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Fundamentos filosóficos da doutrina onusiana de intervenções internacionais.

Da guerra justa à responsabilidade de proteger

Fundamentos filosóficos da doutrina onusiana de intervenções internacionais. Da guerra justa à responsabilidade de proteger

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SUMÁRIO: Introdução; 1 A Doutrina da Guerra Justa; 1.1 Santo Agostinho; 1.2 São Tomás de Aquino; 1.3 Francisco de Vitoria e Francisco Suarez; 1.4 Hugo Grócio;1.5 Immanuel Kant; 1.5.1 O Ideal Jurídico Cosmopolita de Kant; 2 Considerações Sobre a Soberania Estatal; 3 O Panorama Contemporâneo; 3.1 As Organizações Internacionais; 3.1.1 Sociedade das Nações; 3.1.2 A Organização das Nações Unidas; 4 A Doutrina Responsability to Protect das Nações Unidas; Considerações Finais.

RESUMO

A preocupação dos povos com o "estado de guerra" e o "estado de paz" é tema sempre presente na doutrina das relações internacionais. A vinculação de Estados soberanos em sua essência a organizações internacionais que limitam o recurso à guerra e os atos de intervenções internacionais, defendendo-nos apenas quando imprescindível para a defesa da paz e para a salvaguarda dos Direitos Humanos é uma realidade iniciada em meados do século XX, e que com o advento do século XXI vem sofrendo alterações substanciais. Ocorre que as raízes teóricas desta prática remontam do ideário de pensadores de outras épocas históricas, sendo preciso, pois, buscar as origens filosóficas destes dogmas. Neste sentido, o presente trabalho pretende estudar os pilares dos regramentos presentes na contemporânea doutrina das relações internacionais, utilizando-se, para tanto, dos pensamentos precursores de autores como Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Francisco de Vitória e Francisco Suarez, Hugo Grócio e Immanuel Kant. Deste modo, a pesquisa intenta concatenar as proposições dos escritos filosóficos com o novel movimento internacionalista tangente ao tema, visando com isto, firmar entendimento sobre o Direito aplicável entre os Estados e as Organizações Internacionais, em face do surgimento de uma postura doutrinária com fulcro na reciprocidade e ajuda mútua, consubstanciado, ao menos em suas colunas teóricas, no viés da proteção dos Direitos Humanos, tão difundida hodiernamente pela Organização das Nações Unidas.

Palavras-Chave: Fundamentos Filosóficos. Guerra Justa.Responsabilidade de proteger.


INTRODUÇÃO

O intervencionismo é assunto intrigante, gerando debates fervorosos acerca dos parâmetros observáveis quando do uso deste expediente no campo das relações internacionais.

Neste diapasão, o atual momento sócio-jurídico mundial configura-se como a plataforma ideal para a abordagem de assunto tão intrigante quão relevante, qual seja a doutrina voltada para a anuência de ações de ingerência recomendadas pelas Nações Unidas.

Outrossim, temas como a guerra e a paz despertam interesse, e, analisá-los sob um prisma filosófico, acaba por ampliar os conhecimentos, por vezes superficiais, que se pode ter acerca destes conceitos.

Assim, tomando como aporte os escritos de Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Francisco de Vitoria e Francisco Suarez, Hugo Grócio e Immanuel Kant, em seu projeto de 1795, denominado de À Paz Perpétua, pretende-se buscar as raízes filosóficas da mais recente doutrina internacionalista das intervenções interestatais, aproximando seus pensamentos da doutrina internacionalista hodierna, especialmente, no que se refere aos mandamentos da Organização das Nações Unidas sobre a atual política de ingerência com caráter humanitário.

Esta obra não anseia defender em seu corpo que os vários autores acima, em seus tempos históricos, tiveram em suas mentes os conceitos hodiernos de "direito de ingerência interestatal", "responsabilidade de proteção" ou "Direito Internacional Humanitário", todavia, intenta arrazoar que cada qual em sua época, manifestou, de forma pioneira, o ideário que, com o passar dos séculos, contribui para o desenvolvimento das doutrinas que sustentam o Direito entre Estados praticado no mundo contemporâneo.

A pesquisa será dividida, observando as seguintes etapas: em um primeiro momento o texto será tomado por uma análise acerca das ideias dos autores retromencionados em seus respectivos momentos históricos, fundamentando a doutrina da chamada guerra justa. Em uma segunda etapa o estudo voltará sua atenção para o mundo contemporâneo, com uma análise conceitual sobre diversos institutos, dentre os quais a soberania, a Organização das Nações Unidas (ONU) e sua doutrina que enuncia a responsabilidade de proteção interestatal merecerão trato especial. Já ao seu final, a guisa de conclusões, ambiciona-se traçar um paralelo entre as doutrinas da "guerra justa", da "paz perpétua" e da "responsabilidade de proteção", fomentando, quiçá, novos debates sobre o arcabouço filosófico sobre o qual assentam-se as doutrinas em tela.


1 A DOUTRINA DA GUERRA JUSTA

Ao longo da história da humanidade, a discussão envolvendo temas relacionados à guerra e suas motivações fora desenvolvida por diversos autores, e no intuito de oferecer subsídios filosóficos sobre este tema, a obra propõe uma breve análise do ideário de algumas destas influentes figuras, visando, com isto, incutir a noção de "guerra justa" no pensamento do leitor.

1.1.Santo Agostinho

A abordagem acerca da moderna doutrina de intervenções das Nações Unidas, passa, inicialmente, pelo conceito de "guerra justa" originado no pensamento cristão elaborado por Santo Agostinho [01], no início do século V. Em sua obra A Cidade de Deus [02], o autor apresenta a reflexão de que o homem sábio somente empreenderá guerras justas [03] e, neste sentido, tem-se a primeira distinção entre as guerras justas, cuja conduta acaba por se justificar perante determinados pressupostos ancorados em imperativos morais cristãos, e, as guerras injustas, que jamais devem ser iniciadas pelos homens sábios, uma vez que, apenas os conflitos justos merecem ser empreendidos [04]. E, sobre as guerras justas, acrescenta Aurélio Agostinho, que mesmo a sua condução é fruto de falhas que fogem ao homem sábio e que esta passa a existir como uma imposição moral com justificativa perante Deus, na medida em que, "é, na verdade, a iniquidade da parte adversa que impõe ao sábio que empreenda a guerra justa" [05].

A doutrina cristã possui em sua essência a necessidade de limitação do fenômeno da guerra, ao mesmo tempo em que a torna algo legítimo face à existência de acontecimentos que são considerados como causas justas. Tal pensamento advém da ideia de que "a paz é o fim desejado da guerra" [06] e, assim, os homens sábios empreendem as "guerras [...] tendo em vista a paz" [07]. Portanto, através da verificação empírica da ocorrência de causas ditas justificáveis, Santo Agostinho em sua obra, defende, de maneira excepcional, a guerra como imperativo da paz.

1.2 São Tomás de Aquino

No século XIII, São Tomás de Aquino [08] retoma o pensamento pioneiro de Santo Agostinho. Em sua obra Summa Theologica, respondendo à indagação se o início de uma guerra constitui sempre um pecado, o autor sistematiza que a guerra justa demanda a existência a priori de três condições, a saber,: a) apenas "a autoridade do soberano" [09] possui legitimidade para a declaração de guerra; b) é forçosa "uma causa justa" [10], pois "os que são atacados, deverão ser atacados porque o merecem em resposta a uma falta" que cometeram; c) para dar início e prosseguir uma guerra "os beligerantes deverão ter uma intenção justa" [11]. Deste modo, Aquino (re)organiza a doutrina cristã sobre a guerra justa com nascedouro em Santo Agostinho, estabelecendo as condições que entende como imprescindíveis para que se tenha a guerra legitimada.

São Tomás de Aquino adiciona em sua sistematização que "por vezes é necessário o homem agir de outra forma com vistas ao bem comum" [12], do que se pode retirar que a resistência, tal qual a legítima defesa são, instrumentos que, quando observados determinados

pressupostos tidos como justos, fazem-se necessários ao alcance do bem comum, qual seja, a paz. Nesta esteira, Tomás de Aquino defende que os homens "que empreendem a guerra justa têm como objetivo a paz, e então não são contrários à paz" [13], assentando, assim, o pensamento teológico-filosófico cristão deste autor, seguindo Aurélio Agostinho, que a condução da guerra justa tem como finalidade última a consecução da paz.

1.3 Francisco de Vitoria e Francisco Suarez

Pelos escritos de Francisco de Vitoria [14] e Francisco Suarez [15], jusnaturalistas pertencentes aos séculos XVI e XVII, respectivamente, seguidores do pensamento aristotélico e tomasiano, formaliza-se, de forma incisiva, a chamada doutrina cristã da guerra justa.

Em suas Relectiones Theologiae, publicadas no ano de 1557, Vitoria elabora verdadeiros tratados de Ciência Política, dentre os quais merecem grifo especial, De potestade civili, em 1528, e De Indis e De Jure Belli, ambos no ano de 1539. A contribuição de Vitoria estaria em suas formulações, primeiro, acerca da existência de Estados soberanos independentes que se relacionariam numa "sociedade internacional"; segundo, sobre a existência de um direito natural das gentes e dos povos; e, terceiro, sobre a questão de cada Estado estar apto, em determinadas circunstâncias, a empreender "guerras justas".

Já Suarez faz ressurgir o ideário acerca do imperativo moral cristão apregoando a proporcionalidade entre os fins e os meios, firmando a compreensão de que "a resistência e a deposição não devem causar males maiores do que os gerados pela tirania" [16].

1.4 Hugo Grócio

A sistematização da idéia de Direito Internacional do jurista holandês Hugo Grócio [17] ocorre no ano de 1625, em sua obra The Rights of War and Peace - O direito da guerra e o direito da paz – onde o jurista holandês formaliza alguns do temas principais do Direito Internacional, realizando, v.g., a separação entre a guerra pública e a guerra privada, apontando as causas justas e injustas para que seja deflagrado um conflito, as obrigações impostas pelos tratados, os direitos dos embaixadores, assim como, lecionando sobre a paz no período pós-guerra, trazendo as condições para as tréguas, os direitos dos prisioneiros e as sentenças [18].

Em sua argumentação acerca das causas justificadoras de possíveis intervenções interestatais, o autor holandês expressa que "as razões que podem justificar um homem a iniciar uma guerra por ele próprio, podem igualmente justificar os homens que defendem a causa de outros" [19]. Grócio destaca que a defesa de "outros" prevê que exista uma causa justa e legitimamente conhecida por todos e, assim, "se a injustiça é visível [...] o direito da sociedade humana não deverá ser excluído" [20].

Destarte em The Rights of War and Peace encontram-se esboçadas as origens dos sistemas de segurança coletiva, que atuam, pela via dos tratados internacionais, realizando acordos sobre a segurança e a proteção mútua.

Assim, o jurista holandês traz "uma terceira razão para a guerra (justa), sendo esta, a proteção dos países ou povos amigos" [21]. Nestes casos, e num plano igual ao do próprio povo, encontra-se a "defesa dos aliados sempre que tal defesa esteja estipulada nos artigos do tratado" [22]. Não obstante, para Hugo Grócio, não só a defesa dos povos amigos, mas também aquela que se referir a outros povos que não estejam abrigados por tratados, convenções ou pactos, será desenvolvida em sua forma justa, sempre que "amigos, que não estejam sujeitos a qualquer promessa formal, mas que pela linha da amizade se tem a obrigação de proteger" [23] restarão igualmente beneficiados, e, ainda arremata o autor aduzindo que, "a última e a maior razão de todos para auxiliar os outros é a relação intrínseca à humanidade em auxiliar o próximo, o que é por si só, suficiente" [24].

1.5. Immanuel Kant

Em 1795, o filósofo Kant [25] lançou um opúsculo que obteve enorme sucesso junto ao público erudito de sua época. Em linhas gerais À Paz Perpétua tratava-se de um projeto que visava estabelecer uma paz eterna, primeiramente entre os povos europeus, vindo, em um segundo momento a espalhá-la por todo o mundo.

Kant não foi o primeiro a discutir a questão da paz entre os estados soberanos, mas, indubitavelmente, foi o primeiro a tratá-la sob o contexto filosófico, deixando de lado argumentos puramente teológicos, apresentado um projeto para uma paz mundial que amplia a visão, até então reinante, de que só os problemas dos europeus mereciam o debate.

Ao analisar as razões pelas quais Immanuel Kant elaborou o opúsculo À Paz Perpétua, Walter Bryce Gallie [26] lembra que o filósofo viveu num Estado onde prevaleciam a autocracia e o militarismo, com a supressão de direitos políticos da classe média. Neste cenário, Kant era professor na menor e mais pobre universidade da Prússia, localizada na remota fronteira nordeste com a Rússia, razão pela qual encontrava-se distanciado dos acontecimentos que lhe dariam experiência política.

Em outra via, sendo Immanuel Kant um aficionado da Revolução Francesa, a retirada da Prússia da guerra de intervenção contra esse regime, no mês de janeiro de 1795, foi o ponto de partida para que se tornassem públicas suas idéias revolucionárias sobre uma legislação internacional revisada, que confiava ser condição sine qua non para uma paz duradoura ou perpétua [27].

Já Volker Gerhardt, ao lecionar sobre a intenção do autor em seus escritos À Paz Perpétua, aduz que:

A motivação externa do escrito é um tratado de paz, a saber, o Tratado de Basiléia, assinado em 5 de abril de 1795, entre a Prússia e a França. Esse tratado revestiu-se de elevado valor simbólico, pois foi nele que a revolucionária república francesa foi pela primeira vez reconhecida na sua forma jurídica e nos seus limites territoriais por uma potência monárquica [...] Com essa referência já se manifesta a intençãopolítica do pequeno escrito de Kant: ele deve ligar o acontecimento histórico do tratado de paz com o impulso libertário-republicano da revolução, colocando-o em uma perspectiva de política mundial. [28]

Para Delgado [29] Kant foi influenciado por diversos fenômenos sociais, políticos e morais próprios de sua época, ganhando foco a Revolução Francesa e o ambiente iluminista, sua formação religiosa pietista, para a qual a redenção da culpa humana depende de uma moral muito rigorosa e de sólidas instituições políticas, o governo absolutista dos Fredericos na Prússia, a intensificação do comércio marítimo e as constantes guerras entre Estados europeus.

A obra foi escrita em formato de um verdadeiro tratado de paz, pautado em argumentos racionais que intentam o alcance da paz perpétua. Como que se imitasse a estruturação de um verdadeiro tratado contém uma base normativa e legitimadora para os instrumentos posteriores, que deverão receber fundamentação de um direito positivo de natureza pública.

Sua apresentação compõe-se de duas seções. A primeira formada pelos artigos preliminares que constituem as primeiras diretrizes para o estabelecimento da paz. Já a segunda, com seus artigos definitivos representando os fundamentos necessários ao projeto de paz kantiano. Ao seu final, dois suplementos colaboraram no entendimento da chamada pacificação cosmopolita.

Para Ricardo Ribeiro Terra [30], nos artigos preliminares "encontram-se regras de bom senso que levam em conta elementos empíricos relevantes e que são condições importantes para sair de um estado de guerra e visar à paz perpétua".

Kant arrazoa que do mesmo modo que a racionalidade humana cria um estado jurídico garantidor da convivência entre os seus indivíduos, também pode e deve ser organizado um estatuto jurídico que afiance uma ordem pacífica entre os Estados. E ainda, sustenta que o fim do estado de natureza encontra respaldo na administração da justiça e segurança amparada pelo cosmopolitismo. Nesta espécie, cosmopolita, os conflitos entre os cidadãos, Estados e cidadãos e Estados entre si são sempre solucionados pelas vias juridicamente institucionalizadas.

O filósofo prussiano propõe no segundo artigo definitivo de À Paz Perpétua, uma verdadeira ordem pacífica global fundamentada sobre uma ordem jurídica também global.

A questão envolvendo a paz, que até o momento kantiano relacionava-se diretamente com a religião, passa a ser colocada sob termos jurídicos, acompanhando o processo de secularização que se expandia na Europa do século XVIII, acolhendo novos valores e conceitos como direito, justiça e política.

O opúsculo ganha importância para o estudo empreendido aqui quando da exposição de seus artigos definitivos.

Em seu projeto filosófico, Kant defende a formação de uma espécie de Aliança Federativa de Estados (Völkerbund), na qual os estados renunciariam à guerra, submetendo seus conflitos à uma instância superior e imparcial, valorizando, desta feita, a figura de um Direito Internacional pautado na vontade geral dos membros que participam de sua formulação, abandonando sua natureza voluntarista e meramente instrumental.

Kant, nesta esteira, grifa:

[...] tem, pois, de existir uma federação de tipo especial, a que se pode dar o nome de federação da paz (foedus pacificum), que se distinguiria do pacto de paz (pactum pacis), uma vez que este tentaria acabar com uma guerra, ao passo que aquele procuraria pôr fim a todas as guerras e para sempre. Esta federação não se propõe obter o poder do Estado, mas simplesmente manter e garantir a paz de um Estado para si mesmo e, ao mesmo tempo, a dos outros Estados federados, sem que estes devam por isso (como os homens no estado de natureza) submeter-se a leis públicas e à sua coação. [31]

Para o citado autor, o Direito Internacional deve atuar sempre em prol da paz perpétua, regendo, pois, as relações entre os Estados. Neste ponto, se distancia de Hugo Grotius e Samuel von Pufendorf , que faziam alusão ao reconhecimento de um direito de guerra.

1.5.1. O Ideal Jurídico Cosmopolita de Kant

Partindo do estudo dos dois primeiros artigos definitivos da obra de Kant sobre a paz perpétua, é possível encaminhar a análise rumo ao entendimento de seu terceiro artigo, onde o autor trata da figura do Direito Cosmopolita como um ideário a ser conquistado.

Tal direito vem formulado na definição do jus cosmopoliticum cujo teor baliza as condições de uma hospitalidade universal.

Para o autor prussiano:

[...] hospitalidade significa aqui o direito de um estrangeiro a não ser tratado com hostilidade em virtude da sua vinda ao território de outro. Este pode rejeitar o estrangeiro, se isso puder ocorrer sem dano seu, mas enquanto o estrangeiro se comporta amistosamente no seu lugar, o outro não o deve confrontar com hostilidade. Não existe nenhum direito de hóspede sobre o qual se possa basear esta pretensão (para tal seria preciso um contrato especialmente generoso para dele fazer um hóspede por certo tempo), mas um direito de visita, que assiste todos os homens para se apresentarem à sociedade, em virtude do direito da propriedade comum da superfície da Terra, sobre a qual, enquanto superfície esférica, os homens não se podem estender até ao infinito, mas devem finalmente suportar-se uns aos outros, pois originariamente ninguém tem mais direito do que outro a estar num determinado lugar da Terra. [32]

Neste sentido, o chamado "Direito de Hospitalidade Universal" trazido por Kant possui em si um aspecto normativo, pautado nas regras convencionais interestatais, e, uma aparência histórico-social, com fulcro nos acontecimentos de sua época, como o crescimento da circulação de pessoas em todas as partes do mundo, produto dos fluxos migratórios advindos das grandes descobertas e da colonização que se impulsionava no "novo mundo" aliada à grande expansão do comércio internacional.

Confirmando o pensamento acima, "partes afastadas do mundo podem entre si estabelecer relações pacíficas, as quais acabarão por se tornar legais e públicas, podendo assim aproximar cada vez mais o gênero humano de uma constituição cosmopolita" [33].

Ante ao exposto, é certo que o estabelecimento do Direito Cosmopolita proposto no Terceiro Artigo Definitivo da obra kantiana em estudo, pugna, nas relações entre os povos, por leis públicas nas quais a violação de direitos praticadas em qualquer parte da Terra possa ser sentida pelos demais povos [34].

Mario Caimi [35], ao buscar a melhor interpretação para o Direito Cosmopolita kantiano, indica a coexistência de duas tendências de explicação acerca deste fenômeno. A primeira, representada por autores como Hannah Arendt, Roger Hancock e Heinz-Gerd Schmitz, entende-o como o direito de livremente mover-se pelo mundo e realizando visitas à terras alheias, enquanto que a segunda, encabeçada por autores como Gerhard Funke, Georg Cavallar e Rudolf Malter, interpreta-o como o direito de reciprocidade de tratamento entre Estados e entre indivíduos de Estados diferentes.

O chamado jus cosmopoliticum, com respeito à integridade, à igualdade de oportunidades e à reciprocidade entre os povos, é, na visão de Kant, o terceiro passo para que seja estabelecida a paz. Fechando-se, a partir deste, os eixos interdependentes e complementares abordados em sua À Paz Perpétua, partindo da pacificação republicana, passando pela formação da Federação de Estados livres (Völkerbund), chegando ao Direito Cosmopolita.

Situação claramente exposta no trecho abaixo:

[...] a ideia de um direito cosmopolita não é nenhuma representação fantástica e extravagante do direito, mas um complemento necessário de código não escrito, tanto do direito político como do direito das gentes, num direito público da humanidade em geral e, assim, um complemento da paz perpétua, em cuja contínua aproximação é possível encontrar-se só sob esta condição. [36]

Nota-se que a paz, para muitos, algo inatingível, segundo Kant é o resultado de um projeto racional desenvolvido com a observância dos preceitos aludidos acima, formando o que ele denomina de Constituição Política (Staatsverfassung) Perfeita.

Desta forma, resta evidente a importância do estudo da obra de Kant ainda não esgotada em seus pilares inovadores, mesmo após cerca de duzentos e quinze anos de sua publicação original, com a transformação do federalismo consubstanciado na associação dos Estados, defendido no Segundo Artigo Definitivo, no suplemento do pacto social que o constitucionalismo republicano assume no plano da política internacional, respeitando o multiculturalismo dos povos e os Direitos Humanos com vistas a possibilitar a expansão do pacifismo para além das fronteiras nacionais transferindo a outorga da resolução dos conflitos aos mecanismos jurídicos estabelecidos de comum acordo entre as nações que a integram, sem a pretensão de usurpação dos poderes estatais.


2.CONSIDERAÇÕES SOBRE A SOBERANIA ESTATAL

No âmbito das relações internacionais a soberania é um dos pilares do jogo de interesses entre as nações, cuja construção pode ser remetida à Paz de Vestfália [37], em 1648.  Segundo a lição de Williams Gonçalves e Guilherme Silva [38], no que concerne às relações interestatais, coloca-se a regra absoluta de não-intervenção em assuntos internos, não obstante os de ordem política e legal, como também os de ordem religiosa. De acordo com os estudiosos das relações internacionais, a soberania, bem como os conceitos essenciais de Estado e Território, não são estáticos, sofrendo influência direta dos contextos sócio-históricos em que são analisados.

Para Dallari [39], a soberania é uma concepção de poder estatal incontestável e o seu significado é verificado sobre o poder que exerce sobre os indivíduos e sobre todo o limite territorial do Estado.

A abordagem de Luigi Ferrajoli sobre o tema em A Soberania no Mundo Moderno é esclarecedora, posto que o autor reapresenta as ideias, já expostas em linhas pregressas, do jurista espanhol Francisco de Vitoria.

Para Ferrajoli, períodos de instabilidades e mudanças, o Estado torna-se um ente autônomo no cenário jurídico e político internacional. Deste quadro, o jurista italiano, retira duas conseqüências, a saber: 1. A negação do próprio direito internacional. 2. O espírito de potência e vocação expansionista e destrutiva (alimentando o paradigma da soberania estatal).

Tal paradigma, ainda segundo Ferrajoli [39], atinge seu auge e seu declínio na primeira metade do séc. XX, no período das duas guerras mundiais (1914-1945). Seu término é dado pela criação da ONU (Organização das Nações Unidas) em 1945 e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948. Os dois fatos considerados chaves para tirar o mundo, ao menos no plano normativo, do Estado de natureza o levando para um Estado civil. A soberania deixa de ser livre e se subordina a duas normas fundamentais: 1. O imperativo da paz; 2. A tutela dos direitos humanos. Neste sentido, o autor preconiza que a carta da ONU equivale a um contrato social internacional, limitando o poder Soberano.

Aduz ainda o mestre italiano que o Estado nacional como sujeito soberano encontra-se, hodiernamente, em uma crise que surge sob dois prismas. De cima, o primeiro deles, por causa da transferência maciça para sedes supra-estatais ou extra-estatais de boa parte de suas atribuições – defesa militar, controle da economia, política monetária, combate à grande criminalidade. De baixo, devido aos impulsos centrífugos e processos de desintegração interna, os quais são engatilhados, de forma muitas vezes violenta, pelos próprios desenvolvimentos da comunicação internacional, e que torna sempre mais difícil e precário o cumprimento das outras duas grandes funções, a saber: a unificação nacional e a pacificação interna.

A crise percebida por Ferrajoli e por outros pensadores do direito contemporâneo pode ser tomada como uma crise atinente à limitação da soberania face às transformações e exigências do mundo hodierno, e, uma consequência da situação atual do Estado, é a restrição de sua soberania. Antes vista como um instituto absoluto, ela passa a ser limitada pelo respeito, cada vez mais crescente, aos direitos humanos. Fato este que enseja a compreensão de que a soberania, hoje, pode ser relativizada e violada quando um Estado não cumprir sua função primaz de proteção aos seus cidadãos, ou quando, a própria autoridade estatal é sujeito ativo de graves violações dos direitos fundamentais de seu povo.

Vale a lembrança neste momento de que: a Declaração da Carta das Nações Unidas em 1945 e a Declaração dos Direitos do Homem, em 1948, conduzem também para o plano internacional os limites à soberania até então pertencentes exclusivamente à ordem intra-estatal, ocorrendo, desta feita, um processo de internacionalização da proteção dos direitos fundamentais, exigindo dos Estados, uma práxis que se dirija tanto para seus interesses particulares quanto para aquilo que se observa como o interesse comum dos povos.


3 O PANORAMA CONTEMPORÂNEO

É certo que mais de dois séculos se passaram desde o surgimento das idéias kantianas acerca de um jus cosmopoliticum. Diante do tempo transcorrido, ainda é possível adotar na atualidade os conceitos apresentados por Kant, em 1795?

A resposta a esta indagação não foge ao estudo dos acontecimentos históricos que acompanharam o desenvolvimento do Direito Internacional, notadamente a partir do início do século XX, com a ocorrência de duas Guerras de alcance mundial, até os dias atuais, nos quais efervescem as preocupações acerca da paz e da guerra, dentre outros temas concernentes às relações interestais.

O opúsculo kantiano é uma obra onde a moral e a política apresentam-se como entes indissociáveis, neste sentido, Kant acreditava na evolução da espécie humana sob o aspecto moral. Neste ponto de vista, o efeito pedagógico advindo do aprendizado com os horrores da guerra, e, a percepção de seus altos custos econômicos e sociais, unidos a um crescente sentimento de moralidade entre os cidadãos, concomitantemente ao desenvolvimento da ideia de um direito cosmopolita, transformaria a guerra em um recurso progressivamente fútil entre regimes democráticos.

Com a criação dos Direitos do Homem, no panorama pós-guerra, novamente entra em cena essa esperança kantiana. E, nos dias atuais, conforme a retrocitada profecia de Kant, a violação de um direito num lugar da Terra acaba por refletir sobre toda a humanidade.

No entanto, em face dos diversos interesses interestatais postos em jogo, notadamente no período que sucede às duas grandes guerras desaguando nos dias atuais, atingir o ideal kantiano demandou a utilização de instrumentos que, quando manuseados de forma eficaz, puderam auxiliar no cumprimento, ao menos parcial, desta tarefa hercúlea. Outrossim, entra em cena um novo formato de estruturação entre os Estados Soberanos, que, em função da necessidade de ajuda mútua e reciprocidade começam a se agrupar, formando as chamadas Organizações Internacionais, conforme será demonstrado abaixo.

3.1 As Organizações Internacionais

O ideário concernente à criação de instituições supranacionais não é recente. A intenção de unir Estados em torno de um só corpo político ou jurídico teve sua origem no pensamento dos mais diversos autores em seus respectivos momentos históricos, tendo como elemento comum, a imperiosa necessidade de buscar a colaboração entre os Estados.

No intuito de aclarar o seu significado, adota-se a conceituação de Organização Internacional oferecida pelos professores Ricardo Seitenfus e Deisy Ventura [40], segundo os quais: "as Organizações Internacionais são associações voluntárias de Estados constituídas através de um Tratado, com a finalidade de buscar interesses comuns por intermédio de uma permanente cooperação entre seus membros".

Neste sentido surgem, em um primeiro momento, a Sociedade das Nações (SDN), de curta duração, e, posteriormente, a Organização das Nações Unidas (ONU), como aparelhos interestatais de maior proporção. [41]

3.1.1 Sociedade das Nações

Após o choque da Primeira Guerra Mundial, diante da constatação da profundidade da tragédia humana e da destruição material decorrente da intensidade dos instrumentos bélicos utilizados no conflito, as nações mais influentes, em especial as vencedoras, conscientizaram-se da necessidade de criação de uma organização de caráter universal voltada para a paz e a segurança internacionais. Assim, é criada pelo Tratado de Versalhes, de 1919, a primeira organização de vocação universal, nomeada de Sociedade das Nações, cuja finalidade primaz era a manutenção da paz.

Em linhas gerais, o Pacto ditava que para o desenvolvimento da cooperação entre as nações e para a garantia da paz e da segurança internacionais era indispensável que os Estados assumissem diversos compromissos, em especial, não recorrerem individual e unilateralmente à guerra, respeitando, desta feita, as normas de Direito Internacional, observando, com isto, as obrigações mútuas estabelecidas nos tratados e se relacionando sob os pilares da justiça e da honra. [42]

Não resta dúvida de que a Sociedade das Nações, tendo sido a primeira organização de alcance mundial, com vistas à organizar um sistema de segurança coletiva, trouxe importantes contribuições para a comunidade internacional, desencadeando, a partir de seus pilares, inúmeros tratados de criação de organizações internacionais, com as mais diferentes finalidades e áreas de atuação; admitindo o estabelecimento de uma força militar internacional de paz; incentivando uma cultura contrária à guerra nas relações internacionais; assim como, servindo como laboratório de aperfeiçoamento para a criação da ONU, nos anos subsequentes.

Nesse sentido, na visão de Ricardo Seitenfus [43], a Sociedade das Nações representa um marco de grande relevância nas relações internacionais, uma vez que foi a primeira organização de caráter universal e com a finalidade de manter a paz através de mecanismos jurídicos, fundamentada na associação intergovernamental de cunho permanente e nos Princípios da Segurança Coletiva e da Igualdade entre os Estados soberanos.

Não obteve grandes êxitos, dentre outras motivações, em função do caráter simbólico e não-vinculativo de suas deliberações, bem como pelo esvaziamento que o pacto sofreu com a ausência das grandes potências da época do cerne de suas deliberações. Porém, mesmo em face de seu relativo insucesso, especialmente em razão de não ter conseguido evitar a eclosão da Segunda Guerra Mundial [44], a SDN perdurou de fato até o ano de 1939, mas na esfera do direito somente foi extinta em 1947, ano em que foi incorporada pela Organização das Nações Unidas.

3.1.2 A Organização das Nações Unidas

Em meados de 1945, mais uma vez sob o flagelo de uma Grande Guerra, renovou-se a consciência da necessidade de uma cooperação internacional para impedir novos conflitos mundiais. A necessidade de se (re)organizar o mundo por meio de instituições interestatais se fez evidente e o pensamento de Kant, demonstrado em seu opúsculo sobre a paz permanente, voltou à cena para oferecer os alicerces de diversas organizações internacionais, dentre as quais, a ONU merece destaque.

O kantiano valor pedagógico dos horrores da guerra parecia determinar o discurso político das potências dominantes no período pós Segunda Guerra Mundial. Estas se mostravam decididas a preservar suas próximas gerações dos horrores da guerra que por duas vezes, no breve espaço de tempo de uma vida humana, ocasionaram sofrimentos inexprimíveis à humanidade.

Corroborando o entendimento acima, Shiguenoli Miyamoto aduz que:

No clima de fim de guerra foi pensada e gestada aquela que se converteria na melhor experiência de instituição universal, envolvendo 51 governos signatários em 1945 e atingindo, ao final do século XX, a marca de quase duas centenas de membros. A Organização das Nações Unidas concretizou-se, portanto, almejando reunir os países do mundo com a finalidade, diz o preâmbulo de sua Carta, de "preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra" e "manter a paz e a segurança internacionais. [45]

Nesta perspectiva, a Organização das Nações Unidas nasce como a segunda tentativa de se institucionalizar um sistema de segurança coletiva. A Carta das Nações Unidas foi assinada em São Francisco, nos Estados Unidos da América, a 26 de junho de 1945, após o término da Conferência das Nações Unidas sobre Organização Internacional, entrando em vigor a 24 de outubro daquele mesmo ano.

Seguindo o ideário da Sociedade das Nações, a ONU passou a atuar buscando, num panorama posterior à Segunda Guerra Mundial, a paz e a segurança internacional. Ocorre que, assim como acontecera com a SDN, as contingências realistas desde logo se impuseram como verdadeiros empecilhos ao pleno alcance dos objetivos da nova Organização de caráter global.

Durante quase cinco décadas as Nações Unidas desempenharam sua função sob a desconfiança dos céticos, que, não acreditando em seu poder de decisão criticavam a postura onusiana de aceitação passiva do confronto entre os blocos políticos encabeçados pelos Estados Unidos da América (EUA), defensor do capitalismo, e pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que patrocinava o socialismo. [46]

Já no final do século XIX, sem a presença da URSS no cenário internacional, com o fim da Guerra Fria, a combinação de desenvolvimento do regime do Direito Internacional dos Direitos Humanos e as crises humanitárias catastróficas, com destaque para Ruanda (1994) e Kosovo (1999), aperfeiçoaram o debate em torno das intervenções humanitárias enfatizando a necessidade de reconciliar os conceitos de soberania e direitos humanos no Direito Internacional, resgatando, com isso, a legitimidade da não-intervenção, pelo estabelecimento de regras claras para o uso de intervenções com inquestionáveis propósitos humanitários.

A análise de Jürgen Habermas sobre o tema destaca que:

Com a fundação das Nações Unidas empreendeu-se um segundo assalto no sentido de estabelecer forças supranacionais capazes de agir em prol de uma ordem global pacifica, que ainda continuava incipiente. Com o fim do equilíbrio bipolar o terror, e apesar de todos os retrocessos, parece abrir-se a perspectiva de uma "política interna internacional" no campo da política internacional de segurança e direitos humanos. [47]

O panorama ilustrado acima delimita o contexto histórico e político ideal para que se coloquem em debate as questões inerentes à pedra angular da doutrina intervencionista defendida pela Organização das Nações Unidas, uma vez que inúmeros casos de violações dos Direitos Humanos ocorreram nas mais diversas partes do planeta, e, a ONU, por sentir a ausência de uma norma que autorizasse intervenções nos Estados transgressores, realizou análises caso a caso durante as últimas décadas.

Resta evidente que o desenvolvimento de uma doutrina de proteção internacional dos direitos humanos confronta-se com o conceito de soberania clássico, até então aplicado nas relações internacionais. Nesta esteira, "o princípio da não intromissão foi minado durante as últimas décadas, mormente pela política dos direitos humanos." [48]

Sob a luz deste problema, o ex-secretário geral das Nações Unidas, Kofi Annan, requereu no ano de 1999, a elaboração de uma nova diretriz de atuação nos casos de violações massivas de direitos humanos. Em resposta ao pedido de Annan, em 2001, surgiu, um relatório apontando a chamada doutrina Responsability to Protect (Responsabilidade de proteger), que, em linhas gerais, sugere alterações teóricas e práticas no tratamento oferecido ao tema das intervenções humanitárias pelo Direito Internacional, acarretando, com isto, uma abordagem que respeite ao mesmo tempo a importância do todo e a interdependência existente entre as partes envolvidas, propondo as responsabilidades de prevenir, reagir e reconstruir.


4 A DOUTRINA RESPONSABILITY TO PROTECT DAS NAÇÕES UNIDAS

A doutrina conhecida como The Responsability to Protect, originada em setembro de 2001, num momento onde o mundo ocidental se via afrontado pelos ataques terroristas aos edifícios do complexo World Trade Center em Nova Iorque, teve o seu texto final aprovado pela Assembleia-Geral da ONU, somente em 2005, com a instituição, a partir de seus preceitos, de uma doutrina fundamental para as intervenções internacionais, consubstanciadas nas deliberações do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

A aprovação deste novo paradigma gera o entendimento de que a "responsabilidade de proteger" passa a ser garantida tanto no que se refere à sua legalidade, uma vez que a ONU detém a salvaguarda do uso da força e da manutenção da paz e segurança internacionais [49] quanto no concernente à sua legitimidade, dado que à ONU é conferido o status de mais importante organização internacional dotada de representatividade universal e que, em seu interior, tem a Assembléia Geral como órgão mais representativo [50] com cada Estado-membro tendo direito a um voto. [51]

No centro de suas "inovações", merece grifo especial, a relativização do conceito clássico de soberania, limitando-no para que ganhe espaço a "responsabilidade de proteger" das Nações Unidas, ao lado da supressão da pauta dos debates intervencionistas do termo "direito ou dever de ingerência".

No que concerne à soberania, as ponderações de Luigi Ferrajoli e Jürgen Habermas, transcritas em linhas anteriores, vão de encontro com as motivações das Nações Unidas.

Já a concepção que leva ao reconhecimento de um "direito de ingerência" colocou os Estados em uma posição evidentemente defensiva em relação a adoção de qualquer doutrina oficial sobre intervenções humanitárias. E, cedendo, pois, às pressões neste sentido, com a intenção de evitar qualquer "desgaste" no cenário mundial, a International Commission on Intervention and State Sovereignty (ICISS) – Comissão Internacional Sobre Intervenção e Soberania Estatal – em seu relatório sugeriu a alteração da nomenclatura de "direito de ingerência" para a "responsabilidade de proteger", optando por uma solução mais branda que contempla o compromisso internacional para as circunstâncias que demandarem o auxílio humanitário.

Com este marco, os argumentos onusianos evoluíram em duas linhas, a primeira relacionada à chegada de novos atores institucionais não estatais com responsabilidades de decisão em assuntos internacionais, bem como com alargamento das Nações Unidas, mediante a entrada em seu corpo de novos Estados membros que trouxeram consigo diferentes perspectivas e propostas de atuação comum, ofertando, desta feita, maior sustentabilidade representativa a uma resolução do problema; e a segunda, versando sobre as novas condições sob as quais a soberania seria exercida a partir do ano de 1945.

A partir desta alteração factual, o que se apreende por soberania, e por acatamento da soberania, não implicará nunca o respeito pelo direito de um Estado soberano poder exercer um poder ilimitado sobre o seu povo, pois agora se exige, não apenas o respeito às soberanias de outros Estados, como também àquela de ordem interna, traduzida pela responsabilidade do respeito à dignidade e aos direitos humanos básicos do seu próprio povo.

Por esta razão já se vê que ao reclamar por esta dupla responsabilização dos Estados soberanos, as Nações Unidas autorizam-se a dizer que podem intervir na política interna de cada Estado, não só em situações onde Estados soberanos são atacados por terceiros, mas também na defesa dos povos cujos direitos mais fundamentais sejam colocados em risco pela ação/omissão de seus próprios governos estatais.

Neste prisma, dentre outras deliberações, seu relatório reconhece que:

[...] a responsabilidade primária a esse respeito (proteção dos direitos humanos) permanece com o correspondente Estado, e que somente no caso de mostrar-se incapaz ou relutante em cumprir suas responsabilidades, ou é ele próprio quem comete os abusos, é que tal responsabilidade passará para a comunidade internacional. [52]

Trata-se, portanto, de uma obrigação claramente subsidiária, só recebendo guarida quando o Estado não a cumpre, entrando em cena a comunidade internacional.

A introdução de seis critérios para aferir a legitimidade de uma intervenção, seria, conforme o teor do relatório da ICISS, uma inovação.

Porém, os parâmetros que serão alinhados no parágrafo que se segue constituem cópia fidedigna da tradição medieval da guerra justa, demonstrada nas linhas iniciais deste estudo.

Os critérios que seguem abaixo serão tomados como diretrizes para a comunidade internacional dizendo o momento e o modo como ela poderá efetuar a intervenção. São eles: a) "autoridade competente", revelando-se aquela advinda de um organismo multilateral como a ONU; b) "justa causa", consistindo na proteção humanitária em face de uma violação maciça; c) "intenção reta", quando se emprega a força tão somente para a defesa dos direitos humanos, sem "aproveitar" a situação para levar adiante algum outro interesse; d) "último recurso", a intervenção trata-se de um último recurso, pois a responsabilidade internacional é subsidiária em relação à nacional; e) "meios proporcionais", pois não se pode provocar maiores perdas de vidas humanas e danos do que se visa proteger, e, f) "perspectivas razoáveis de êxito", para não se criar falsas esperanças ou estimular maiores animosidades. [53]

O documento introduzindo a responsabilidade de proteger é um dos mais importantes instrumentos que as Nações Unidas têm neste momento para auxiliar na resolução do dilema das intervenções humanitárias no mundo. A doutrina onusiana clássica, baseada em sua Carta de 1945, proibia ações de ingerência, pois, com estas, o número de mortes civis sofria grande aumento e o conflito se intensificava sempre que ocorria uma intervenção internacional. Além disto, a ONU partia de uma concepção de soberania que salvaguardava o direito de cada Estado agir dentro das suas fronteiras com autonomia, livrando-se de ingerências externas. A exceção, no entanto, situava-se no direito à assistência humanitária.

Ante ao exposto, não se sabe ao certo os resultados que serão obtidos com a nova normativa onusiana, porém, ao menos uma inovação precisa ser aplaudida, qual seja, a mudança de paradigma observada ao se regulamentar, oferecendo, assim, alguma segurança jurídica aos atos, antes praticados sob o alvitre unilateral e individual de poucos. Sem dúvida, com tal inovação, a Organização das Nações Unidas se perfila de modo a se trilhar um caminho diferenciado no que concerne à proteção e efetiva promoção dos Direitos Humanos via de intervenções autorizadas por seu Conselho de Segurança [54].


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após o estudo da evolução dos conceitos de "guerra justa", "soberania" e "direito internacional" foi possível traçar a fundamentação teórica em que se baseiam as contemporâneas intervenções internacionais referendadas pelas Nações Unidas.

Pela análise comparativa realizada entre os pressupostos da doutrina da "guerra justa" e os dogmas da "responsabilidade de proteger" da ONU, adotada, a partir dos anos 2000, extraiu-se o entendimento de que, nos dias atuais, os pilares das relações internacionais repousam sobre paradigmas idealizados em outros momentos históricos, mas sempre com a preocupação de "mundialização" das regras aplicáveis, fortalecendo, assim, uma doutrina ampla que com efeitos erga omnes.

Igualmente, pela breve (re)leitura do ideário de Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Suarez, Vitoria, e Grócio, ao lado da lembrança do pensamento kantiano versando sobre a paz perpétua, instrumentalizado por sua Aliança Federativa de Estados (Völkerbund), chega-se ao momento hodierno, constatando-se que, para além do tempo histórico em que foram refletidas e da ordem como foram enunciadas, as premissas que sugerem a possibilidade da "guerra justa", a proteção interestatal, a paz permanente e o Direito Cosmopolita convergem para os fundamentos definidores da doutrina onusiana da "Responsabilidade de Proteger".

A possibilidade de transição para o Direito Cosmopolita, idealizado em Kant, é percebida pela mudança de comportamento da comunidade internacional, principalmente da ONU. Antes as intervenções só ocorriam em condições excepcionais, hoje, com a causa dos Direitos Humanos recebendo maior peso, e, com prenúncios de um Direito supranacional disciplinador das regras a serem adotadas nas relações interestatais, atos interventivos são cada vez mais frequentes, gerando, a partir disto, o retorno ao anseio kantiano de ordem jurídica única, com a aplicação de suas diretrizes aos Estados que desta organização fizerem parte.

No entanto, caso haja otimismo no sentido de se dar como certa a alteração do cenário jurídico internacional, este deve encontrar freios, notadamente, nas dificuldades inerentes à mudança do Direito Internacional clássico para o Cosmopolita.

Não se quer, com este estudo, simplificar tal processo mascarando suas inúmeras mazelas. O que se almeja é que seja realizada uma aproximação filosófica entre as reflexões do passado e os debates contemporâneos para que os equívocos de outrora, quando da tentativa da aplicação de uma doutrina de aceitação das "guerras justas" e de um Direito Cosmopolita não sejam repetidos em dias atuais. A aspiração que se faz essencial, hoje, reside em efetuar a aproximação entre os preceitos anunciadores da aceitação da guerra com causa justa e do jus cosmopoliticum com os fundamentos da nova ordem jurídica global que se (re)formula, especialmente a partir do início dos anos 2000, com a abertura dos debates sobre uma doutrina que apregoa em suas linhas a "Responsabilidade de Proteger".


Notas

  1. Aurélio Agostinho (354-430) nasceu em Tagaste, na Numídia, norte da África. Filho de pai pagão e mãe cristã. Tornou-se bispo de Hipona em 395.
  2. Obra com início no ano de 413 e término no ano de 426.
  3. AGOSTINHO, Aurélio. A Cidade de Deus. Disponível em: <http://www.4shared.com/get/H0dwpmAd?Santo Agostinho.A Cidade de. html> Acesso em: 19. out. 2010. p. 560.
  4. Idem.
  5. Idem
  6. Ibidem, p. 563.
  7. Idem.
  8. Tomás de Aquino (1225-1274) nasceu em Rocca Secca, na Itália. Estudou na Universidade de Nápoles, tornou-se abade dominicano e doutorou-se em teologia, em Paris.
  9. AQUINO, São Tomás de. Summa Theologica. Disponível em: <http://www.4shared.com.com/ Summa_Theologica.phd> Acesso em 20 out. 2010. Part II, Question 40.
  10. Idem
  11. Idem
  12. Idem
  13. Idem
  14. Francisco de Vitória (1480-1546) nasceu na cidade espanhola que posteriormente adotou o seu nome. Durante dezesseis anos viveu no convento dominicano de Saint-Jacques, em Paris, foi aluno e mestre no Colégio de Santiago e professor na Universidade de Salamanca.
  15. Francisco Suarez (1548-1617) nasceu em Granada, jurista, jesuíta, foi professor nas Universidades de Salamanca e Roma.
  16. PRÉLOT, Marcel; LESCUYER, Georges – História das Ideias Políticas. Volume I. Tradução do fr. De Regina Louro. Presença, 2000. p. 237.
  17. Hugo Grócio ou Hugo Grotius (1583-1654) nasceu em Delft, na Holanda, e escreveu sobre história e teologia.
  18. GROTIUS, Hugo. The Rights of War and Peace. Disponível em:<http://books.google.com.br/books?printse
  19. c=frontcover&dq=The+Rights+of+War+and+Peace&sig=PNpem_9LewQTKIjzb83XnM4duU&ei=uSkBTenND

    Y6mQfhjbXIDQ&ct=result&pg=PA55&id=MtM8AAAAYAAJ&ots=phd-t41eDk#v=onepage&q&f=false> A-cesso em 22 out. 2010. p. 1150.

  20. Ibidem. p. 1151.
  21. Ibidem. p. 1161.
  22. Ibidem. p. 1156.
  23. Ibidem. p. 1155.
  24. Ibidem. p.1156-1157
  25. Idem.
  26. Immanuel Kant (1724-1804) nasceu, viveu e morreu em Königsberg (atual Kaliningrado), região pertencente à Prússia.
  27. GALLIE, Walter Bryce. Os Filósofos da Paz e da Guerra. Tradução Silvia Rangel. Rio de Janeiro: Artenova, 1979. p. 24.
  28. Ibidem. p. 21.
  29. GERHARDT, Volker. Uma teoria crítica da política sobre o projeto kantiano À paz perpétua. In: ROHDEN, Valério (Ed.). Kant e a Instituição da Paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Goethe Institut/ICBA, 1997. p. 40-41.
  30. DELGADO, José Manuel Avelino de Pina. Cosmopolitismo e os dilemas do humanismo: as relações internacionais de Al-Farabi a Kant. In: OLIVEIRA, Odete Maria de (Org.). Configuração dos Humanismos e Relações Internacionais. Ijuí: Editora Unijuí, 2006.
  31. TERRA, Ricardo Ribeiro. A Política Tensa. São Paulo: Iluminuras/FAPESP, 1995. p. 224-225.
  32. KANT, Immanuel. A Paz Perpétua. Um Projecto Filosófico. Tradução de Artur Morão. Disponível em: <www.lusosofia.net/textos/kant_immanuel_paz_perpetua.pdf.> Acesso em: 15 out. 2010. p. 18.
  33. Ibidem. p. 20.
  34. Ibidem. p. 20-21.
  35. Ibidem. p. 22.
  36. CAIMI, Mario. Acerca de la Interpretación del Tercer Articulo Definitivo del Ensayo de Kant: Zum Ewigen Frieden. In: ROHDEN, Valério (Ed.). Kant e a Instituição da Paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Goethe-Institut/ICBA, 1997. p. 192.
  37. KANT, op. cit. p. 22.
  38. Tratado que restabeleceu a paz na Europa e inaugurou uma nova etapa na história política daquele continente, reverenciando o triunfo da igualdade jurídica dos Estados, com o que restaram estabelecidas as bases sólidas de uma ordem internacional positiva.
  39. GONÇALVES, Williams; SILVA, Guilherme A. Dicionário de Relações Internacionais. São Paulo: Manole, 2005.
  40. DALLARI, Pedro Paulo de Abreu. Teoria Geral do Estado. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
  41. FERRAJOLI, Luigi. Soberania no Mundo Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
  42. SEITENFUS, Ricardo A. S.; VENTURA, Deisy. Introdução ao Direito Internacional Público. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 87.
  43. Ao lado do surgimento da SDN e da ONU outras organizações nasceram em todo o mundo, porém, devido à maior magnitude destes dois entes, opta-se neste estudo, pelo exame pormenorizado somente destas organizações.
  44. BEDIN, Gilmar Antônio. A Sociedade Internacional e o Século XXI: em busca da construção de uma ordem mundial justa e solidária. Ijuí: Editora Unijuí, 2001. p. 223.
  45. SEITENFUS, Ricardo A.S.. Manual das Organizações Internacionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 85.
  46. A Segunda Guerra Mundial foi o confronto militar mais arrasador de todos os tempos. Há divergências quanto ao número total de pessoas que perderam a vida entre 1939 e 1945, em decorrência do conflito. Alguns autores falam em quarenta milhões de mortos. Mas o historiador estadunidense James Gormly eleva esse número para cinqüenta milhões, entre os quais cerca de 25 milhões de civis. Vastas regiões e um número enorme de cidades foram totalmente destruídas. Disponível em: <http://www.culturabrasil.pro.br/guerrafria.htm>. Acesso em 06.nov. 2010.
  47. MIYAMOTO, Shiguenoli. O ideário da paz em um mundo conflituoso. In: BEDIN, Gilmar Antonio et. al. (Orgs.). Paradigmas das Relações Internacionais: realismo-idealismo, dependência-interdependência. 2.ed. rev. Ijuí: Editora Unijuí, 2004. p. 43.
  48. O conflito entre os EUA e a URSS, no período posterior à Segunda Grande Guerra ficou conhecido como Guerra Fria, estendo-se até o início da década de 1990, com a dissolução da URSS.
  49. HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro:estudos de teoria política.São Paulo, Loyola. 2007. p. 150.
  50. Ibidem. p. 174.
  51. ONU, Carta das Nações Unidas e Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Artigos 1, 1 e 2, 6. p. 7. Disponível em: <http://unicrio.org.br/img/CartadaONU_VersoInternet.pdf>. Acesso em: 04. nov. 2010.
  52. Ibidem. Artigo 9, 1. p. 10.
  53. Ibidem. Artigo 18, 1. p. 15.
  54. INTERNATIONAL COMMISSION ON INTERVENTION AND STATE SOVEREIGNTY (ICISS). The Responsibility to Protect: Report of the Commission on Intervention and State Sovereignty. Ottawa: International Development Research Centre, 2001. Disponível em: <http://www.iciss.ca/pdf/Commission-Report.pdf>. Acesso em: 07 nov. 2010.
  55. Ibidem. p. 31-37.
  56. Órgão primordialmente responsável pela manutenção da paz e da segurança internacionais. O Conselho é composto de 15 membros e reúne-se de maneira quase contínua, ocupando-se das crises à medida que elas surgem. Na Carta das Nações Unidas, os Estados-membros concordam em aceitar e pôr em prática as decisões do Conselho, ou seja, essas decisões, ao contrário das da Assembléia Geral, devem ser legalmente acatadas pelos governos. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/conheca_faq.php#link11>. Acesso em 10 nov. 2010.

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COGO, Rodrigo. Fundamentos filosóficos da doutrina onusiana de intervenções internacionais. Da guerra justa à responsabilidade de proteger. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2827, 29 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18804. Acesso em: 20 maio 2024.