sofrimento, tristeza, transtorno e aborrecimento que ensejará a reparação, mas apenas aquelas situações graves o suficiente para afetar a dignidade humana em seus diversos substratos materiais, já identificados, quais sejam, a igualdade, a integridade psicofísica, a liberdade e a solidariedade familiar ou social, no plano extrapatrimonial em sentido estrito".

Trilhando este raciocínio, Antônio Jeová dos Santos (1997, p. 243) ao citar os autores Gabriel Stiglitz e Carlos Echevesti, adverte que nem todo e qualquer aborrecimento pode vir a ser compreendido como caracterização do dano moral:

"Diferentemente do que ocorre com o dano material, a alteração desvaliosa do bem-estar psicofísico do indivíduo deve apresentar certa magnitude para ser reconhecida como prejuízo moral. Um mal-estar trivial, de escassa importância, próprio do risco cotidiano da convivência ou da atividade que o indivíduo desenvolva, nunca o configurará. Isto quer dizer que existe um ‘piso’ de incômodos, inconvenientes ou desgostos a partir dos quais este prejuízo se configura juridicamente e procede sua reclamação".

O professor Rui Stoco (2001, p.1381/1382) adverte no mesmo sentido, pois a correta configuração do mesmo deve ser feita de forma criteriosa, não bastando a simples alegação da vítima de que fora atingida moralmente, pois senão, mediante uma interpretação mecânica e simplista da afirmação, haveria concretização de risco de deturpação do instituto, acrescentando um pernicioso componente de insegurança nas relações jurídicas.

Assim, consoante a opinião da melhor doutrina, somente deve ser reputado como dano moral, a reação psíquica do ser humano em face de uma lesão que importe em intensa dor, vergonha, injúria moral em uma gravidade tamanha, que implique necessariamente na negação da dignidade da pessoa humana. E exatamente isso deve ser perquirido no caso concreto.

Não pode o magistrado simplesmente considerar a existência do dano moral sem analisar o caso em concreto ou as provas constantes nos autos. O dano moral não existe por si só ou pela simples ocorrência do atraso ou cancelamento, sendo preciso a prova cabal e exauriente que em decorrência destas eventuais situações, o mero aborrecimento foi ultrapassado. E isso é ônus exclusivo do passageiro..

Nas palavras de José de Aguiar Dias (1979, p.495) "tem direito de pedir reparação toda a pessoa que demonstre prejuízo e a sua injustiça", o que impõe a necessidade de comprovação do dano moral, não podendo partir-se da premissa de que o mesmo é in re ipsa, desincumbindo a parte de comprovar qualquer repercussão negativa em seu contexto pessoal.

Destarte, a compensação do dano moral se faz necessária na medida em que existir ferimento ao psíquico ou, em último caso, sentimental, desde que devidamente comprovados. É evidente que o dano moral enseja direito a ressarcimento, contudo, não se pode levar essa regra a extremos, como por exemplo, pressupor que um atraso ou cancelamento ocasione automaticamente um dano por si só, sob pena de trazer descrédito à tese.

Nestes casos de atraso ou cancelamento, não há dúvidas de que o fato constitui inadimplemento contratual, na medida em que a obrigação da companhia aérea, resultando do contrato de transporte firmado, é o transporte tempestivo do passageiro a seu destino no horário contratado. Mas, isso não quer dizer que o inadimplemento configura, automaticamente, um dano moral indenizável.

O inadimplemento, mesmo que parcial do contrato de transporte aéreo é fonte sim de obrigações, mas eventual configuração do dano moral deve decorrer da análise das nuances da situação concreta, do tratamento dado ao consumidor, das justificativas apresentadas pela companhia aérea etc. É necessário, pois, a efetiva comprovação pelo passageiro que os supostos reflexos negativos realmente ocorreram e que o atraso ou cancelamento lhe causou grave abalo à sua integridade psicológica.

Alguns Tribunais pátria, acertadamente, já se posicionaram a respeito, podendo-se citar:

"O inadimplemento do contrato, por si só, pode acarretar danos materiais e indenização por perdas e danos, mas, em regra, não dá margem ao dano moral, que pressupõe ofensa anormal à personalidade. Embora a inobservância das cláusulas contratuais por uma das partes possa trazer desconforto ao outro contratante - e normalmente o traz - trata-se, em princípio, do desconforto a que todos podem estar sujeitos, pela própria vida em sociedade. Com efeito, a dificuldade financeira, ou a quebra da expectativa de receber valores contratados, não tomam a dimensão de constranger a honra ou a intimidade, ressalvadas situações excepcionais" (REsp n.º 202564, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira).

"O inadimplemento contratual implica a obrigação de indenizar os danos patrimoniais; não danos morais, cujo reconhecimento implica mais do que os dissabores de um negócio frustrado' (REsp n. 201.414, Min. Ari Pargendler).

Tal questão, inclusive, foi sumulada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, consoante enunciado nº. 75 abaixo: "o simples descumprimento de dever legal ou contratual, por caracterizar mero aborrecimento, em princípio, não configura dano moral, salvo se da infração advém circunstância que atenta contra a dignidade da pessoa"

Corroborando a tese exposta, Décio Antônio Erpen (2000, p. 16), Professor da PUC do Rio Grande do Sul e desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao discorrer sobre a ocorrência do dano moral no contrato de transporte aéreo, leciona:

"Sei que não se pode comprometer a vida do cidadão que programa sua vida, suas viagens, e se vê colhido diante de tais infortúnios. Todos nós já fomos vítimas de tal circunstância e devemos tentar impedir que o direito consagre a irresponsabilidade. As companhias devem se ajustar e sabe-se que há portarias ministeriais tentando disciplinar essa área , o que se faz a contento. O que não consigo é divisar o chamado 'dano moral' porque não vejo ofensa à intimidade, à honra ou à imagem da pessoa. Flagro, sim, aborrecimentos. Grandes, muitas vezes.. (...) Sei que a presente tese se apresenta antipática porque contraria interesses da maioria, em benefício de poucos. Todavia, devo fugir do sentimentalismo, tendo orientado meus votos no sentido de que o dano moral não foi instituído para ressarcir aborrecimentos ou contratempos. Para tanto, não há remédio. A medicina não assegura a imortalidade. As vicissitudes da vida são integrantes dela. Num julgado, expressei que num acidente de automóvel com danos materiais, deferimos indenização somente a esse título. Todavia, se confrontada a situação de um overbooking com um abalroamento de veículos, veremos que este último acarreta maiores transtornos que aquele".

Desta forma, percebe-se que o atraso ou cancelamento de um voo, por si só, não configura automaticamente qualquer tipo de dano moral, sendo imprescindível que as circunstâncias do caso concreto apontem para a efetiva e concreta violação da dignidade da pessoa, tal como compreendido o preceito exposto no art. 1º inciso III da CR/88.

E obviamente isso deve ser ponderado caso a caso pelo julgador, pois não basta mostrar que o voo atrasou ou foi cancelado, mas sim que em decorrência destes eventuais fatos, houve um efetivo prejuízo extrapatrimonial que ultrapassou o inadimplemento contratual e os meros dissabores que tais situações acarretam.


5. DA EVENTUAL CONCESSÃO DO DANO MORAL

Muito comum se observar que em casos de procedência da ação e condenação da empresas aéreas por danos morais, a maioria dos julgados concede alta verba indenizatória, passando ao largo dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

Tais condenações muitas vezes ultrapassam os limites do próprio bom senso e possibilitam que o consumidor realize a mesma viagem várias vezes. E mantendo essa postura sem nenhum tipo de reflexão, obviamente a ‘indústria’ do dano moral só tende a crescer, pois as pessoas vêem em situações corriqueiras do dia-a-dia a possibilidade de auferir alta soma em dinheiro.

Para fins de condenação, o valor de uma eventual indenização deve ater-se a critérios razoáveis, pois se presta à reparação do prejuízo sofrido, não servindo de fonte de enriquecimento da outra parte. O grande problema é estabelecer o que seria esse critério razoável, pois não basta justificar a concessão com fincas em uma "ponderação das circunstâncias", mas efetivamente transformar essa ponderação em verba pecuniária dentro de parâmetros razoáveis.

Sempre oportuna a opinião do professor Sérgio Cavalieri Filho (2007, p. 81), o qual entende:

"Creio que na fixação do quantum debeatur da indenização, mormente tratando-se de lucro cessante e dano moral, deve o juiz ter em mente o princípio de que o dano não pode ser fonte de lucro. A indenização, não há dúvida, deve ser suficiente para reparar o dano, o mais completamente possível, e nada mais. Qualquer quantia a maior importará enriquecimento sem causa, ensejador de novo dano."

Nesse passo, o próprio artigo 944, parágrafo único, do Código Civil vigente recomenda prudência na fixação de eventual indenização, a qual deve ser moderada e eqüitativa às circunstâncias de cada caso, evitando que se converta a dor em instrumento de captação de vantagem, trazendo, ainda que de forma implícita, o princípio da razoabilidade na apuração.

Da mesma forma que na análise da existência, ou não, de situação grave o suficiente para gerar um dano moral indenizável, no momento de se arbitrar seu quantum, não basta apresentar belas e longas citações sobre o instituto do dano moral, o Estado Democrático de Direito, a função do Judiciário ou a importância de se respeitar os direitos dos consumidores. Ao revés, o magistrado deve justificar o motivo pelo qual entende ser aquela quantia suficiente e justa para ressarcir o consumidor pelo dano sofrido. E esse tipo de fundamentação legítima é muito raro nos julgados atuais.


6. CONCLUSÃO

Não existem mais dúvidas que o serviço de transporte aéreo de passageiros atualmente ultrapassou as antigas fronteiras que permeavam a atividade, de forma a permitir que qualquer pessoa possa adquirir, por preços razoáveis, passagem para praticamente qualquer lugar do mundo.

E obviamente com essa "popularização" aérea, o número de problemas e percalços aumentaram, gerando reflexos no número de pessoas que buscam o Judiciário para discutir fatos decorrentes do contrato de transporte aéreo firmado com as empresas do ramo, normalmente buscando reparações de cunho extra patrimonial, ou seja, o famoso dano moral.

Como dito, observa-se, pois, uma crescente interposição de processos voltados exclusivamente para a obtenção de verba pecuniária a título de danos morais em decorrência de atrasos de voos, normalmente sob o fundamento de que os eventuais atrasos na decolagem e aterrissagem da aeronave ocasionaram efetivos abalos à honra, moral e psique do homem médio.

Porém, infelizmente percebe-se que na maior parte dos julgados, os julgadores já orientaram-se a vincular o atraso de decolagem ou aterrisagem de um voo a um dano extra patrimonial passível de indenização. Sem analisar o caso em concreto ou as provas constantes nos autos, já se criou a máxima de que: atraso de voo é igual a indenização. O que varia é apenas o quantum arbitrado.

Ora, o dano moral não existe por si só ou pela simples ocorrência do atraso ou cancelamento. Cada caso concreto apresenta situações completamente distintas envolvendo pessoas diferentes, o que não pode ser simplesmente desconsiderado e proferida um decisão sem a mínima análise fática ou das provas dos autos. É preciso, acima de tudo, prova cabal e exauriente que em decorrência de eventuais atrasos na decolagem ou aterrisagem do voo, o mero aborrecimento foi ultrapassado e o inadimplemento contratual proporcionou efetivamente um aborrecimento sério e legítimo.

É também óbvio que o dano moral enseja direito a ressarcimento, contudo, não se pode levar essa regra a extremos, sob pena de trazer descrédito à tese, o que infelizmente vem ocorrendo.

O setor aéreo lida com situações extremamente complexas que não dependem tão somente da atuação da empresa, sendo que em decorrência de tal complexidade (autorizações de voos, liberações de pista de aterrissagem, condições climáticas etc), alguns retardos ou cancelamentos em horários previamente estabelecidos podem ocorrer. Mas, não se pode afirmar que a simples ocorrência de atraso ou cancelamento causa um dano moral passível de indenização. Não será qualquer situação desconfortável pela qual passe o indivíduo que se revelará capaz de ensejar o dano moral, mas tão somente aquela que venha a resultar em grave abalo psíquico, o que deve ser expressamente provado pelo passageiro, não bastando sua simples argumentação.

No mesmo sentido, caso entenda-se pela ocorrência do dano moral em decorrência de atraso ou cancelamento de voo, o julgador deve justificar o motivo pelo qual entende ser aquela quantia suficiente e justa para ressarcir o consumidor pelo dano sofrido. E, como dito, esse tipo de fundamentação é muito raro nos julgados atuais.

Desta forma, é imperativo ocorrer amplo debate e reflexão sobre esse assunto, pois a máxima de que um atraso ou cancelamento ocasiona automaticamente um dano moral merece ser urgentemente revista, devendo o julgador ponderar as nuances do caso, o tratamento ao consumidor e outra série de fatores que interferem (ou ao menos deveriam interferir) na análise da efetiva ocorrência de danos morais indenizáveis por cancelamento ou atraso de voo.


NOTAS

1. Disponível em http://www.anac.gov.br/imprensa/mensagembarat.asp

2. Disponível em http://www2.anac.gov.br/imprensa/AnacAmplia.asp


REFERÊNCIAS

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Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KISTEUMACHER, Daniel Henrique Rennó. Dano moral por atraso ou cancelamento de voo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2950, 30 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19649. Acesso em: 7 maio 2024.