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A dignidade do adolescente autor de ato infracional.

O Poder Judiciário como instrumento de efetivação

A dignidade do adolescente autor de ato infracional. O Poder Judiciário como instrumento de efetivação

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"Educa a criança no caminho em que deve andar; e até quando envelhecer não se desviará dele."

(Provérbios 22 : 6).

RESUMO

O presente artigo tem como objeto o estudo da dignidade do adolescente autor de ato infracional e o Poder Judiciário como instrumento de efetivação. A opção pela análise e correlação dos temas Poder Judiciário, princípio da dignidade da pessoa humana e adolescente autor de ato infracional deve-se, primeiramente, ao fato de estarem intimamente ligados frente a uma efetiva concretização do Estado Democrático de Direito disposto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. E, em segundo lugar, por tais temas serem comumente representados mais pelas omissões, ou pelo senso comum, do que por debates e estudos que realmente contribuam, daí a preocupação de romper com uma herança jurídica tradicional. Para se chegar às conclusões, partiu-se da análise do histórico e considerações conceituais da dignidade da pessoa humana, bem como o estudo de sua trajetória nas Cartas Constitucionais brasileiras até a Constituição vigente. Em seguida, examinou-se o escorço histórico e os conceitos das medidas sócio-educativas e do ato infracional no Direito brasileiro para então, ao término do trabalho, se verificar o papel do Poder Judiciário como instrumento de efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana em relação ao adolescente autor de ato infracional, dando-se ênfase à realidade do Estado de Santa Catarina.

Palavras-chaves: Poder Judiciário. Dignidade da pessoa humana. Adolescente autor de ato infracional.


1. INTRODUÇÃO

Os temas "Princípio da Dignidade da Pessoa Humana", "Medidas Sócio-educativas" e "Poder Judiciário", dadas as suas complexidades e múltiplas abordagens, tornaria possível a produção de inúmeros artigos. Entretanto, com o foco determinado, e a fim de dar a este estudo, em específico, objetividade, muitas argumentações e problemáticas não receberam o tratamento devido, embora consideradas no curso do trabalho. Isto porque um artigo científico se de um lado implica em buscas constantes, por outro também implica em renúncias.

Este estudo baseia-se sobre a formulação do problema: até que ponto o Poder Judiciário, nos seus procedimentos e decisões, efetiva o princípio da dignidade da pessoa humana em relação ao adolescente autor de ato infracional?

É importante mencionar que o problema, examinado ao longo da dissertação, partiu da percepção de uma série de promessas constitucionais não cumpridas em prol da criança e do adolescente, dentre as quais destaca-se o direito à dignidade.

Tendo em vista que através da aplicação de medidas sócio-educativas, o Estado responsabiliza o adolescente autor de ato infracional, e que este se encontra na peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, gozando da garantia constitucional de prioridade absoluta, cumpre consignar que nesta interface é primordial destacar-se o princípio da dignidade da pessoa humana.

Assim, uma vez que a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, consagra tal princípio como um de seus cinco fundamentos, o presente artigo buscará elementos que comprovem a efetivação da dignidade ao adolescente autor de ato infracional. Daí a importância do papel desempenhado pelo Poder Judiciário na condição de garantidor.

Em um cenário de inconformismo com tal situação, até porque o tema em questão tem sido representado mais pelas omissões ou pelo senso comum, do que por debates e estudos que realmente contribuam, é que este trabalho aborda-o com a preocupação de romper com uma herança jurídica tradicional.

Faz-se necessário repensar a dignidade da pessoa humana em relação aos adolescentes quando da prática de um ato infracional questionando seus referenciais clássicos e apontando novos direcionamentos, em especial como fazer valer o ordenamento jurídico.

Com esta pesquisa espera-se estar contribuindo para as discussões sobre as possibilidades e limites da atuação do Poder Judiciário na efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana ao adolescente autor de ato infracional. Ressalta-se, ainda que, não tem esta dissertação a pretensão de se apresentar como verdade taxativa dado o relativismo que toda argumentação jurídica implica.


1. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 FRENTE AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A adoção do princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, demonstra a tendência que se tem observado de abrigar o ser humano como o centro e o fim do Direito.

Na relação do Estado com o homem, os direitos do ser humano surgem e se efetivam quando se desloca do Estado para aquele a primazia na relação que os põe em contato. Neste sentido tem-se que

[...] a afirmação dos direitos do homem deriva de uma radical inversão de perspectiva, característica da formação do Estado moderno, na representação da relação política, ou seja, na relação Estado/cidadão ou soberano/súditos: relação que é encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos dos cidadãos não mais súditos, e não do ponto de vista dos direitos do soberano, em correspondência com a visão individualistas da sociedade [...] no início da idade moderna. (BOBBIO, 1992, p. 04)

Incorporado ao sistema constitucional sob a forma de princípio, a dignidade da pessoa humana aponta para uma inversão de prioridades até então existentes no Estado brasileiro. A partir de 1988 a Constituição brasileira concebeu o ser humano como prioridade para o Estado em todas as suas dimensões. Entretanto, não o ser humano em seu sentido abstrato, idealizado dentro de uma coletividade como categoria jurídica, mas o ser humano da vida real, como ser único.

A expressão "princípios fundamentais" exprime a idéia de mandamento central do sistema jurídico, de onde irradia o sistema das normas. Sendo assim, é a dignidade da pessoa humana o princípio fundamental que direciona a interpretação de todos os direitos e garantias positivados na Carta Magna.

A dificuldade em se conceituar a dignidade da pessoa humana deve-se à sua imprecisão e ambigüidade, ou seja, trata-se de uma categoria aberta com pluralidade de sentidos. Isto porque a dignidade da pessoa humana, diferentemente das demais normas jusfundamentais não se relaciona com um aspecto específico tais como intimidade, vida, propriedade, mas é uma qualidade inerente a todo e qualquer ser humano.

Trata-se de um conceito em constante construção. Além de que o conteúdo do conceito jurídico-constitucional de dignidade da pessoa humana impõe uma perene concretização pela práxis.

Assim, dado o caráter multidimensional da dignidade da pessoa humana, adotou-se o seguinte conceito

[...] dignidade da pessoa humana é uma qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, 2006, p. 60).

Do exposto até agora e com base nos direitos fundamentais de terceira geração [01], mais especificamente referindo-se aos direitos da criança e do adolescente, observa-se que não basta declará-los na carta constitucional, a questão está em concretizá-los.

Uma vez que a Constituição da República Federativa do Brasil reconhece que a criança e o adolescente são pessoas em desenvolvimento e que adota a doutrina da proteção integral, é o princípio da dignidade da pessoa humana um dos pilares de sustentação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente. Este assegurará a proteção integral e especial consubstanciada nos direitos fundamentais.

Daí a Constituição estabelecer em seus artigos 6° e 227, caput, que

São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

[...]

Artigo 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Deste modo, os responsáveis diretos pela efetivação desses direitos fundamentais são a família, a sociedade e o Poder Público, destacando-se neste último grupo, o Poder Judiciário. Isto porque o acesso à justiça na interposição dos interesses difusos pertencentes à criança e ao adolescente se constitui também, em mais um fator a corroborar na transformação do Poder Judiciário, o qual passa a ser instrumento de expansão da cidadania. (VERONESE, 1998).

Imprescindível, portanto, um Poder Judiciário, vez que responsável pela efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, segundo a Carta Constitucional de 1988, que responda aos anseios da sociedade, seja se estruturando como Poder, criando varas e equipes especializadas para a Infância e Juventude, seja assegurando as garantias aos adolescentes em relação aos procedimentos e decisões que importem em aplicação de medidas sócio-educativas.

Sabe-se que a aquisição e a sedimentação dos direitos fundamentais do ser humano ocorreu, e ainda ocorre, de forma lenta. Como resultado de uma seqüência de reivindicações e lutas históricas, tais direitos sempre ficaram relegados, não lhes sendo atribuído o valor devido, ora em razão do poder estatal ilimitado, sobrepondo os interesses do Estado em face do cidadão, ora pela falta de visão e concepção do indivíduo como sujeito protagonista de tais prerrogativas.

A Carta Magna de 1988 foi a primeira Constituição brasileira a versar sobre o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, em franca influência das Constituições Alemã, Portuguesa e Espanhola.

Neste contexto, o princípio da dignidade da pessoa humana, por estar relacionado como princípio fundamental e nesta alçada, efetivador dos direitos fundamentais, goza da prerrogativa de legitimar o ordenamento constitucional delimitando o poder do Estado em prol do ser humano. Serve ele como parâmetro para o ente estatal limitar-se frente aos direitos e garantias fundamentais ao mesmo tempo que tem o dever de resguardar os direitos do ser humano. Para tal efetividade deve ter aplicação imediata, independentemente de qualquer norma infraconstitucional que lhe regulamente.

O princípio da dignidade da pessoa humana no Estado Democrático de Direito deve nortear a formação dos demais direitos, destacando-se o da criança e do adolescente.

Mais especificamente em relação ao adolescente autor de ato infracional, quando da sua responsabilização, a aplicação das medidas sócio-educativas devem estar em consonância com tal princípio fundamental. Isto porque violar um princípio fundamental implica desrespeito a todo um sistema estabelecido, não é meramente a transgressão de uma norma.

O direito à dignidade é abordado no artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente da seguinte forma: "É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor". Deste modo, o Estatuto particulariza o já disposto no artigo 5°, ou seja, que nenhuma criança ou adolescente deve ser objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A responsabilização do adolescente autor de ato infracional deve estar baseada no Estatuto da Criança e do Adolescente aliada a uma interpretação evolutiva dos princípios fundamentais da Constituição.

As práticas do rotulamento e do preconceito reproduzidas diariamente nos sistemas de justiça, que fazem parte do que Warat denomina de "senso comum teórico dos juristas", como se verdades fossem, não passam de reflexos de uma sociedade desprovida de um pensamento crítico. (WARAT, 1982, p. 48-57).

Assim, o Direito da Criança e do Adolescente norteado por um Estado Democrático de Direito, tem por objetivo garantir o respeito à dignidade e, ao mesmo tempo, constituir um limite contra o arbítrio do Estado. E, para que um Estado possa se denominar Democrático de Direito, é preciso que tenha objetivos concretos que explicitem as valorações políticas fundamentais. A democracia, enquanto realização de valores de igualdade, de liberdade e de dignidade da pessoa humana, em consonância com o Estado de Direito resulta em uma evolução para a concepção da primazia do indivíduo sobre o Estado.

Daí a adoção da Carta Constitucional de 1988 pela Doutrina da Proteção Integral e sua ponderação sobre a prioridade absoluta da criança e do adolescente, ou seja, a proteção destes deve sobrepor-se a quaisquer outras medidas, sempre buscando resguardar seus direitos fundamentais.

É importante ter-se consciência de que não é suficiente os direitos e garantias fundamentais estarem assegurados nos mandamentos legais para transformar um Estado em Estado Democrático de Direito, sendo preciso, sempre, uma busca da viabilização concreta desses direitos, onde todas as funções do Estado, nos seus três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário, e o ordenamento jurídico devem estar submetidos aos princípios fundamentais, e em especial, ao princípio da dignidade da pessoa humana. Daí a importância do Judiciário neste contexto como garantidor do respeito aos ditames constitucionais.

A Constituição da República Federativa do Brasil, no âmbito dos direitos fundamentais, confere um tratamento especial aos direitos da criança e do adolescente. Ao regular a matéria, no artigo 227, caput, determina que a família, a sociedade e o Estado devem assegurar para as pessoas em formação, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além do dever de garantir que fiquem a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Esta previsão constitucional bem retrata a preocupação mundial com a preservação e a efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes contra todo e qualquer tipo de violência. Não é demais relembrar que a Carta antecipou-se à Convenção sobre o Direito da Criança, aprovada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989, sendo seguida de plano, pela Lei nº 8.069/90, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Dispõem, ainda, os parágrafos do mesmo dispositivo, o dever do Estado em promover a assistência integral à saúde da criança e do adolescente, aplicação de recursos públicos, a criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência, a proteção ao trabalho precoce.

Na seara infracional, a Constituição prevê expressamente a garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica, bem como a obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade.

De um modo geral, o princípio estudado enceta como conseqüências: igualdade de direitos entre os homens, a independência e autonomia do ser humano, a proteção dos direitos inalienáveis do homem e a não admissibilidade da negativa dos meios fundamentais para o desenvolvimento de alguém como pessoa.

Porém se em outras épocas a luta dos cidadãos era por liberdade e igualdade, com o passar do tempo novos interesses também foram sendo (re) descobertos e clamando por proteção. Passou-se a verificar que o indivíduo, apesar de ser titular de todos os direitos de seu semelhante, por vezes caracterizava-se por determinada peculiaridade a ser defendida. Desta forma, é comum hodiernamente a proteção de crianças, idosos, portadores de necessidades especiais, índios, entre outros.

O fato da Constituição de 1988 compreender a criança e o adolescente de acordo com seus anseios para que assim possa alcançar sua realização pessoal veio a solidificar a idéia da valorização do humano.

Diante de todo o exposto, é nessa linha de raciocínio que se passa a tratar no tópico seguinte da dignidade da criança e do adolescente, em especial às questões do desrespeito de tal princípio quando da aplicação das medidas sócio-educativas.


2. AS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS NO DIREITO BRASILEIRO

A Carta Magna de 1988 trouxe em seu artigo 228 a garantia de que são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial. Desta forma, a eles não é possível atribuir responsabilidade penal, uma vez que ainda se encontram em processo de desenvolvimento.

A Lei 8.069/90 estabelece que quando uma criança ou um adolescente [02], pratica a conduta descrita na legislação penal como crime ou contravenção, dá-se o nome de ato infracional. A conseqüência desse ato, caso seja ela criança, pode ser a aplicação de uma das medidas de proteção e, caso adolescente, também as medidas sócio-educativas, descritas respectivamente nos artigos 101 e 112 do mesmo Estatuto.

Quanto às medidas de proteção, elas são aplicadas sempre que os direitos previstos no Estatuto forem ameaçados ou violados por ação ou omissão da sociedade ou do Estado, por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável ou em razão de sua própria conduta, conforme prevê o disposto no artigo 98, e são as seguintes: I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II - orientação, apoio e acompanhamento temporários; III - matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII - abrigo em entidade; VIII - colocação em família substituta.

Já as medidas sócio-educativas, aplicadas somente aos adolescentes, possuem características diferentes, que podem implicar em conseqüências mais severas, chegando ao extremo da privação da liberdade, em casos excepcionais. Mas analisando as medidas, em um contexto geral do Direito da Criança e do Adolescente, teriam elas natureza retributiva? Caso não tenha, como podem ser caracterizadas? Por conta destes, e de outros questionamentos, há divergência entre os autores que as conceituam.

Para uma parte da doutrina - cita-se aqui, por exemplo, Saraiva e Sposato - normalmente defensores do direito penal juvenil, as medidas sócio-educativas têm nítido caráter penal, com caracteres de retribuição e punição, em quase nada se diferenciando, na prática, da pena imposta aos adultos.

Já para doutrina oposta ao pensamento anterior – Veronese e Vieira, por exemplo - contrários ao direito penal juvenil, as medidas sócio-educativas não se constituem penas, mas sim outro tipo de resposta do Estado não limitada à equação penal-civil.

Os autores defendem, então, que a par das já existentes responsabilidades penal, civil e administrativa conhecidas no Direito, no caso do adolescente a responsabilidade é estatutária, composta de uma face social, pela qual o adolescente é visto como um ser social e não uma patologia que deveria ser objeto de tratamento e outra face educativa caracterizada pela intervenção visando a inserção do adolescente na sociedade. E concluem afirmando que o Direito Penal, com sua visão de sanção, castigo, punição e seus vícios históricos é imprestável para servir de modelo. (VERONESE e VIEIRA, 2006).

O Estatuto da Criança e do Adolescente relaciona os seis tipos de medidas sócio-educativas no artigo 112, a saber: I - advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à comunidade; IV - liberdade assistida; V - inserção em regime de semi-liberdade; VI - internação em estabelecimento educacional, além da possibilidade de aplicar qualquer uma das medidas específicas de proteção.

É importante destacar que a medida aplicada ao adolescente, a teor do disposto no § 1°, levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração. Por gravidade, não se deve entender a proporcionalidade entre o fato e a conseqüência, para então escolher a medida mais severa, tal qual no direito penal, mas sim, a análise da circunstância na qual ela aconteceu.

O § 2º do mesmo artigo cita que em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida do adolescente a prestação de trabalho forçado, repetindo a proibição expressa no artigo 5°, XLVII, "c" da Constituição.

Por fim, o dispositivo encerra com a determinação, no § 3º, que os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental recebam tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições.

Assim como nas medidas específicas de proteção, o artigo 113, ao lhes fazer remissão, prevê que na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, reforçando o entendimento do sentido não punitivo das medidas.

Em que pesem as previsões legais que se relacionou, há considerável distância destes ditames para a prática dos estabelecimentos de internação de adolescentes. Há um longo caminho a ser trilhado e onde o Poder Judiciário torna-se protagonista do processo de transformação.

No plano nacional, em 2006 a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente apresentaram o Sistema Nacional de Atendimento Sócio-educativo – SINASE. O documento tem como premissa básica a necessidade de se constituir parâmetros mais objetivos e procedimentos mais justos que evitem ou limitem a discricionariedade, reafirmando diretriz do Estatuto sobre a natureza pedagógica da medida sócio-educativa. É possível extrair interessantes informações que bem ilustram o cenário brasileiro a que se está a discutir.

Em relação à população de adolescente, o levantamento da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, utilizado pelo SINASE, identificou que no ano de 2004 existiam no Brasil cerca de 39.578 adolescentes no sistema sócio-educativo. E este número representava 0,2% (zero vírgula dois por cento) do total de adolescentes na idade de 12 a 18 anos existentes no Brasil.

Já em relação à realidade institucional do atendimento sócio-educativo o SINASE aponta que existiam 190 Unidades de atendimento sócio-educativo que executavam a medida de internação e 76 Unidades de semiliberdade. Conforme os dados trazidos pelo SINASE, existiam 13.489 adolescentes privados de liberdade (internação provisória, internação e semiliberdade) e um déficit de vagas para a internação e internação provisória de 1499 e 1488, respectivamente. Já a semiliberdade apresentava um excedente de vagas.

Mesmo sabendo que na aplicação da medida sócio-educativa se levará em conta a capacidade do adolescente cumprir a medida sócio-educativa, as circunstâncias e a gravidade da infração, ao se analisar esse dado referente à capacidade, verifica-se que 53% (cinqüenta e três por cento) deste déficit da internação poderia ser resolvido com as vagas excedentes das unidades de semiliberdade.

As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção de Jovens Privados de Liberdade estabelece o princípio, ratificado pelo Estatuto em seus artigos 94 e 124, que o espaço físico das Unidades de privação de liberdade deve assegurar os requisitos de saúde e dignidade humana. Entretanto, 71% (setenta e um por cento) das direções das entidades e/ou programas de atendimento socioeducativo de internação pesquisadas em 2002 afirmaram que o ambiente físico dessas Unidades são inadequados às necessidades da proposta pedagógica estabelecida pelo Estatuto.

Por fim, O SINASE indica que para mudar essa realidade são necessárias, entre outras ações: o reordenamento institucional das Unidades de internação; ampliação do sistema em meio aberto; organização em rede de atendimento; pleno funcionamento do sistema de defesa do adolescente autor de ato infracional; regionalização do atendimento; municipalização do meio aberto; capacitação dos atores socioeducativos; elaboração de uma política estadual e municipal de atendimento integrada com as demais políticas; ação mais efetiva dos conselhos estaduais e municipais; ampliação de varas especializadas e plantão institucional; maior entendimento da lei e suas especificidades; integração dos órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Segurança Pública, Assistência Social, na operacionalização do atendimento inicial do adolescente autor de ato infracional e no atendimento estruturado e qualificado aos egressos.

A disciplina de medidas de proteção e sócio-educativas e o Estatuto inteiro

[...] representam um desafio político e de civilização para a Nação e o mundo todo: o desafio de lutar para a criação de condições materiais e jurídicas que tornem possível para todas as crianças e os adolescentes brasileiros uma vida digna de pessoa humana; isto é, as fórmulas adequadas e justas de produção e distribuição da riqueza, que correspondem à altíssima mensagem lançada ao País e ao mundo pelo artigo 227 da CF brasileira. (BARATTA, 2006, P. 413).

Dentro deste contexto, entende-se que o Poder Judiciário ocupa lugar de destaque uma vez que, apesar da imparcialidade necessária à tarefa de julgar, é ele a instituição capaz de decidir acerca do enfrentamento dessa realidade, efetivando um dos fundamentos da República, qual seja, a dignidade da pessoa humana. As formas que se propõe para esta atuação é o tema do tópico seguinte.


3. O PODER JUDICIÁRIO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE AO ADOLESCENTE AUTOR DE ATO INFRACIONAL

Expostos os marcos situacionais que determinam à família, à sociedade e ao Estado a proteção de crianças e adolescentes, em especial ao adolescente submetido a uma medida sócio-educativa para o presente estudo necessário se faz traçar algumas idéias acerca da efetividade de tais direitos e, dentro deste contexto, o papel fundamental que o Poder Judiciário exerce como seu garantidor.

É premente, pois, que o Estado, por meio de seus Poderes, satisfaça as promessas constantes nos mandamentos constitucionais. Entende-se, assim, que o Poder Judiciário tem a capacidade de efetivar o princípio da dignidade da pessoa humana, em relação ao adolescente autor de ato infracional, em diversas situações, das quais, para o presente trabalho, impende destacar três delas, que se passa a analisar.

A primeira pode ser verificada quando ele exige do Poder Executivo e do Legislativo o fiel cumprimento dos preceitos constitucionais e legais, como, por exemplo, a implementação de políticas públicas voltadas para a área das medidas sócio-educativas, a destinação privilegiada de recursos, a administração de estabelecimentos de internação dignos e que comportem a infra-estrutura básica para cumprir os objetivos de educação e profissionalização, dotados de profissionais capacitados, entre muitas outras responsabilidades. Nesta relação com os demais Poderes, impende que o Judiciário adote postura substancialista, distanciando-se da mera função de velar pelas regras do jogo (procedimentalista), mas sim analisando com profundidade o fiel cumprimento dos preceitos constitucionais por parte do Executivo e do Legislativo.

A segunda forma destacada é quando ele próprio, como Poder do Estado ao presidir todo o processo de entrega da prestação jurisdicional, respeita referida dignidade seja nos procedimentos que possam conduzir à aplicação das medidas sócio-educativas, seja em suas decisões, ou ainda e com especial relevância, na execução de referidas medidas, em fiel consonância à Doutrina da Proteção Integral e aos postulados internacionais, livres de preconceitos e estigmas e verdadeiramente comprometido com o melhor interesse do adolescente autor de ato infracional.

Por fim, a terceira vertente apresentada, diz respeito à organização, como Poder estruturado, para dar conta das demandas oriundas da seara da Infância e da Juventude, quer criando varas especializadas, dotadas da infra-estrutura necessária ao atendimento sócio-educativo, quer implementando as equipes interprofissionais previstas no Estatuto que bem atendam o adolescente não só sob o aspecto jurídico, mas também com o essencial suporte da Psicologia, do Serviço Social, da Pedagogia, da Medicina, da Sociologia, da Antropologia, entre outras ciência afins.

Note-se que as três situações têm pontos em comum e guardam relação entre si, de modo que a omissão de qualquer uma destas três formas de intervenção deixa a descoberto a proteção necessária que se deve assegurar às crianças e adolescentes e, para o presente trabalho, mais especificamente ao adolescente autor de ato infracional, que se constitui, na prática, parcela colocada em extrema vulnerabilidade.

Um aspecto que vale pontuar, ainda, diz respeito à linguagem utilizada pelos atores jurídicos nas peças processuais, e em especial nas decisões judiciais, se constituindo em importante instrumento de transmissão de idéias, valores e conceitos, apontando direcionamentos que o agente está a optar. Isto toma maior relevância no campo do Direito uma vez que é por meio da linguagem que todos os atos são praticados, exigindo do profissional o uso correto das categorias técnicas.

Para Kasahara, a evolução dos termos utilizados na linguagem corresponde à evolução do pensamento de quem fala, sendo obrigação do profissional perceber o desgaste obtido ao longo do tempo por palavras que contêm preconceitos embutidos. Segundo o autor, modificar a linguagem não é um paliativo, um eufemismo. É um elemento indispensável para a conscientização e a ação concreta de todos na construção de uma sociedade mais justa. Àqueles que afirmam ser inútil mudar a nomenclatura sem mudar a realidade das políticas públicas, falta-lhes perceber a unidade das transformações sociais. Não existem diversos momentos, mas um único processo, com diversas frentes que catalisam umas às outras. (KASAHARA, 2008).

Desta forma é necessário que os profissionais do Direito ao prolatarem suas decisões utilizem a terminologia resultante das lutas sociais, dos movimentos, dos congressos, dos estudos, a fim de estarem em compasso com a evolução trazida. Categorias como "menor" e "infrator", por exemplo, já deveriam ter sido abandonadas da práxis. [03] A primeira, por remeter aos já revogados códigos de menores, tanto o de 1927, quanto o de 1979. Assim, a expressão "menor" primeiramente transmite a idéia de inferioridade a alguma coisa ou a alguém. Num segundo aspecto traz consigo a estigmatização que ocorreu por décadas de desrespeito aos direitos das crianças e dos adolescentes.

Já a categoria "infrator" tem a capacidade de rotular o adolescente por um ato que praticou num determinado tempo, lugar e circunstância da sua vida, atribuindo um adjetivo pejorativo que o acompanha durante e depois do procedimento.

São diversas, portanto, no bojo de seus atos, as situações com as quais os magistrados se deparam na questão do adolescente em conflito com a lei e que exigem dele a análise do caso posto a julgamento em consonância com a Doutrina da Proteção Integral.


4. BREVE RETRATO DA ESTRUTURA DO PODER JUDICIÁRIO EM SANTA CATARINA SEGUNDO O LEVANTAMENTO DA ABMP

Em julho de 2008, em comemoração aos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, a Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude – ABMP - realizou criterioso levantamento nacional sobre como se estrutura o Sistema de Justiça da Infância e da Juventude brasileiro, no qual é possível se verificar dissonância entre o que prevê a legislação e a realidade da prática, sendo que Santa Catarina não foge à regra.

Segundo o levantamento, e conforme demonstram as tabelas a seguir, o Brasil conta com 92 comarcas com varas especializadas da Infância e Juventude, entenda-se: com competência exclusiva para o tema, das quais 18 comarcas possuem mais de uma vara, totalizando 126 juízes trabalhando apenas nessa temática. Por ocasião do estudo, apenas três delas no Estado de Santa Catarina: Joinvile, Florianópolis e Blumenau.

Entretanto cabe ressaltar que em Santa Catarina, a competência para processar e julgar, em grau de recurso, matéria concernente ao Estatuto da Criança e do Adolescente, no procedimento de apuração de ato infracional atribuído a adolescente, em razão do disposto no Regimento Interno do Tribunal de Justiça, é de competência exclusiva das Câmaras Criminais. Entende-se ser equivocada tal distribuição e em dissonância com a Doutrina da Proteção Integral, uma vez que o Direito da Criança e do Adolescente é totalmente diferente, distante e autônomo em relação ao Direito Penal.

Além da escassez de varas da Infância e Juventude especializadas, em relação à obrigatoriedade do estabelecimento de um sistema proporcional daquelas com a população, segundo dispõe o artigo 145 do Estatuto, observou-se no panorama nacional uma total falta de critérios formais no país a definir tal proporcionalidade. O levantamento apontou, por exemplo, que nas três Comarcas do Estado de Santa Catarina que possuem vara exclusiva da Infância e Juventude, atuam apenas três juízes, um por município.Caso seja levado em conta que o Estado possui 293 municípios, dos quais 267 possuem até 50.000 habitantes, o percentual de municípios atendidos com varas especializadas é de pouco mais de 1% (um por cento), e cada juiz atende em média uma população de quase 400.000 habitantes, quando a ABMP entende que o ideal e necessário é o estabelecimento de um critério de 100.000 habitantes para tal iniciativa.

A única referência normativa no Brasil sobre esta questão da proporcionalidade encontra-se na Resolução de nº 113 do Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) que, em seu artigo 9º, vai dispor acerca da necessidade de especialização das varas e da criação de equipes interprofissionais, da seguinte forma:

Art. 9°. O Poder Judiciário, o Ministério Público, as Defensorias Públicas e a Segurança Pública deverão ser instados no sentido da exclusividade, especialização e regionalização dos seus órgãos e de suas ações, garantindo a criação, implementação e fortalecimento de: I) Varas da Infância e da Juventude, específicas, em todas as comarcas que correspondam a municípios de grande e médio porte ou outra proporcionalidade por número de habitantes, dotando-as de infra-estruturas e prevendo para elas regime de plantão; e II) Equipes Interprofissionais, vinculadas a essas Varas e mantidas com recursos do Poder Judiciário, nos termos do Estatuto citado.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), municípios de médio porte são aqueles entre 50.001 a 100.000 habitantes e, de grande porte, aqueles com população entre 100.001 a 900.000 habitantes. Conjugando os dados, pelo CONANDA quando o município contasse com 50.000 habitantes já deveria possui vara especializada da Infância e Juventude.

Boa parte das comarcas do Estado é de entrância única, ou seja, o magistrado julga todas as ações que ingressam na sua jurisdição. Em diversas outras comarcas a competência para os feitos relativos aos direitos da criança e do adolescente é dividida com outros temas, sendo que em Santa Catarina, é comum a existência de varas que julgam ao mesmo tempo ações criminais e da Infância e Juventude.

O segundo aspecto do levantamento diz respeito à existência das equipes interprofissionais previstas nos artigos 150 e 151 do Estatuto. A participação de profissionais do Serviço Social, da Psicologia, da Medicina, da Pedagogia subsidiando o magistrado na formação de seu convencimento dá-se em razão da complexidade que envolve as causas da Infância e da juventude.

O CONANDA, por meio dos artigos 6° e 7° da já referida Resolução n° 113/06, ao tratar do eixo da defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes, caracterizado pela garantia do acesso à justiça, ou seja, pelo recurso às instâncias públicas e mecanismos jurídicos de proteção legal dos direitos humanos, gerais e especiais, da infância e da adolescência, exige a atuação judicial das varas da infância e da juventude e suas equipes multiprofissionais.

Em relação à existência efetiva de equipes técnicas na estrutura do Judiciário Catarinense, a diversidade de profissionais que compõem as equipes e a distribuição geográfica destes profissionais no Estado é possível verificar a falta de critério na proporcionalidade e na lotação dos profissionais. Os municípios de Florianópolis e Blumenau, segundo e terceiro em número de habitantes no Estado, respectivamente, com populações superiores a 200.000, não possuem psicólogos, enquanto que outros bem menores, tais como Ascurra com 6.761 habitantes, Itá com 6.417 habitantes, Rio do Campo com 6.043 habitantes e Trombudo Central com 6.221 habitantes, possuem 1 (um) psicólogo cada, segundo dados do levantamento.

O mesmo ocorre com os assistentes sociais. Enquanto Chapecó, com 164.803 habitantes, Gaspar com 52.428 habitantes e Navegantes com 52.638 habitantes não possuem este tipo de profissional, Tubarão com 92.569 habitantes possui 3 (três) e Modelo com população de 3.772 habitantes possui 1 (um).

Ademais, impende ainda ressaltar que Poder Judiciário catarinense optou pela contratação de apenas dois tipos de profissionais para a atuação nestas áreas, quais sejam, assistentes sociais e psicólogos, não havendo mais nenhum técnico de outro saber, tais como pedagogos e antropólogos. Sabe-se que, apesar da qualidade destes profissionais, a análise das ações envolvendo, por exemplo, direitos difusos e coletivos, exigem conhecimentos mais abrangentes possíveis. Destaca-se que a própria aplicação da medida sócio-educativa carece de um profissional da área da pedagogia.

Entende-se que as violações de direitos de crianças e de adolescentes relacionam-se diretamente com problemas sociais. Assim, o Poder Judiciário deve desencadear ações articuladas com os demais órgãos públicos. O trabalho de assessoramento dos técnicos torna o exercício da magistratura muito mais completo e com maior possibilidade de resolver os problemas que lhes são postos e cumprir sua missão institucional de garantia dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes.

O último, e interessante aspecto da pesquisa elaborada pela ABMP, diz respeito à formação dos magistrados como condição fundamental para a garantia de direitos de crianças e adolescentes. A preocupação é relevante na medida em que apesar de que todos os Juízes, Promotores de Justiça e Defensores Públicas serem bacharéis em Direito, muitos deles não se aperfeiçoaram acerca das mudanças trazidas na seara da Infância e da Juventude, em especial após 1988.

Some-se a isto o fato da disciplina do Direito da Criança e Adolescente não ser obrigatória nos cursos de graduação, o que se lamenta, uma vez que o profissional do Direito pode vir a advogar, ou exercer os cargos de Promotor de Justiça ou Juiz sem ter ao menos estudado referida disciplina em sua graduação.

Do diagnóstico verifica-se que no Estado de Santa Catarina o Direito da Criança e do Adolescente foi disciplina exigida no concurso, entretanto durante o período de formação dos magistrados a matéria não foi tratada. Também nos últimos seis meses anteriores à pesquisa não houve qualquer tipo de curso de formação continuada na área.

A conclusão final da ABMP é que o Sistema de Justiça é responsável pela garantia e implementação de condições para a elevação de crianças e adolescentes à categoria de sujeitos de direitos fundamentais e pela transformação da realidade de iniqüidades sociais que marca a história deste país só se dará pelo efetivo exercício de direitos por crianças, adolescentes e suas famílias.

Ocorre que a cultura jurídica brasileira, em muitos casos, demora para perceber a viragem trazida pela Constituição. Assim, cabe ao Poder Judiciário modificar sua estrutura, suas decisões e forma de executá-las, de modo a efetivar a gama de direitos fundamentais a serem manejados pela criança e pelo adolescente, na consolidação da sua dignidade.

Por fim, aguarda-se por um Poder Judiciário célere, estruturado e empenhado com a prioridade e a importância que se deva dar ao adolescente autor de ato infracional, assegurando-lhes todas as garantias trazidas na Constituição e no Estatuto, sensibilizado com a condição peculiar do adolescente, como pessoa em desenvolvimento e comprometido com o mais absoluto respeito à dignidade da pessoa humana.


CONCLUSÕES

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é tema de extrema riqueza, seja no âmbito acadêmico, seja na prática do Sistema de Justiça, considerando que comporta em seu conceito valores essencias à vida das pessoas.

Assim sendo, seria possível sua análise sob os mais diversos aspectos do Direito. Isto porque o Estado brasileiro elegeu como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana, plasmado logo no primeiro artigo da Carta Constitucional, e que serve de pilar do Estado Democrático de Direito e norteador das ações estatais.

É do conflito entre o homem e o Estado que surgem os direitos fundamentais e sua evolução consiste no deslocamento do centro deste para aquele. Desta forma é que os direitos fundamentais se apresentam como pretensões a serem realizadas, que variam de acordo com o momento histórico e a partir do valor da dignidade humana, como obrigações indeclináveis do Estado e do princípio da soberania popular que exige a atuação efetiva do povo na coisa pública, como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana.

A dignidade da pessoa humana, por se tratar de um princípio fundamental da Constituição brasileira, serve de base para todas as ações estatais. Dito de outra forma, os agentes públicos, de qualquer dos Poderes do Estado, têm o dever de sedimentar seus atos calcados no respeito aos direitos e garantias fundamentais. E isto implica além de o Estado não invadir o espaço do indivíduo, salvaguardá-lo de ameaças ou violações, dando a proteção necessária e eficiente, seja na elaboração de normas, seja na execução das leis, ou ainda, no julgamento das situações que chegam ao judiciário.

Antes de 1988 não havia uma distinção entre crianças e adolescentes autores de ato infracional ou negligenciadas pelo Estado e pela família, nem se primava pela convivência familiar. O Estado era o ente disciplinador dos "menores" oriundos de famílias "desajustadas". Era dele o dever de cuidar das "crianças abandonadas".

Estes conceitos ficaram (e estão) no imaginário social por séculos, aproximando a imagem da marginalização socioeconômica à da criminalidade, ou seja, de que a criança ou adolescente que vive privado de recursos econômicos é, ou será, autor de ato infracional, consistindo uma visão distorcida e estigmatizante da realidade.

A Constituição de 1988 representa um marco para os direitos das crianças e adolescentes. Com o advento da Doutrina da Proteção Integral a criança e o adolescente passam a ser considerados sujeitos de direito, a quem deva se dar prioridade absoluta, dada sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Esta responsabilidade é dividida entre a família, a sociedade e o Estado e foi reforçada com o advento da Lei n. 8.069 de 13 de julho de 1990, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente.

O Poder Judiciário exerce papel central na garantia e implementação de condições que assegurem às crianças e aos adolescentes seus direitos fundamentais como pessoas em desenvolvimento, bem como a mudança da realidade de violações que historicamente e dia-a-dia salta aos nossos olhos. O que a sociedade, e a infância em especial, esperam é um Judiciário que não lhes esqueça e que lhes dê a importância que a Constituição lhes outorgou. Para tanto, os primeiros passos talvez sejam a sensibilidade que toda a criança e adolescente merecem e o mais absoluto respeito à dignidade da pessoa humana.


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Notas

  1. Há a classificação doutrinária dos direitos fundamentais, dentre outros critérios, em gerações de direitos. Os direitos de primeira geração que se referem às liberdades públicas e aos direitos políticos. Os direitos fundamentais ditos de segunda geração dizem respeito aos direitos sociais, culturais e econômicos, correspondendo aos direitos de igualdade. Marcados por uma sociedade de massa, crescente desenvolvimento tecnológico e científico, além de novos problemas que exigem novas soluções tais como as questões dos interesses difusos, os direitos fundamentais de terceira geração implicam em direitos de solidariedade e fraternidade. Estes transcendem o homem como indivíduo para abarcar grupos da sociedade, são os chamados direitos coletivos ou difusos na qual destaca-se os direitos da criança e do adolescente. Por fim, os de quarta geração decorrem dos avanços no campo da engenharia genética. BOBBIO, 1992. p. 6.
  2. Artigo 2° do Estatuto da Criança e do Adolescente: "Considera-se criança a pessoa com até 12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade incompletos". BRASIL. Lei 8.069, de 13 de Julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm> Acesso em 23 mai 2007.
  3. No que se refere à questão da terminologia, enfatiza-se o fato da página da Presidência da República ainda trazer o termo "Código de Menores" entre parênteses juntamente ao Estatuto da Criança e do Adolescente, no link de pesquisas de legislações, demonstrando resquícios de uma legislação menorista. Isto porque a construção de significados é um processo lento e de aprimoramentos constantes. E neste processo de aprimoramento da linguagem é que se verifica o quanto os termos empregados trazem consigo uma rede de associações com pré-conceitos que precisam ser abandonados para permitirem a presença das novas concepções do Direito da Criança e do Adolescente. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Codigos/quadro_cod.htm. Acesso em 15 dez 2008.

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NICKNICH, Mônica. A dignidade do adolescente autor de ato infracional. O Poder Judiciário como instrumento de efetivação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2936, 16 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19539. Acesso em: 6 maio 2024.